sexta-feira, 24 de outubro de 2008

XAMBIOÁ – Guerrilha no Araguaia
Nota Preliminar do Autor

Há muito tempo venho cismando a respeito da idéia de escrever sobre alguns dos mais dramáticos acontecimentos que marcaram com cores muito fortes os primeiros anos da década de setenta. Época tida como a mais dura e a mais cruel do regime militar, os veículos de comunicação a ela se referem, quase sempre, com informações distorcidas, seja por carência de fontes seguras, seja por uma orquestrada cortina de fumaça produzida por pessoas, ou grupos, que temem a divulgação da verdade dos fatos.
Uma complexa concorrência de eventos e circunstâncias, todavia, colocou-me no centro daqueles tristes acontecimentos e, por malfadada sina, propiciou que eu fosse, não apenas e simplesmente testemunha dos episódios, mas, também e principalmente, alguém que os vivenciou com um nó de revolta e de vergonha, o qual ainda hoje me revolve e me amarga as entranhas. Revolta por ter presenciado feitos sobre os quais eu não tinha qualquer poder para modificar-lhes o curso. Vergonha por ter assistido, completamente impotente, à tortura e ao assassinato de brasileiros, levados a cabo por outros brasileiros, numa nojenta carnificina de irmãos contra irmãos.
Passados os anos, penso que é chegada a hora de trazer à luz aquela página negra de nossa história. Não se trata, entretanto, de procurar vilões e de lançar culpas, ou de buscar bodes expiatórios e de clamar por punições. Não! O próprio tempo já se encarregou de prescrever tais crimes. Sem falar, é claro, da chamada Lei da Anistia.
Contudo, o que pretendo levar aos leitores não é, em sua inteireza, um documento. Talvez, em sua essencialidade, pudesse ser assim considerado, embora não tenha eu tal pretensão. Ainda que baseado em fatos reais, escolhi a novela como forma de comunicação, imaginando que, por essa maneira, me fosse mais fácil preencher os claros da memória que o tempo tentou esmaecer.
Neste sentido, esta é, pois, uma obra de ficção. Não obstante, procurei ser fiel à descrição dos cenários; conservei, sempre que possível, os nomes de lugares e localidades; bem como empreguei, em casos especialíssimos, a verdadeira identidade de alguns poucos participantes, os quais não se encontram mais entre nós, como um modo de lhes prestar uma homenagem. É provável, igualmente, que a crítica, ou a menção jocosa, afete a algumas pessoas, caso elas vistam a carapuça. Se isso acontecer, paciência.
No mais, as personagens são fictícias, ou tiveram seus nomes trocados, uma vez que não faz parte do meu objetivo comprometer quem quer que seja. Busquei tão-somente narrar os fatos, mesclando-os, em grande parte, com produtos da minha imaginação, em que pese lhes ter conservado o cerne, arrumando-os numa trama que me pareceu mais adequada. Tentei, não sei se consegui, descrever também, do meu ponto de vista, os sentimentos dos atores da história e a vida miserável de uma população tão esquecida pelas instituições governamentais.
Finalmente, malgrado o caráter ficcional do escrito, à guisa de lenitivo às almas dos desaparecidos e às feridas não-cicatrizadas de seus familiares, indiquei a localização exata do lugar onde se encontram os restos mortais, senão de todos, mas, pelo menos, de grande parte dos Guerrilheiros do Araguaia..
Rio de Janeiro, 16 de março de 1993
Pedro Corrêa Cabral
Mapa de Situação da Guerrilha


XAMBIOÁ
Guerrilha no Araguaia
Pedro Corrêa Cabral
Primeira Parte
OPERAÇÃO DE INTELIGÊNCIA
Capítulo I
Era março de 1973. O sol estava quase a pino, e o calor, como sempre, abrasador. O ar, praticamente, parado. Nem uma brisa, por leve que fosse, perturbava os ramos mais finos do arvoredo. O suor escorria, peguento, pelos rostos, peitos e costas dos dois viajantes.
Podemos estacionar por aqui, Elizeu — disse o que parecia o mais velho e o chefe. — Vamos esconder a camioneta atrás dos arbustos, embaixo daquela árvore — continuou ele com autoridade, apontando para uma pequena depressão no terreno, onde crescia uma enorme castanheira, circundada por uma exuberante quantidade de outras árvores e plantas rasteiras.
Enquanto o outro tomava providências para camuflar o carro, cobrindo-o com galhos e ramos de vegetação, José Lucas desceu, esticou as pernas e abriu um mapa da região. Segundo as informações que ele colhera na Palestina, eles deviam estar perto do sítio do Manuel das Duas.
José Lucas Quintino Nicoline, engenheiro agrônomo, contratado e nomeado pelo Incra para fazer um levantamento preliminar das terras agricultáveis e próprias para a pecuária, na região ao sul da rodovia Transamazônica, no trecho entre Marabá e Vila Palestina, era mineiro de Pouso Alegre, tinha trinta e seis anos, possuía um corpo bem-proporcionado para seu metro e setenta e cinco e setenta e quatro quilos de peso. Tinha a pele clara, com a face afilada e um tanto bronzeada pela exposição ao sol e às intempéries do clima equatorial. Seus cabelos eram lisos e aloirados, repartidos no meio e penteados com esmero e vaidade, de forma a cobrir-lhe parcialmente as orelhas. Possuía um nariz reto, e sua boca era encimada por um bigode cheio que tentava disfarçar os lábios finos. Os olhos eram de um cinza azulado, levemente decaídos nos cantos externos. O olhar, no entanto, era inteligente e perscrutador, simpático até, mas, ao mesmo tempo, mau, com um quê de crueldade e frieza. Sua vestimenta era simples, apropriada ao ambiente hostil. Botas de cano curto de couro marrom, calças de brim azul, camisa de tecido leve e axadrezada, e uma jaqueta bege de gabardine. O avolumado abaixo de sua axila esquerda nada mais era que sua inseparável companheira, uma pistola Browning .9mm com carregador duplo.
A despeito do sol quase a pino, a sombra da floresta escondia bastante a pequena trilha que deixava a estrada por onde eles tinham vindo. O mapa, contudo, estava perfeito, não havia dúvida. Após a ponte de madeira sobre o rio das Cobras, cerca de dois quilômetros à frente, do lado esquerdo do caminho, havia um imenso ipê-amarelo que sinalizava a picada pela qual se chegava ao sítio do Manuel das Duas. "Não há o que errar, Dr. Zeca", dissera o negro Levindo da farmácia Santa Rita, na Palestina.
José Lucas era mais conhecido por Dr. Zeca.
— Vamos seguir por esta trilha, até as proximidades da clareira onde fica a casa do tal Manuel — disse ele. — De lá em diante, eu sigo sozinho e você se esconde na mata e fica de observador. Os sinais são os já combinados. A qualquer aproximação de estranhos, você usa o pio do macuco. Só em caso de emergência, ou perigo iminente, você dá um tiro para cima.
Pode deixar, doutor, tudo entendido — respondeu Elizeu, um mulato forte, alto e de olhar vivo. Deu os últimos retoques na camuflagem da camioneta, colocou em bandoleira seu fuzil FAL no ombro e seguiu nos calços do Dr., Zeca, que já ia meia dúzia de metros à frente.
Caminhando a passos cautelosos, os dois andaram cerca de oito quilômetros pela mata. Atravessaram um igarapé, e, pouco depois, chegavam às bordas da clareira. Permaneceram ali por uns bons quarenta minutos, espreitando atentamente o movimento do lugar. Nada de especial aconteceu. Uma mulher madura, cinqüenta anos talvez, saiu da casa com um balde, sumiu do outro lado, após uma roça de mandioca, para reaparecer dez minutos depois, carregando a vasilha d’água na cabeça.
Zeca fez um sinal para Elizeu e caminhou cauteloso em direção à casa. Não era propriamente uma casa, era mais um tapiri com paredes de pau-a-pique e cobertura de palha de carnaúba. Chegando pelos fundos, ele viu que a mulher estava mexendo uma panela num fogo a lenha, sob uma espécie de cobertura improvisada, também de palha e contígua à casa. Um cheiro agradável de feijão cozido e temperado penetrou-lhe nas narinas. Um gosto de saliva quente inundou-lhe a boca.
Bom dia, dona — disse ele.
— ‘dia, moço — respondeu ela, sem demonstrar qualquer surpresa. — Pode chegá, o feijão tá quais pronto.
— Tem mais alguém em casa? — perguntou Zeca, espreitando o interior da habitação.
— Tem não, sinhor. Meu véio e os dois meninos tão pra mata colhendo castanha. A outra muié tá pra banda do igarapé, lavando roupa. — A criatura gostava de uma prosa, assim parecia.
Sabe, dona...como é mesmo o nome da senhora?
Nazaré. É, Maria Nazaré de Souza, às suas ordens.
— Pois é, dona Nazaré, eu estou precisando falar com o seu Manuel. Quando é ele vai voltar pra casa? — perguntou Zeca, mais à vontade.
Ah, hoje ele chega mais cedo — respondeu ela. — Tá já pertinho de chegá, mode que hoje esse povo da mata marcaro de fazê uma tal de reunião aqui no pátio — respondeu a mulher com uma certa nota de desagrado.
Aproveitando a deixa, Zeca falou em seguida:
É, esse povo da mata tá fazendo confusão por aqui, não é, dona Nazaré?
Ela olhou para ele meio desconfiada, provou o caldo do feijão e disse:
Bem, eles não são má pessoas. Eles vêm aqui, trais remédio pra gente, brinca cum nóis e ensina nóis umas coisas boas, mais também eles ficam aí falando umas coisas que nóis num intende dereito. — Falou isso e enxugou o suor da testa com as costas da mão esquerda, enquanto mexia a panela com uma colher de pau na direita. — E dispois — continuou ela — teve esses sordados aí, dando tiro, judiando as pessoas e até matando gente! Assim eles falam, né? Aqui mesmo os sordados num viero. Mais o povo fala que é tudo culpa dos paulistas, esse pessoal da mata. — Nova pausa, e ela prosseguiu: — Os sordados agora foram simbora, assim eles tão comentando. Mais eu e o meu véio e a outra, junto com os meninos, nóis tão morrendo de medo, seu moço. — A mulher era mesmo uma maritaca. Bastava um empurrãozinho e lá ia ela falando a não acabar mais.
Quando ela fez uma pequena pausa, Zeca estimulou-lhe de novo a loquacidade:
Me diga uma coisa, dona Nazaré, nessas reuniões, aí no pátio, o que é que eles falam pra vocês?
O moço não é gente do gunverno, é? — perguntou ela, observando-o meio de soslaio.
Não, dona, meu negócio é gado e plantação — apressou-se a responder o Dr. Zeca. — Aliás, é sobre isso que quero conversar com seu marido. Andei sabendo que ele tem umas terras por aqui para vender, será verdade? — interrogou o engenheiro, olhando para ela com firmeza.
Foi quando, então, se ouviu o pio do macuco e a conversa foi interrompida. Zeca caminhou rápido e com segurança para o lado direito da casa e espreitou pelo canto da parede. Estava calmo. A mulher continuou a mexer a panela despreocupadamente. Um homem baixo e troncudo vinha se aproximando do tapiri com um terçado na mão direita e uma espingarda de caça no ombro esquerdo. Mais atrás, cada um com um balaio na cabeça, vinham dois rapazinhos taludos, de quinze ou dezesseis anos.
Zeca abandonou a proteção da casa e saudou os recém-chegados:
Boa tarde, seu Manuel. Boa tarde, rapaziada.
Os três pararam de chofre, assustados.
Pode chegá, minha gente. O moço é de paz. Só tá querendo um dedo de prosa com ocê, meu véio. — A tranqüilidade de dona Nazaré quebrou, de pronto, a tensão do ambiente.
Manuel e os rapazes foram chegando, ainda um pouco ressabiados, mas curiosos. Manuel das Duas, assim conhecido e assim tratado por todos da região, era um caboclo de feições rudes, mas também simpáticas, cuja alcunha decorria de sua convivência harmônica com duas mulheres, ao mesmo tempo e sob o mesmo teto. Uma era a falante Nazaré, branca, já perto dos cinqüenta anos, pele bastante enrugada pela idade e pelo trabalho pesado naquele ambiente hostil. Esta vivia com ele há trinta anos, mas não lhe dera filhos. Diante dessa sina, Manuel, anos atrás, tomara a segunda por esposa, porém não se descartou da primeira. Ambas dormiam com ele, no mesmo cômodo, sem qualquer desavença entre elas. A rede de Nazaré armada num canto, a da outra, do lado oposto, e a de Manuel, no meio, soberana e conciliadora. A mais nova, uma cabocla fagueira, de ancas arredondadas, coxas fortes e roliças, seios firmes e fartos, submetia-se, sem protesto, à autoridade da mais velha, afinal chegada primeiro no pedaço. Aquela sim, Palmira, comprovara a sua macheza, dando-lhe dois filhos, Raimundo e Sebastião, os dois rapazes que o ajudavam nas lides do sítio e na colheita de castanha.
Era, sem dúvida, uma arrumação pitoresca, essa do Manuel das Duas...


Lavando roupa no igarapé, Palmira pensava nas coisas bonitas que os paulistas falavam sobre a "revolução e a luta do povo pobre e oprimido" contra os donos do castanhal, o governo e os soldados que exploravam os trabalhadores. "Até o padre, da igreja de São Domingos", matutava ela, "tinha falado, na missa, que aquelas terras, o castanhal, a mata, os rios e os igarapés são obra de Deus e da natureza, pra servir e dar de comer aos trabalhadores e aos que moravam ali há tanto tempo. Por que motivo nós temos que trabalhar de sol a sol e passar tanta necessidade, enquanto os ricos, como os Noletos, ficam na capital, no bem-bom, sem fazer nada, e nós aqui labutando pra eles?"
E sonhava: "Agora que os soldados foram embora, vou me ajuntar com o povo da mata, os paulistas, e lutar pra dar uma vida melhor pros meus meninos. Quem sabe até poder mandar eles estudar numa escola em Marabá, ou em São Félix. Mas tenho que fazer isso bem direitinho. A velha não pode perceber, ela fala demais."
De repente, Palmira ouviu algo estranho. Colocou de lado a peça de roupa que estava lavando e apurou os ouvidos. Um sussurro sutil vinha do outro lado da clareira. Pé ente pé, atravessou por cima de um tronco de madeira que servia como uma espécie de pinguela, para o outro lado do igarapé e foi contornando o terreno aberto, escondendo-se na vegetação. Subindo para uma área mais alta, espiou por detrás de uma araputanga. Dois homens estavam observando a casa. Um era branco, bem-apessoado. O outro era um mulato alto e tinha uma espingarda diferente das que ela conhecia. Esta era parecida com a que ela tinha visto, na fotografia de uma revista velha, empunhada por um soldado estrangeiro.
Palmira ficou ali, vigiando a cena e refletindo sobre seu significado. Viu também quando a velha foi buscar água no riacho, mas se surpreendeu, mesmo, quando o branco caminhou para a palhoça, e o mulato ficou de tocaia no mato. "Essa gente não deve de ser pessoas com boas intenções", pensou ela. "É capaz de ser gente da polícia, ou do governo, atrás de saber notícia dos paulistas."
Quando Manuel e os meninos chegaram da mata, ela teve vontade de gritar para alertá-los, mas, em seguida, mudou de idéia. "Na casa não tem nada pra eles roubá", ponderou. "O melhor é ir pra banda do igarapé Paraíso, que é onde tem sempre uns paulistas, e avisar pra eles."


... e é como estou lhe dizendo, seu Manuel. Se o senhor me vender as terras, eu vou mandar abrir um bom pasto, colocar umas duzentas cabeças de gado, e vocês podem continuar morando aqui, trabalhando pra mim e, ainda, colhendo as castanhas pro dono do castanhal. O que é que o senhor me diz disso: é ou não é um bom negócio, seu Manuel? — perguntou Dr. Zeca.
Manuel coçou a cabeça. Não estava gostando daquela história.
"Esse moço num parece ser gente de confiança", pensou ele, mas não falou. "Como é que um homem bem-apessoado como esse, bem falante e educado, e com dinheiro, tá logo se vendo, vem se meter numas brenhas dessas? E com essa conversa fiada de comprar terra e de criação de gado?", cismava Manuel, pitando seu cachimbinho de barro.
Ô meu véio, dá uma resposta pro moço — interveio dona Nazaré, expectante.
Estava difícil ganhar a confiança do velho. Zeca sentia no ar que Manuel, além de suspeitar dele, estava relutante em falar. "Esse velho está escondendo alguma coisa", pensou. E, em voz alta:
Como é, seu Manuel, podemos ou não fazer negócio?
Manuel limpou um pigarro na garganta, passou novamente a mão na cabeça e disse:
Sabe, seu dotô, eu tô aqui nesse canto de mato já vai pra mais de quarenta anos. Tive pensando de vender a terrinha, não vou dizer que não tive, é verdade. Mas, o senhor tenha paciência, vou pensar mais um bucado. Quem sabe pra semana, ou pro mês que vem, lhe dou uma resposta. Num se avexe não, que se o senhor não comprar por aqui compra mais adiante. Acolá mesmo, na região dos Perdidos, tem gente querendo vender, embora que lá, tendo muitos paulistas, ajudando a curar maleita, dando remédio pras crianças e ensinando as muiés a custurá e os home a plantá, o povo tá cum medo dos soldados e da polícia.
"O velho, agora, vai soltar a língua", pensou Zeca, "é só dar corda pra ele." Assim imaginando, disse:
E aqui, nesta sua região, tem muito paulista? Eles aparecem sempre aqui?
Seu Manuel pensou um pouco e desconversou:
Aqui eles num vem. Tivero aí no pátio umas poucas de veis, no ano passado. Num é verdade, Nazaré? — disse ele, buscando o apoio da mulher.
Zeca, é claro, sabia que ele estava mentindo, mas, por ora, não valia a pena desdizê-lo. DE mais a mais, era preciso conquistar a confiança e a simpatia da velha. Se ele dissesse que sabia da reunião de hoje à tarde, Manuel deduziria logo que a indiscreta taramela da esposa já dera com a língua nos dentes. Ficou, pois, calado e, pelo semblante da mulher, percebeu-lhe o olhar de alívio e de certa cumplicidade.
O doutô deve de tá com fome — disse Nazaré, desviando o assunto. — Quem sabe se ele não quer um feijãozinho com farinha e charque mais nóis? Aceita, moço? É feijão-de-corda, bem temperadinho.
Lucas consultou o relógio de pulso. Eram quase três horas da tarde. Ele estava com uma fome cachorra, e o feijão estava mesmo cheiroso.
Bem, se a senhora insiste, e se seu Manuel não se importa, eu aceito sim — disse.
Vamo se abancá por riba desse tronco. Fique à vontade, doutor — falou o velho, já se sentando no cepo que fazia as vezes de banco, ali no terreiro.
A mulher serviu logo, generosamente, dois pratos fundos do suculento feijão e os entregou a cada um. Trouxe, depois, um pote de farinha grossa.
Pode se servir à vontade. Não faça cirimônia, doutô. Agora, vou lá pra dentro dá o cumê dos minino. Licença.
Quando ela sumiu no interior da casa, os dois começaram a comer em silêncio. O feijão estava mesmo delicioso. Depois de algum tempo, Zeca reatou a conversa:
O pessoal comenta que o senhor vive aqui com duas mulheres, seu Manuel. Só vi uma. Quede a outra?
Seu Manuel abriu, pela primeira vez, um sorriso maroto e respondeu:
É verdade. Dou conta de duas aqui. É a minha natureza, doutor Zeca. — E com mais intimidade acrescentou: — Duas num pode comigo. Se eu pudesse, ainda arrumava mais uma. Que com três ia ser muito mais milhor. — E caiu na risada.
Zeca riu também, mas insistiu:
E a outra, onde é que está?
A outra é a Palmira. Deve de tá no igarapé, lavando roupa — respondeu Manuel. — Quando cheguei, agora tô me alembrando, tinha umas roupa lá na beira d’água, mas ela num tava lá — disse ele, pensativamente, e gritou para dentro da casa: — Ô Nazaré, cadê a Palmira?
Nazaré apareceu na entrada do tapiri:
Sei não, meu véio, ela saiu cedo, mode lavá a roupa, mais num vortô inté agora. Minino, Raimundo, corre lá no igarapé pra campiá sua mãe.
O garoto saiu correndo, atravessou o descampado da clareira e sumiu na vegetação. Minutos depois, regressou ofegante:
— Mãe num tá lá não, mas a roupa tá lá espaiada. Num sei de mãe não, pai!
Seu Manuel franziu o sobrolho com cara de apreensão que procurou encobrir com um sorriso amarelo:
Palmira não deve demorar, — disse — Essa muié é meio destrambelhada. Vai vê que foi dá um passeio na mata, intempo de se perdê, ou aconticê outra qualquer coisa ruim com ela — completou ele, meio sem jeito.
O incidente despertou em Zeca também uma certa preocupação.
Tá bom, seu Manuel, a prosa foi boa, mas eu tenho que ir andando. Vou voltar outras vezes, pra comer do feijão e saber da sua resposta. Boa tarde pra todos.
E saiu andando em direção à boca da trilha que conduzia à estrada. Apertou o passo. Já eram mais de quatro da tarde.


Antes de chegar à borda da clareira, José Lucas sentiu que algo estava errado. Primeiro o desaparecimento de Palmira. "Depois, se a velha tinha dado informações corretas, por que até agora Elizeu não sinalizara a chegada de nenhum dos guerrilheiros?", pensou Zeca.
Entrou na mata, ruminando suas preocupações, mas com o espírito alerta. Encontrou o companheiro no lugar onde o deixara.
— Então, Elizeu, alguma novidade? — perguntou Zeca em voz baixa, quase num sussurro.
- Tudo calmo, doutor. Tá calmo até demais - murmurou o mulato em resposta.
- Isso está meio estranho. A essa hora, pelas informações do Levindo e pelo que me disse a mulher do seu Manuel, já devia ter aparecido algum subversivo no pedaço. - Fez uma pausa e acrescentou: - Vamos ficar observando daqui para ver o que acontece, mais uma hora ou pouco mais.
Ficaram, portanto, ali na espreita, furtivamente a observar o cenário estático do sítio e da mata. Não tiveram que esperar muito. Vinte minutos depois, surgia, pelo lado oposto ao que eles estavam, vindo da mesma direção que Zeca registrara como a do local onde a segunda mulher de Manuel lavava roupa, uma cabocla fornida, carregando na cabeça uma trouxa de roupa. Caminhava fagueira e requebrante, dir-se-ia despreocupada, em direção à casa. "É ela, sem dúvida", pensou ele, "a tal Palmira."
Nem bem Palmira desaparecia atrás do tapiri, uma saraivada de tiros irrompeu na mata, vinda do lado esquerdo de onde eles estavam. "Emboscada!" , pensou ele rapidamente, e se jogou para o lado, sacando com destreza sua pistola e atirando num vulto que se deslocava com ligeireza por trás da ramagem. Ouviu-se um grito de dor e um baque surdo, interrompido por uma rajada curta do fuzil-metralhadora de Elizeu. Mais tiros, um rugir de vozes desencontradas e um tropel de passos em fuga desabalada. Em seguida, silêncio!
Zeca, com o rosto colado ao chão, permaneceu quieto por alguns segundos.
Elizeu! - chamou a meia-voz.
Nada. Sentiu, então, um ardume dilacerante no ombro esquerdo. O sangue lhe ensopava a manga da jaqueta. Levantou-se devagar. A pistola em riste na mão direita. Caminhou com cuidado, atento, na direção do companheiro. O perigo já passara, ele sabia. A ação não havia demorado mais que dois minutos.
Elizeu estava de bruços. Um ferimento largo de arma de caça, provavelmente, na omoplata direita, encharcava-lhe as costas de sangue. Zeca levantou-lhe o torso, virou-o de frente e sustentou o corpo, delicadamente, com sua perna dobrada, apoiando-o pelas axilas. A cabeça pendeu para o lado, mole, sem vida. Um diminuto furo na têmpora esquerda indicava o lugar por onde o projétil mortal penetrara. "Pobre rapaz!" Não havia mais nada a fazer. Zeca depositou o cadáver, com cuidado, no chão, ergueu-se contristado, apanhou o fuzil e alguns pertences do morto e afastou-se.
Ao atingir a trilha, já todo atenção e cautela, apurou os ouvidos e escutou um gemido tênue. Seu ombro esquerdo ardia horrivelmente, mas ele não ligava. Haveria tempo depois para se preocupar com o ferimento. Fora só um tiro de raspão.
Na beira do caminho, notou um rastilho de sangue. Pelo menos um deles tinha sido acertado pela saraivada de balas. Seguindo o rastro, mais à frente, escutou um gemido mais forte. Encostou-se a uma árvore e esperou. Minutos depois, escutou novamente o queixume de dor. Foi se aproximando devagar, arma em punho, tenso, pronto para qualquer eventualidade.
Atrás de um arbusto, percebeu um movimento. Uma mulher jovem estava semi-sentada no chão, a cabeça apoiada num tronco de árvore, pernas esticadas e ambas as mãos sobre um ferimento do lado esquerdo do abdome, próximo à região renal. Zeca, num relâmpago, chegou junto dela e chutou para o lado um rifle 22 que estava perto do corpo da moça.
- Qual é o seu nome, sua vaca! - gritou ele, num ímpeto de fúria.
- Guerrilheiro não tem nome, seu filho da puta! - replicou ela no mesmo nível com um esgar de dor e de ódio.
Zeca olhou-a bem fixo nos olhos, levantou a pistola lentamente e acionou o gatilho. Um tiro certeiro, à queima-roupa, bem no meio da cara.
Colocou a arma no coldre. Pegou, com a mão direita, um lenço no bolso traseiro de suas calças e comprimiu-o sobre o seu próprio ferimento, como uma espécie de compressa, entre a jaqueta e a camisa. A dor era suportável.
Calmamente, abaixou-se, pegou um pouco de terra úmida no chão, esfregou o barro, com a ajuda de saliva, sobre o polegar direito do cadáver e pressionou-o numa das folhas de sua caderneta de anotações, obtendo uma digital de razoável nitidez.
Levantou-se sem pressa, guardou a caderneta no bolso, recolheu o rifle da guerrilheira e seguiu pela trilha, sem olhar para trás, em direção ao local aonde deixara a camioneta.

Capítulo II
Era mais de meia-noite quando José Lucas atingiu a rodovia Transamazônica, ainda a cerca de trinta quilômetros de Marabá e da Casa Azul. Seu braço e ombro esquerdos estavam muito inchados, e o ferimento, embora não sangrasse mais, latejava e doía horrores. Um estupor lhe anuviava a visão, bagas de suor frio escorriam-lhe pelo rosto, e calafrios sacudiam seu corpo todo. Estava à beira da exaustão. Entretanto, tinha que prosseguir. Havia que buscar forças onde não mais existiam.
José Lucas Quintino Nicoline, o Dr. Zeca, Aliás, Gregório Viriato de Santana, major de infantaria do Exército Brasileiro, analista e agente de informações do CIE, tinha uma missão a cumprir, e haveria de cumpri-la a qualquer preço.
Reuniu, pois, suas últimas energias e tomou a estrada na direção nordeste. Dirigindo por aqueles ermos, na noite escura, ia pensando nos erros do passado, na tentativa de desviar a atenção da dor alucinante:
"Quando em fins de 1969, ou início de 1970, descobriu-se que havia um foco guerrilheiro na região sul do Pará, os generais, senhores absolutos do Exército, os donos da revolução e do poder, decidiram fazer uma demonstração de força, na vã esperança de dissuadir os subversivos de seu intento. Montaram, pois, a manobra militar Marabá 70, engajando nela largos contingentes das forças de terra, ar e mar. Várias unidades do Exército, dezenas de aeronaves da Força Aérea e, até, uma companhia de fuzileiros navais foram mobilizadas e deslocadas para a região. Uma parafernália de material de campanha, combustíveis e lubrificantes, mantimentos, rações, barracas e petrechos de toda ordem foram gastos durante uns poucos e malfadados dias, sem qualquer resultado prático. Conhecia-se muito pouco da região e não se tinha qualquer informação concreta a respeito dos supostos guerrilheiros. Enfim, um fracasso e um desastre completos.
"Depois, em 1971 e 72, ainda com levantamentos falhos por parte dos órgãos de inteligência, lançaram-se as operações Axixá e Papagaio, ambas com resultados pouco palpáveis e, o que é pior, com algumas baixas, por incomp6tência e despreparo. Naquelas, foram empregadas tropas de elite, fuzileiros navais e pára-quedistas com cursos de comandos e operações especiais, como numa guerra convencional. Tudo certinho dentro do vidrinho. Mas esqueceram-se os luminares de Brasília de levar em conta o ambiente amazônico e de que estávamos diante de uma guerra de guerrilha, onde o convencional não funciona, ao contrário, quase sempre atrapalha.
"Por isso, depois de tantos fracassos, resolveram retirar as tropas e começar, só então, uma operação séria de inteligência. A região está, nesse momento, cheia de agentes de informações, todos em trajes civis, cada um com uma história de cobertura. É preciso primeiro conhecer bem o inimigo para depois combatê-lo, já dizia Sun Tzu, muito antes de Cristo."
Ainda faltava um bocado para chegar a Marabá. Zeca maldizia-se da má sorte e de sua imprevidência. "Aquela zinha filha da puta, a tal de Palmira, só pode ter avisado aos "paulistas" da nossa presença. Pela minha falta de tino, o Elizeu pagou com a vida. Por que não fui mais cuidadoso? Mas isso não vai ficar assim! A putinha vai me pagar caro pela falseta", ia pensando. "Manuelzinho da Duas, além de levar uns apertos, vai acabar como Manuel da Uma, ou de Nenhuma, porque a tal de Nazaré vai ter que vomitar mais coisa. Marabá está chegando. Estou ardendo em febre... Tenho que agüentar. Oh, meu Deus, que dor horrível... Dai-me forças..."
Finalmente, com a vista um tanto turva, avistou a Casa Azul. Avançou em sua direção, sem se importar, ou mesmo se lembrar, da cerca de arame farpado que havia nos limites do terreno. O carro levou tudo de roldão e estancou, de súbito, no meio do caminho de cascalho que conduzia à casa. Zeca tombou para a frente, desfalecido.


A Casa Azul era o quartel-general do comando antiguerrilha e, agora, estava ocupada pelos agentes de inteligência do CIE - Centro de Informações do Exército - e do CISA - Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica - desde a retirada das tropas da região, quatro meses atrás. Originalmente, o prédio fora construído para abrigar os escritórios do DNER - Departamento Nacional de Estradas de Rodagem - durante a abertura da Transamazônica. A residência estava plantada nos altos barrancos da margem direita do Itacaiúnas, com o fundo voltado para o rio e a frente, para um grande descampado. Na parte fronteira, uma espécie de campo cerrado, reinava majestosa uma árvore enorme, com mais de trinta metros de altura e, seguramente, com mais de um século de existência. Depois daquele descampado, havia um núcleo habitacional construído pelo INCRA - Instituto Nacional de Reforma Agrária - para abrigar os colonos de um assentamento rural que o governo estava implementando na região.
A Casa Azul ganhara tal denominação por ter sua cobertura de telhas de amianto pintadas na cor azul-anil, mas suas paredes externas eram de madeira, caiadas de branco, o tom dominante. O corpo principal do edifício era confortável. Um salão bem grande e comprido servia como sala de reuniões e também como local de refeições dos membros mais categorizados do grupo. Dois quartos abriam-se para esse salão e, ao fundo, havia um corredor com três outros dormitórios de cada lado. Na área de trás, havia uma cozinha. A construção podia alojar de quinze a vinte pessoas.
Ao lado do prédio principal, havia um galpão que fora adaptado para abrigar os agentes e servidores menos graduados, bem como a sala de interrogatórios e algumas celas cujas portas eram gradeadas de ferro.
"O acerto de retirar as tropas da área e, ao mesmo tempo, decidir desencadear esta operação de inteligência começa a dar os frutos que se imaginava", dizia o Dr. Kiner, atual chefe do grupo de inteligência, na "reunião do pôr-do-sol" daquele dia de junho de 1973, embora fosse quase dez horas da noite.
Estavam reunidos na sala da Casa Azul, além do Dr. Kiner, os doutores Tomé, Padilha, Walter, Ambrósio, Banzé e Zeca, este já totalmente recuperado, após uma estada de um mês no hospital militar de Belém e trinta dias de férias na praia da Pajuçara, em Maceió.
Encontravam-se presentes também os agentes Gabriel, Edmar, Tanaka e Pompeu. Todos, é claro, nomes frios, sem qualquer relação com suas identidades reais.
- Já foi possível delinear um quadro de contornos bem nítidos - prosseguia Kiner, sob o olhar atento de seus subordinados. - Os subversivos, esses comunistazinhos de merda, que nem guerrilheiros podemos chamá-los, estão espalhados em toda a região que vai de Marabá - disse, apontando, com uma vareta, uma fotografia aérea emoldurada e pendurada na parede do fundo da sala - até Xambioá, no sentido norte-sul, limitada à direita pelo rio Araguaia e à esquerda pela estrada PA-70. Embora eles se movimentem com freqüência, as informações levantadas por nossos agentes indicam que existem três grupamentos principais. Um na região dos Perdidos - e indicou no mapa. - Outro nesta área do igarapé Paraíso, que é afluente do Saranzal. O terceiro grupo está nos Caianos, denominação dessa parte aonde correm o igarapé Água Fria, numa das vertentes, e na outra o rio Gameleira. - Fez uma pausa e encarou com intensidade os companheiros.
Kiner, aliás, Marcos de Azevedo e Silva, coronel de artilharia com curso de Estado-Maior, era militar de carreira, ambicioso e perseverante em seus objetivos. Essa missão era tudo o que ele pedira a Deus, mas do sucesso dela dependia o seu próprio sucesso. Ele não podia falhar, e não iria falhar. Depois, a glória, a sua promoção a general de duas estrelas.
- Companheiros, o que acabo de lhes mostrar é o quadro de situação geral, -concluía o futuro general, com um sorriso de satisfação. - Nosso chefe de operações, o Dr. Padilha, vai expor agora como pretendemos que a manobra se desenvolva nos próximos dias. Antes, porém, quero agradecer a presença de todos e pedir que cada um transmita aos seus agentes, no campo, as minhas congratulações pelo bom trabalho realizado até aqui.
Padilha, aliás, Jeferson Machado de Oliveira, era major de cavalaria, um brutamontes mais grosso do língua de pirarucu. Paulista de Itu, tinha trinta e nove anos, era alto e musculoso, moreno, cabelos encaracolados e cortados rente, ao típico estilo militar. Tinha um olhar selvagem, não sorria nunca e era de falar pouco. As pessoas que conviviam com ele diziam, jocosamente, que ele tomava, todos os dias pela manhã, em jejum, um copo de vinagre. Era, entretanto, um cão-de-fila, seguindo à risca os regulamentos e as ordens de seus chefes, sem questioná-las jamais.
Dr. Padilha levantou-se, grunhiu algo incompreensível, pressionou e esfregou uma palma da mão contra a outra, limpou um pigarro na garganta e iniciou a apresentação.
- Senhores, como disse o comandante, no geral, conhecemos a área onde os subversivos estão atuando e onde estão os principais focos. Daqui por diante, o que precisamos saber, prioritariamente, é a quantidade deles em cada um dos grupamentos, e depois obter dados que permitam identificá-los, comparando esses dados com as informações que já temos processadas aqui e na agência central em Brasília. - Fez uma pausa, enxugou o suor da testa com um lenço tirado de seu bolso traseiro e prosseguiu: - Para atingirmos esse objetivo, quero que vocês reúnam os agentes que estão sob as ordens de cada um e transmitam o seguinte. Primeiro, o esquema e o planejamento montados para levantamento de informes continuam os mesmos. Os agentes dentro de suas áreas de atuação designadas devem se aproximar o mais possível da população local, obtendo os informes de maneira natural, sem uso de violência. É preciso recomendar e reforçar bem este ponto. Lembrem-se que a retirada das tropas regulares da região foi uma manobra tática, mas de profundo significado estratégico. É fundamental que todos, tanto o nativo quanto o subversivo, acreditem que os militares se retiraram efetivamente da área. É nesse fundamento que a nossa operação de inteligência está baseada. Com licença da má palavra, temos que "fingir de morto para comer o cu do coveiro". - Disse isso, mas não riu, embora os demais estourassem em estrepitosa gargalhada. Impassível, Padilha aguardou que a ordem fosse restabelecida.
Quando o vozerio terminou, prosseguiu:
- No momento em que eles se convencerem de que a região está livre de militares, os informes vão começar a fluir. Assim, o segundo ponto importante é que vocês providenciem o recolhimento de todos os fuzis que alguns agentes ainda estão usando. Estas armas, por ora, ficam proibidas. Cada um deve usar sua arma individual de cano curto e de maneira discreta. Nada de exibicionismo. Somos todos profissionais, Cada acontecimento, nesta guerra, deve nos servir de lição. O Dr. Zeca, aqui presente, foi emboscado, como todos sabem, apenas porque o agente Elizeu portava um fuzil FAL que o denunciou. - Um silêncio de constrangimento tomou conta da sala. - Desta forma - continuou Padilha - chegamos ao terceiro e último ponto das recomendações de hoje. Deve-se evitar, de todas as maneiras, qualquer tipo de "chafurdo". — Na gíria dos agentes e das tropas, a palavra chafurdo era utilizada para significar os enfrentamentos armados entre as forças legais e as forças guerrilheiras. — De minha parte é só o que tinha a dizer. Obrigado e boa noite, - disse encerrando o discurso.
O Dr. Kiner balançou a cabeça em sinal de aprovação:
Mais um minuto da atenção dos senhores - disse. - O nosso homem da Aeronáutica tem uma comunicação a fazer.
O Dr. Ambrósio, também conhecido como o Gordo, aliás não outro senão o capitão Francisco Otaviano de Souza, agente e analista de informações do CISA, era uma figura de quem todos gostavam, pelo seu constante bom humor. Carioca da Tijuca, com trinta anos, estatura mediana e cento e dez quilos de peso, era um sujeito risonho e bonachão. Tinha os cabelos prematuramente grisalhos, cortados rente à cabeça. Os olhos eram azuis, incrustados numa face rosada, gorducha e jovial. Seu semblante transmitia inteligência e vivacidade. Nos interrogatórios e mesmo nos contatos informais com prisioneiros, o Gordo desempenhava, com maestria, o papel de apaziguador e de condescendente.
Ambrósio levantou-se com agilidade incrível para alguém que conduzia massa e volume tão grandes. Como sempre, um sorriso brincava-lhe nos lábios.
- Meus amigos, temos que modificar os regulamentos militares. - A audiência observava expectante o que viria a seguir. - Esta "reunião do pôr-do-sol", convenhamos, hein? Está mais parecendo reunião do nascer-da-lua! Vai desculpando aí, hein, ô chefia! - Disse ele olhando na direção de Kiner, que tentava se manter sério, mas acabou por compor o coro de gargalhadas que explodiu na sala.
Apenas Padilha não riu. Secretamente, invejava a simpatia e a popularidade de Ambrósio, predicados que ele próprio admirava, mas tinha consciência de que não os possuir. "Esse gordo filho da puta está querendo bagunçar o ambiente. Como é que o comandante tolera isso e ainda fica rindo da piada sem graça, eu não entendo. Se fosse eu o chefe, enquadrava esse babaca agora mesmo...", pensava o intolerante chefe de operações.
Quando o silêncio se restabeleceu, o Gordo falou:
- Camaradas, brincadeiras à parte, tenho uma comunicação de rotina para lhes fazer. Há alguns dias, recebemos uma mensagem cifrada do CISA Brasília dando conta da identidade da subversiva que pereceu no chafurdo no qual o Dr. Zeca saiu ferido. - Todos estavam com olhos fixos nele. - A impressão digital que o Zeca tirou do "presunto", ainda que um pouco imprecisa, indicou que se trata da nossa já conhecida assaltante de bancos Alice, cujo verdadeiro nome e Dinalva Outeiro Trajano. Sem mais comentários. Pela atenção, obrigado.
O silêncio que se seguiu foi quebrado por Kiner, anunciando:
- O Dr. Tomé, nosso subchefe de operações, dará, agora, instruções especiais aos agentes Gabriel, Edmar, Tanaka e Pompeu, aqui presentes.
As atenções se voltaram para a figura miúda e míope de Tomé. Franzino e pálido, com óculos de aros redondos, ele era o capitão de artilharia Juventino de Oliveira Texeira, gaúcho de Cruz Alta. Levantou-se de sua cadeira e, com fala mansa e forte acento gaúcho, deu início à sua exposição.
- ...como o chefe disse, já estão plotados três grupamentos principais dos subversivos, nos Perdidos, nos Caianos e no igarapé Paraíso. Agora, além do que falou o Dr. Padilha, temos uma missão especial que será confiada a vocês quatro. Para obtermos todas as informações de que necessitamos, não basta a colheita de informes que está em andamento, sob a responsabilidade dos diversos agentes na região. Nós só conseguiremos saber a quantidade certa de guerrilheiros, o nível de treinamento deles, o tipo e a quantidade do armamento de que eles dispõem, bem como a disponibilidade de munição e de outros recursos, infiltrando gente nossa no reduto deles. - Fez uma pausa, consultou umas anotações e continuou: - Vocês quatro fazem parte da plêiade de nossos melhores agentes, e, assim, a missão vai ser confiada a vocês. Edmar Gabriel e Pompeu são nativos da região e, portanto, conhecem os usos, os costumes e o linguajar amazônicos.
Em verdade, os três eram de diferentes áreas da região. Gabriel era maranhense de Imperatriz. Edmar, paraense de Santarém, e Pompeu, embora natural do Ceará, crescera e fora educado em Boca do Acre, no Amazonas, quando sua família, fugindo da seca, ali se fixara nos negócios de extração e comércio de borracha.
- Assim, sob a história de cobertura de cada um, conforme já providenciado e a respeito das quais vocês receberão instruções detalhadas e individuais, Edmar vai se infiltrar nos Perdidos; Gabriel, nos Caianos; e Pompeu ficará encarregado de Paraíso. - E continuou: - Uma vez cada um em seus respectivos postos, não é conveniente retiradas demoradas para passagem dos informes. Dessa maneira, o contato de vocês será com o japonês Tanaka, que há dois meses está atuando, sob cobertura, como empregado da Madeireira Nova Olinda, em São Geraldo do Araguaia. O trabalho dele é percorrer a região, comprando mogno e madeiras nobres para a empresa, cujos proprietários são gente nossa. Assim, periodicamente, o japonês passará pela área de cada um e recolherá os informes obtidos por vocês. As formas e detalhes dos contatos serão também objeto de instruções específicas e individuais que vocês irão receber depois, uma vez que estas são compartimentadas por motivos de segurança. É bom frisar que essa missão é de suma importância para o futuro êxito da eliminação definitiva dessa corja de subversivos. A nação espera muito de vocês. Alguma dúvida? — interrogou ele, finalizando.
- Dá licença, doutor? - pediu Gabriel, e, tendo recebido a aquiesC6encia muda de Tomé, concluiu: - Há alguma recomendação sobre emergências, como no caso de necessidade de retirada rápida, ou de informações de trânsito urgente?
- É claro que sim! - Respondeu Tomé, - mas este tema será tratado, também, durante a fase de preparação pela qual vocês passarão nos próximos dias. Hoje é quarta-feira, vocês serão lançados no campo na próxima segunda-feira.
Logo depois, como não houvesse mais perguntas, o Dr. Kiner levantou-se, tomou a palavra e rematou a reunião, resumindo brevemente o que fora dito e desejando a todos uma boa noite.

Capítulo III
Na região dos Caianos, às margens do rio Gameleira, existe um aglomerado de não mais que duas dezenas de palhoças de pau-a-pique e barro, conhecido como Vila Remédios. A comunidade que ali vivia, da mesma forma que no resto daquelas plagas, era muito pobre, quase miserável. Constituída, em sua maioria, por colhedores de castanha-do-pará, havia também uns poucos coureiros que sobreviviam da caça de onças, jacarés e outros animais, cujas peles o finório Raimundo Barroso, um desonesto comerciante de secos e molhados em Xambioá, estivesse disposto a comprar.
No mais, o vilarejo abrigava uma birosca com o pomposo nome de Bar e Buati Relacoxa, a qual, aos sábados, promovia um animado arrasta-pé à base de cachaça e carimbo, o ritmo quente e típico do Pará. Tal regalo, contudo, só era possível quando o intratável Lourival da Silva, encarregado do armazém e do depósito do castanhal, consentia em ligar o gerador e gastar uns poucos litros de óleo, além da cota normal, para fornecer a energia elétrica exigida pelo precário sistema de som.
O armazém e o depósito eram as únicas construções de alvenaria do lugar, propriedade dos Ribeiro Bastos, abastados donos de castanhais e seringais no Pará e no Amazonas. Lourival, conhecido também como João Azedo, empregado e cria da família, conduzia o negócio com mão de ferro, reservando para si próprio parte dos lucros. As pessoas que habitavam naquelas cercanias estavam sempre lhe devendo, num jogo bastante conhecido de exploração, no qual os trabalhadores não tinham qualquer direito, sendo mantidos quase como escravos.
Naquela tarde de julho de 1973, o cafuzo Claudionor estava tomando um trago na birosca quando João Simplício, um trabalhador novato, chegado àqueles cafundós há duas semanas, foi entrando, encostou-se no balcão e pediu uma cachaça ao bodegueiro.
— Seu Sumpliço, o trabaio aqui é duro, mais o sinhô até parece que tá saindo bem cum o João Azedo, tá não? — disse o cafuzo, puxando conversa.
— A gente vai levando, né, Curu — respondeu Simplício, nomeando o outro pelo apelido, uma redução de Zé Curupira, como o cafuzo era conhecido naquelas paragens.
— Muita coragem prum vivente, qual ocê, vim procura trabaio num fim de mundo desse. Inda bem que ocê acho, pruquê arguns chega, num arruma nada, pega maleita e se acaba no meio da mata — falo o velho Curu, sorrindo um sorriso desdentado, mas simpático.
Simplício molhou discretamente o bico com a pinga e deu trela para Curupira:
— Ês tão falando que as coisas vão melhorar aqui, com esse povo da mata — disse, fingindo desinteresse.
— Já tá miorando muito — interveio o bodegueiro, um moreno escuro, que arrastava a perna esquerda, lembrança triste de um acidente com um queixada que lhe aleijara o membro.
— O Caximgó tá certo. Dispois que esses paulista parecero aqui, miorô um tantinho. Osturdia mesmo o fio do Filismino, o minino mais pequeno dele, tava aí morre num-morre. Dois paulista, um rapaz e uma moça, todos dois branco, garraro a cuida do pobrezinho, dando remédio e água fervida com sal e açuca. Só sei que não deu treis dia e o curuminzinho já tava por aí correndo, fazendo arte.
— Eu tou aqui já vai faze uma quinzena, e ainda não vi esses paulista que cês tanto fala — disse Simplício.
— Ah, o João Azedo amiaçô eles. Disse que ês são cumunista, suversivo e num sei-que-mais-lá. Que ia cumunicá pra pulícia — falou Caximgó, e acrescentou em voz baixa, chegando mais perto dos dois fregueses: — Agora, eu vou fala uma coisa: a Maria Fiofó teve se tratando de maleita cum umas piulas que os paulista dero pra ela e escuitô quando ês falaro que o Azedo tinha que sê justiçado. Agora, que qui é isso de "sê justiçado", cês pode me explicá?
Curu olhou para Simplício com ar interrogativo, e este, em tom preocupado, deu de ombros, dizendo:
— Boa coisa num deve de ser, porque o tal de Lourival, que ocês chamam de João Azedo, tem uns cinco dia que não aparece no depósito. Aquele capanga dele, o Chicão, disse que ele viajou pra Xambioá.
Simplício, aliás, o agente Gabriel sob disfarce, pegou sua matula no canto do balcão e se preparou para partir:
— A prosa tá boa, mas tenho que ir andando, pessoal. Até mais ver. — E foi saindo um tanto apressado.


Não muito longe da Vila Remédios, perto da boca do igarapé dos Caianos, na junção com o rio Gameleira, havia um desmatamento onde centenas de toras de mogno aguardavam transporte para a Madeireira Nova Olinda, em São Geraldo do Araguaia.
Num galpão coberto de folhas de zinco, o japonês Tanaka e o capataz da serraria tinham acabado de acertar as contas sobre a aquisição de cem metros cúbicos que deveriam ser despachados na semana seguinte.
Sem mais formalidades, o oriental se despediu, caminhou na direção do embarcadouro improvisado, subiu no pequeno barco de alumínio e acionou o motor de popa. Seus movimentos eram meticulosos, sem pressa. Dez minutos depois, após ter espreitado com cuidado os arredores, ele virou a cana do leme para a esquerda e entrou no igarapé dos Caianos, desligando o motor e seguindo contra a corrente, por cerca de duzentos metros, pela força do remo que ele manejava com destreza. Onde o curso d'água fazia uma curva suave para a direita, havia uma reentrância escondida pela copa frondosa de um oiticoró. O japonês encostou o barco no barranco, saltou lépido e amarrou a embarcação no tronco de uma sapupira. Não foi preciso esperar muito. Trinta minutos depois chegava Gabriel, furtivamente, sem fazer qualquer barulho.
— Oi, Tanaka. Esperaste muito? — perguntou, no seu sotaque normal de maranhense.
— Não muito. Quais as novidades? — inquiriu Tanaka.
— Ainda não consegui contato com os subversivos, mas eles estão na área. O encarregado do armazém do castanhal andou criando caso com eles. O informe que tenho é que o tal encarregado ameaçou-os de denúncia, e eles estariam planejando justiçá-lo. O cabra está desaparecido da Vila Remédios. Dizem que ele foi a Xambioá. No momento, é só isso que tenho pra ti. A propósito, o nome do sujeito é Lourival da Silva, conhecido também como João Azedo. Está confirmado o apontamento para daqui a quinze dias, ou tens outras instruções?
— É isso. Daqui a quinze dias, aqui mesmo. Se eu não aparecer até as cinco da tarde, você vem dois dias depois. Se na segunda vez eu não pintar, você abandona a área de imediato porque a barra sujou. Nesse caso, você se desloca para a PA-70 e caminha no rumo Norte. Uma viatura nossa irá resgatá-lo em algum ponto da estrada.
— Tudo entendido. Da minha parte, caso eu tenha dificuldade para comparecer ao apontamento, no dia e horário marcados, deixo um bilhete no oco desse tronco de acapu, bem aqui — disse, mostrando o esconderijo. O japonês fez sinal de assentimento com a cabeça. — Até a próxima e boa sorte, companheiro.
A conversa fora breve e em voz baixa. Gabriel tomou seu caminho de volta, e Tanaka pegou o barco, deixando-o descer a correnteza com suaves remadas. Já bem distante da foz do igarapé, ele acionou o motor e seguiu em direção ao Araguaia.


— Homem, como foi eu num sei. Só me alembro que o dia tava manhecendo, quando nois escuitemo o alvoroço aqui na porta do barracão. Eu mais o Juventino, nois se alevantemos da nossa rede e espiemos pra vê que alvoroço era aquele. Tava ainda meio escuro, mais deu de nois vê uns pessoal fugindo na carreira por detrais daquele pé de pau aculá. — Contava Valdilene, mulher de Juventino, a segunda pessoa no depósito, depois de Lourival e seu capanga Chicão.
No pátio fronteiro ao armazém, o cenário macabro: Os corpos mutilados de ambos, Lourival da Silva e Francisco Garcia, os antes temidos João Azedo e Chicão, estavam estendidos em grotesca posição, um ao lado do outro. No peito do primeiro, num pedaço de papelão, estava garatujado em letras vermelhas: "O POVO NÃO PERDOA SEUS EXPLORADORES."
Poucos em Vila Remédios sabiam assinar o nome e, seguramente, nenhum sabia ler. Por isso, ninguém deu atenção àquele pedaço de papelão que caiu para um lado, quando os indivíduos de mais expediente na comunidade, como Vicente e Valadão, tomaram a iniciativa de providenciar, sem mais delongas, o enterro dos dois infelizes.
Simplício, porém, aproveitou a confusão e, discretamente, recolheu o cartaz, dobrando-o com cuidado e guardando-o no seu embornal.
No entanto, o gesto do novato não passou despercebido ao mexeriqueiro Ariosvaldo, conhecido na região como Ari Buchincho, o maior leva-e-traz daquela freguesia.



Três dias depois do enterro, os paulistas começaram a aparecer em Remédios novamente. No início, chegaram dois rapazes e uma moça, Alfredo, Darci e Lúcia. Eram alegres e falantes, estando sempre em grande atividade.
No largo em frente ao armazém, foram reunindo os moradores do lugar. A maioria vinha por curiosidade, trazendo as mulheres e as crianças. A vila estava em festa. Nunca se rira tanta agitação no pequeno povoado. E veio gente também das redondezas, pois a notícia se espalhou como rastilho de pólvora.
- Meus amigos, vamos ter calma - falou bem alto o jovem Alfredo, fazendo um sinal apaziguador com as mãos. - Nós passamos um tempo sem vir aqui, cuidando de organizar a luta do povo em outros lugares desta mata que é muito grande. Mas, agora, estamos de volta. Hoje é um dia especial para todos aqui. É o dia da liberdade de vocês. De hoje em diante, não vai mais faltar comida, remédio, roupa e alegria nesta vila. Nosso companheiro Juventino vai ser o chefe do armazém e vai distribuir mantimento para todos, de graça. Tudo o que está aí dentro desse armazém pertence a vocês mesmos, pois foram vocês que trabalharam de sol a sol na colheita da castanha. - Um grito de euforia e esperança explodiu no meio da turba. Nenhuma referência à eliminação de João Azedo e Chicão. - O trabalho de vocês na mata vai continuar normalmente, mas, de agora pra frente, o que vocês produzirem será de vocês mesmos. Vamos todos cooperar para plantar uma horta comunitária e vamos, também, organizar uma escola para as crianças aprenderem a ler e escrever. - A alegria era geral.
- Esses paulista é tudo gente boa mesmo. Eu num falei pra ocê, inda ostrudia, seu Sumplício? - disse Curupira, catucando Simplício que, ao seu lado, ouvia tudo atentamente.
- É, Curu, cê tem razão. Vamo escuitá o que o tal de Alfredo tá dizendo - respondeu Simplício, fingindo compartilhar da satisfação que tomava conta da massa.
- ... temos que nos unir contra a ditadura, esse governo e essa gente que só querem explorar o povo trabalhador. Os ricos vão ter que distribuir a riqueza deles com os pobres. Chega de miséria e sofrimento, camaradas! Se for preciso, vamos pegar em armas para defender nossos direitos, esta terra que é nossa, a mata, o castanhal e a madeira que os ladrões do povo estão roubando daqui para vender no estrangeiro. - E, nesse diapasão, o discurso de Alfredo continuou por mais um bom espaço de tempo.
Simplício procurou se aproximar da frente da turba e, de quando em quando, aplaudia e gritava palavras de apoio. "Muito bem!", "É isso mesmo!" e "Apoiado!", buscando chamar a atenção para sua própria pessoa. Em certo momento, percebeu que Lúcia o observava intensamente.



Nos dias que se seguiram, mais guerrilheiros se instalaram na vila. Reuniram-se ao trabalho comunitário, além de Alfredo, Darci e Lúcia, quatro outros jovens cujos nomes eram Elias, Luiz, Walter e Marlene. Estava presente quase sempre, também, um outro que atendia pelo nome de Zenóbio e que parecia ser o chefe dos demais. Tudo estava fluindo normalmente, e a comunidade continuava no mesmo arrebatamento do início.
Simplício permanecia executando o mesmo trabalho para o qual fora contratado há um mês, o qual consistia no ensacamento e estocagem das castanhas que chegavam ao depósito todos os dias.
Assim, estava eles, num daqueles dias, realizando o seu trabalho, quando Lúcia entrou no depósito e se dirigiu diretamente a ele:
- Qual é o seu nome, ô Barbudo? - perguntou, um pouco autoritária, observando-o dos pés à cabeça.
- É João Simplício de Arruda, à suas ordens, dona — respondeu ele, tranqüila e humildemente.
- Que negócio de "dona" é esse? Me chame de Lúcia, como todos. Dona é palavra de burguês.
- Tá bão, do... é, discurpa, é, Lúcia - disse ele, fingindo acabrunhamento.
- De outras vezes em que estive aqui, não me lembro de ter visto você. Você é de onde? - Perguntou ela, incisiva.
- Tô aqui vai fazê um méis. Sou fio de Imperatriz... é, do Maranhão.
- Você parece que está nervoso, João Simplício!? Você está escondendo alguma coisa, camarada? - interrogou a moça, olhando-o firmemente nos olhos.
- Tô escondendo nada não, é... Lúcia - respondeu Simplício num tom que, propositalmente, denotava dúvida.
- Nós precisamos ter uma conversa com você, camarada. Hoje, na hora que largar o serviço, eu quero que você procure o Darci, na casa do velho Nonô Capivara. Ele estará lhe esperando, - disse Lúcia com firmeza. Depois, virou nos calcanhares e saiu do depósito.
Simplício esboçou um sorriso de satisfação. Seus planos estavam começando a adquirir forma efetiva. Agora sim, ele ia ter sua oportunidade de ouro para penetrar nos segredos daquele grupo guerrilheiro. "A mocinha é autoritária e voluntariosa", pensava enquanto acabava de fechar um saco de castanha e se preparava para colocá-lo nas costas, com seus braços musculosos.
O dia transcorreu rápido para ele. Seu cérebro trabalhava em alta velocidade, recordando cada detalhe de sua história de cobertura. "Tenho que agir com cautela, mas sem perder de vista o objetivo. Qualquer erro que eu cometa pode ser fatal. Esses subversivos são fanáticos e sanguinários. O serviço que eles fizeram no Lourival e no Chicão foi trabalho de matador profissional", pensava, quando Juventino gritou do fundo do depósito:
- Tá na hora, pessoal. Amanhã, eu quero ocêis tudo aqui bem cedo, causa que, dispois do armoço, nois vamo dispachá uma partida de castanha pra Marabá. - E, em voz mais baixa, falou para Arlindo, seu filho mais velho, que trabalhava como seu ajudante: — Agora, vai começa a entra dinheiro grosso pra nóis poder faze muita milhoria na vida, meu fio. Os paulistas são gente de tino. Se isso é que é sê cumunista, então nóis são cumunista. Cumunista é povo alegre e satisfeito, — completou, com uma gostosa gargalhada.


O tapiri de Nonô Capivara ficava na extremidade norte da vila, num ponto afastado quase dois quilômetros da habitação mais próxima. Era um lugar aprazível, numa curva do rio Gameleira, onde um igarapé de águas muito límpidas, cascateando por um pedregal, banhava os fundos e a lateral direita do terreno, antes de se espraiar, desaguando no rio principal.
Acima da barranca do Gameleira, depois da mata ciliar que fora preservada, Nonô, ao longo dos anos, desmatara com critério o local onde construíra sua choupana, plantando aqui e ali árvores frutíferas que lhe davam sombra e frutos. Havia, assim, mangueiras, cajueiros e um frondoso pé de abiu que fazia a alegria das crianças, com suas bagas amarelas e doces. Compunham, igualmente, o pomar outras fruteiras como o cajá, a sirigüela e o sapoti, originárias do Nordeste, bem como o cupuaçu, a pupunha e o bacuri, nativas da região.
Em face das peculiaridade do local, o sítio fora escolhido para abrigar a escola da comunidade, sem qualquer oposição da parte de Nonô, visto que ele mesmo tinha oito filhos, todos em idade escolar e ansiosos para beber os ensinamentos ministrados pelos paulistas. As aulas eram dadas no período vespertino, ao ar livre, à sombra do arvoredo, pelos jovens e entusiasmados Darci e Marlene, os quais haviam conquistado facilmente o afeto e a confiança da meninada.
Naquele entardecer, após ter largado o trabalho no depósito, Simplício dirigiu-se para a cãs de Capivara, conforme as instruções de Lúcia. Chegou depois que as aulas haviam terminado e encontrou Darci à sombra do abieiro, conversando com Nonô.
- Boa tarde. Sou João Simplício - disse - A moça Lúcia falou que era pra mim vim aqui, causa que o moço Darci tá precisando de falá cumigo. Pois não, tô as suas ordens.
Darci franziu o sobrolho e disse sério:
- É verdade, camarada. Mas, a nossa conversa não vai ser aqui, não. Dá licença, Nonô, pois tenho um apontamento com o camarada Simplício. Até amanhã.
Darci apontou para o lado direito do sítio, indicando a direção que deveriam seguir.
- Vamos por ali - disse, e liderou o caminho até o igarapé. - Agora, você atravessa na frente e eu sigo atrás. Vamos tomar a trilha depois daquela pedra grande.
Simplício obedeceu o comando do outro e atravessou por sobre as pedras com agilidade. Do outro lado do riacho, abria-se uma estreita trilha por entre as árvores. Caminharam em silêncio, cerca de três ou quatro quilômetros, pelos cálculos do agente, afeito aos exercícios de orientação na selva.
Breve chegaram a uma pequena clareira, onde nove outros guerrilheiros estavam reunidos em torno de uma fogueira sobre a qual uma panela cozinhava algo que Simplício não sabia o que era.
O que atendia pelo nome de Zenóbio mandou que eles se sentassem. O agente apoiou o traseiro num tronco de madeira e aguardou expectante. Todos portavam algum tipo de arma de fogo, carabinas, espingardas de caça de diversos calibres, um fuzil HK , e revólveres, ou pistolas automáticas. Cada um tinha consigo, também, um terçado, ou uma faca, ou ambos.
- Revistem o homem - disse Zenóbio.
Um guerrilheiro apalpou-lhe o corpo todo, `procura de alguma arma, enquanto outro revistava seu embornal.
- O homem está limpo - falou o que lhe revistara o corpo.
- No embornal só tem esta peixeira - disse o outro, mostrando a faca numa bainha de couro.
- João Simplício de Arruda... é esse o seu nome mesmo, o verdadeiro? - interrogou Zenóbio.
- É sim, senhor. João Simplício de Arruda é o meu nome de batismo, sim, senhor - respondeu ele com segurança.
- E você é mesmo de Imperatriz, como Lúcia nos informou?
- Sou sim, senhor. Nascido e criado lá.
- Você sabe o que acontece com quem mente, Simplício?
- Eu num tou mintindo, não, senhor, seu Zenóbio.
- Você morava onde, lá em Imperatriz? - inquiriu o guerrilheiro, fazendo um sinal para um de seus companheiros.
- Morava com a veia, minha mãe - disse Simplício com ar de ingenuidade.
- Eu não perguntei com quem você morava, seu cabra. Perguntei onde. Não se faça de besta comigo - falou Zenóbio com rispidez. - Responda o que eu lhe perguntar. Onde é que você morava?
- Num fique brabo não, moço. Eu só me atrapaiei - desculpou-se ele com cara de aflito. - Eu morava na rua Frei Mariano Procópio, número noventa e oito, pertinho do hospital Santa Isabel. O senhor conhece lá?
- Não me faça perguntas. Só quem pergunta aqui sou eu, entendeu? - E, virando-se para o se chamava Elias: - Anote o endereço que ele deu. - E, novamente, para Simplício: - Você parece que está escondendo alguma coisa, seu cabra. Como é que sendo da cidade, você veio parar neste fim de mundo? Vamos, responda! E não tente me enrolar.
Simplício fez um ar de ressabiado, abaixou a cabeça e falou com humildade:
- Eu não vou mentir pro senhor... Eu tou aqui fugido da polícia. - Disse e se calou, esperando a reação do outro.
- Por qual motivo? O que foi que você andou aprontando?
- É... eu passei um tal de Toninho Campolina na peixeira, num puteiro lá de Imperatriz... Foi legítima defesa, seu Zenóbio. O fio duma égua era mau elemento... Quis me espetar, eu furei ele primeiro...
- Mas, se foi como você está dizendo, não havia motivo para fugir.
- A família dele é só de cabra ruim e tem influência na cidade. Me juraram de morte... Então, pra não levar chumbo quente de tocaia, ou ser preso pela polícia, fugi pra cá, fingindo de caboclo da mata...
- Você sabe ler, Simplício? - Perguntou Zenóbio, menos tenso, quase cordial.
- Sei um pouquinho, sim senhor - respondeu ele. - Estudei o curso primário. Trabalhava de mecânico, na oficina Santo Antônio.
- E onde fica essa oficina? - continuou o guerrilheiro a interrogar.
- Fica no entroncamento, na rua João Lisboa, número cento e quarenta. É perto da Churrascaria Boi na Brasa, - detalhou Simplício com firmeza.
Zenóbio parecia estar satisfeito. "O cabra é coerente, a história tem lógica, ele deu respostas seguras e ricas em detalhes. Não deve estar mentindo, pensava. Antes, porém, de concluir, fez mais uma pergunta:
- Eu sei que você guardou aquele cartaz que estava junto aos corpos daqueles exploradores do povo. Por que fez isso?
A questão pegou simplício desprevenido. Teve que pensar com rapidez:
- Bem, foi só uma bobagem minha. Como lembrança.
Embora a resposta não fosse muito convincente, o próprio Zebóbio deu-lhe, a seguir, um ponto de apoio:
- O que você pensa do governo? E da nossa presença aqui?
- Não sei nada de política, mas acho que o povo está sofrendo, quase na miséria, e os ricos estão explorando cada vez mais os pobres e ficando cada vez mais ricos. O governo, que devia se preocupar com os pobres, só protege os poderosos.
- Você não respondeu tudo o que perguntei. O que você acha da nossa presença aqui na mata?
- O que eu acho é o que ouvi falar, que vocês estão organizando o povo pra lutar contra a ditadura e derrubar esse governo que explora os pobres - disse Simplício, sabendo que não podia externar opiniões mais profundas. Tinha que rodear o tema, sem demonstrar maiores sapiências.
- Você está disposto a trabalhar pela nossa causa? Observamos que você é forte, ativo, inteligente, e pode ser útil no trabalho comunitário, - falou Zenóbio em tom interrogativo.
- Estou disposto, sim senhor. O que estiver no meu alcance, vocês podem contar comigo. - Ele sabia que devia concordar e, embora tivesse deixado de lado o linguajar roceiro, precisava, também, cometer, aqui e ali, erros propositais de português para não denunciar sua cultura universitária.
- Tá muito bem Simplício. Você está dispensado. Pode voltar pra vila e continuar o seu trabalho no depósito. Voltaremos a fazer contato com você. Boa noite.
Simplício levantou-se, despediu-se de todos com um aceno de cabeça e tomou o caminho de volta.
Quando ele desapareceu na mata, Zenóbio disse para seus sequazes:
- A história dele parece verdadeira. De qualquer forma, vamos averiguar. Elias parte amanhã cedo para Xambioá, toma as providências junto ao nosso contato lá, fica acoitado na casa da Baleia e só regressa quando o Agulha voltar de Imperatriz com a coisa em pratos limpos. Não podemos correr riscos. Enquanto isso, Lúcia e Walter ficam encarregados de manter o homem sob vigilância discreta. Nada de muito aparato, para não assustar a lebre. Afinal, ele ainda não representa perigo.


Simplício adentrou a mata em passos rápidos. Estava de ânimo elevado. Seu primeiro contato com os guerrilheiros fora completamente satisfatório. "Alguém me viu pegar o cartaz no meio daquela confusão e me dedurou. Quase que esse pequeno detalhe estraga tudo. Esses subversivos vão checar a minha história. Espero que o pessoal de contra-informações tenha trabalhado limpo."
Chegou à vila e foi direto para a bodega, em busca de algo para comer. À luz do candeeiro, identificou Caxingó, atrás do balcão, e mais uma meia dúzia de fregueses, entre os quais Curupira, Ari Buchincho e Arlindo. Abancou-se no seu canto preferido, de maneira a manter as costas sempre voltadas para a parede, tendo uma visão completa do ambiente.
- Ô Caxingó, dá pra sair alguma coisa pra comer? - Perguntou ao bodegueiro.
- Dá de saí um insopado de piranha que os minino pescaro ditardezinha, mais farinha e feijão, - respondeu Caxingó.
- Com a fome que eu tou, isso é banquete, amigão. Pode manda fazer um prato pra mim, por favor?
- É pra já, Sumpliço. Num demora nada.
Quando o vendeiro saiu para os fundos da birosca, nos providenciamentos da comida, Zé Curupira foi logo puxando conversa:
- Ouvi falá que o povo da mata andou assuntando ocê, Sumpliço. Quem falô foi o Arlindo, que escuitô a menina Lúcia mandando ocê ir atrás de cunversá com o Darci.
Simplício estava de bom humor naquela noite, não se importando com o disse-que-disse, tão comum num lugar pequeno como aquele.
- É verdade, Curu. Tive uma boa prosa com os paulista. Cabei de chegar de lá. Ês são gente fina - concordou com um sorriso.
- Inda agorinha, o Ari Buchincho tava falando que ocê foi convocado pra essa prosa cum os paulista causa de que ocê escondeu os escrito que tava apregado no corpo do finado João Azedo. Ele disse inté que viu ocê guardá o papel, mas ficou calado, "que num era assunto meu", assim ocê falou, num foi, Ari? - disse Curu, buscando confirmar o fuxico com o próprio fuxiqueiro.
- Que eu vi o Simplício escondê o papel, isso vi, num vô negá. Mai eu fiquei calado inté hoje. Só falei inda agora quando ês dissero que a menina Lúcia mandou ocê falá com o Darci. Aí eu disse: "Vai vê é por causa de que ele escondeu o papel que tava apregado no corpo do infeliz do Lourival." - Falou o leva-e-traz com a cara mais lavada.
Então, foi esse filho da puta que me dedurou e quase me complica a vida", pensou Simplício, olhando para o fuxiqueiro com desprezo.
- Tá tudo limpo, não se preocupe com isso não, ô Buchincho - disse o agente sem se alterar.
- O Sumpliço tá inté com a fala deferente, dispois que proseou com os paulista. Tá não, Arlindo?
Simplício não prestou mais atenção à conversa. Caxingó pôs o prato no balcão, e o agente, enquanto comia, pensava: "Amanhã é dia do meu apontamento com o japonês. O diabo é que essa gente toda está de olho em mim, tanto paulista como não-paulista. Tenho que ter cuidado. Qualquer vacilo, o caldo entorna."


No dia seguinte, antes do amanhecer, Simplício levantou-se de sua rede armada num puxado atrás do depósito, vestiu-se depressa e partiu sorrateiro para o ponto de encontro com Tanaka.
No oco do tronco de acapu, deixou a seguinte mensagem:
"Obtive contato efetivo com o alvo. Até agora eles são dez. Nomes frios: Alfredo, Darci, Lúcia, Elias, Luiz, Walter, Marlene, Victor, Áurea e Zenóbio. Este último parece ser o chefe. Há outros na área que ainda não identifiquei. Vomitei minha história, Eles vão checá-la. Estou sendo vigiado. Até a próxima. G."
Eram sete horas da manhã. Antes de chegar de volta à vila, mas já bem perto, ele deu um mergulho num poço de igarapé. Ainda molhado e pingando água do cabelo e da barba, Simplício atravessou o largo e entrou no depósito. Todos estavam na lida, preparando o carregamento de castanha que iria para Marabá.
- Onde é que ocê andava, Sumpliço. Tamo precisando de braço pra carregar os sacos, - disse Juventino, o encarregado.
- Tava muito calor quando acordei. Fui me banhá no igarapé. Desculpa, Juventino, pelo atraso.
Juventino olhou para Walter que estava ao seu lado, e este respondeu com um sinal que tanto podia significar desdém como "não-me-amole" ou "resolva-você-mesmo".
- Tudo bem. Vamo trabaiá — finalizou o encarregado.


Uma semana depois, Elias retornou à Vila Remédios.
- O Agulha este em Imperatriz - relatou para Zenóbio e para um grupo de mais cinco camaradas - e todas as informações estão casando. Segundo ele me falo, a delegacia de polícia tem o registro de uma ocorrência, há três meses, na qual consta que um tal João Simplício de Arruda agrediu a faca um cidadão de nome Antônio da Silva Campolina. O fulano, que possuía várias entradas na polícia, morreu a caminho do hospital. O Agulha foi, também, ao endereço residencial que o Simplício forneceu e conversou com a velha que mora lá e que se chama Dona Iná. Ela disse que o filho, João Simplício, estava sumido de casa e que ela estava em dificuldades pra pagar o aluguel do barraco, e choramingou outros queixumes. Nosso contato viu, inclusive, uma fotografia do filho dela e, pela descrição que eu havia fornecido, a foto é bastante parecida com o original. O Agulha ficou com pena da velha e, até, lhe deu algum dinheiro. Na oficina mecânica, as informações também bateram. O dono acrescentou que o homem era muito trabalhador, bom empregado e coisas desse tipo. Diante disso, o Agulha voltou pra Xambioá e me apresentou este relatório.
Zenóbio e os demais ficaram satisfeitos e exultantes, uma vez que Simplício, além de deixar de ser uma preocupação, era um sujeito que tinha potencialidade para abraçar a causa comum pela qual eles lutavam.
Naquele mesmo dia, Zenóbio mandou chamar Simplício à sua presença. Lúcia foi, novamente, encarregada de fazer o contato.
Simplício estava acabando de arrumar uma carga de sacos de castanha numa carroça, para despachá-la para a PA-70, quando Lúcia chegou, alegre e sorridente.
- Olá, Simplício. Como vão indo as coisas, camarada? - Perguntou-lhe, dando-lhe um tapinha nas costas.
O agente estava distraído e levou um susto, mas logo se recompôs:
- Está tudo bem, Lúcia. Como tem passado?
A moça observou-lhe o torso nu, os músculos vigorosos e a cintura estreita, sem qualquer adiposidade. "É um belo homem e me atrai bastante", pensou ela, mas logo desviou o pensamento para sua missão.
- Zenóbio quer falar com você agora, - disse e, voltando-se para o encarregado, acrescentou: - ô Juventino, o Simplício e eu vamos dar uma saída. Segura o pincel aí, camarada.
Percorreram o mesmo caminho da vez anterior, apenas desviando por um pequeno atalho para não passar pela propriedade de Nonô Capivara. Ela caminhava à frente, com o traseiro redondo e bamboleante, a fazer meneios provocantes.
Entretanto, Simplício pouca atenção dava àqueles requebros. O encontro com Zenóbio, ele sabia, seria, desta vez, decisivo. "Não haverá meio termo."
Quando chegaram à clareira onde os guerrilheiros tinham o acampamento, o agente notou que, agora, havia um número maior. Rapidamente, contou dezessete. Sete a mais que na outra vez. Todos homens ainda jovens. Notou, igualmente, que o clima era diferente. Pareciam mais descontraídos, menos tensos, mais alegres e menos agressivos. Ele mesmo se sentiu mais leve.
Zenóbio o saudou efusivo.
- Bom dia, Simplício. Vamos chegar pra cá, pra sombra. - E eles se reuniram em baixo de um ipê-roxo. - Tenho boas notícias pra você, camarada. Sua mãe está bem de saúde, e nós providenciamos um dinheiro pra ela. Boa gente, a Dona Iná. Quanto a você, pode ficar tranqüilo, a polícia não vai achá-lo aqui. Você, agora, está entre amigos.
Simplício vibrou por dentro. O plano dera certo. O pessoal de contra-informações trabalhara bem. Na pesquisa para montagem de sua história de cobertura, há mais de dois meses, um agente descobrira a respeito do crime de Imperatriz. O pessoal de investigação foi acionado e o verdadeiro João Simplício fora preso em Araguaína, sem que a polícia de Goiás e do Maranhão tomassem conhecimento. O sujeito prestou todas as informações necessárias, todas devidamente conferidas, e, depois, foi trancafiado, sob sigilo, num xadrez da federal em Recife, Pernambuco. Após essas providências, fora fácil ao agente Gabriel se encaixar no papel. O Simplício real ia ficar uma boa temporada no xilindró, sem entender muito o que estava acontecendo.
Assim, demonstrando alegria, mas por um motivo diferente do que imaginava Zenóbio, o falso Simplício falou um tanto sobranceiro:
- Ah, então eu passei aquele vexame aqui, naquele dia, por nada. Tudo bem. Pelo menos, agora, vocês acreditam em mim. E, de qualquer maneira, obrigado pela ajuda que vocês deram pra minha velha mãe.
Houve um certo ar de constrangimento, logo superado pelo próprio Zenóbio.
- Que é isso, camarada. Você tem que compreender o nosso lado. Temos que zelar pela segurança, nossa, sua e de todos, é ou não é? - Deu um piparote amigável no braço de Simplício e completou: - Vamos tratar de coisas mais importantes. Você é um sujeito decente. Sabe ler e é trabalhador. Nós precisamos de seus serviços como encarregado do armazém. O que é que você acha disso?
Simplício fingiu que meditava sobre a proposta e, afinal, respondeu:
- Não sei, não senhor. E, depois, tem o Juventino lá.
- Bem, pra início de conversa, vamos acabar com essa história de senhor. Você agora é dos nossos e, aqui, todos são iguais. Tá certo, camarada? - Falou o guerrilheiro.
- Tá, tá certo sim, Zenóbio.
- Pois bem, o problema é que nós precisamos dos mais capazes, dentro da comunidade, pra assumir as funções de chefia e de comandamento. O Juventino é um sujeito leal à nossa causa desde a primeira hora, mas é analfabeto. Entretanto, nós não vamos tirá-lo do cargo de encarregado do depósito. Vamos, apenas, dividir as tarefas. Ele no depósito, você no armazém. Aceitas?
Simplício já sabia o que responder.
- Aceito, com uma condição: Que eu participe das decisões sobre o uso do dinheiro da venda das castanhas. O Juventino só quer comprar jabá, farinha , feijão, querosene, óleo Diesel e óleo de cozinha. Essa gente tá precisando aprender a usar material de higiene. Quero montar um pequeno depósito de construção e ensiná-los a fazer fossas e privadas. E tem muito mais coisa pra se fazer aqui.
- Tá vendo, minha gente? - Disse Zenóbio. - O camarada Simplício tem visão das necessidades do povo. É isso mesmo! Negócio fechado, você assume o armazém com carta branca. Só tem que prestar contas conosco. Lúcia vai ficar como sua supervisora, ela é muito boa com números.
Simplício atingira o seu objetivo, conquistar a confiança dos paulistas, dando idéias que fossem ao encontro do que eles pregavam, a melhoria das condições de vida do povo menos favorecido. Tal meta, afinal, não era privilégio exclusivo deles. "A revolução de 31 de março", pensava o agente, "além de combater os inimigos da democracia e dos valores cristãos, visa também ao aumento do nível de bem-estar econômico e social de todos os brasileiros."
Durante a conversa informal que se estabeleceu a seguir, Simplício teve oportunidade de conhecer os guerrilheiros que haviam se reunido ao grupo: Tonho, Ernani, Miguel, Márcio, Fábio, Fernando e Leopoldo. Descobriu, também, que aquele era o total do destacamento dos Caianos, dezessete.


Simplício assumiu a função de encarregado do armazém, não sem despertar o ciúme silencioso de Juventino, o qual não se conformava em ter seu prestígio abalado por um "sujeitinho fugido da puliça, chegado na vila num tem dois meis". O rancor lhe corroia o espírito, embora ele procurasse disfarçar, mostrando-se cooperativo em relação às idéias do outro.
Três dias depois de iniciar seu trabalho à frente do armazém, Simplício começou a perceber a presença assídua de Lúcia no planejamento e na execução de todas as tarefas a que ele se obrigara. Sua primeira reação foi de aborrecimento. "Estarei ainda sob vigilância?", perguntou-se. O passar dos dias, no entanto, mostrou-lhe que não era isso. Ele se enganara.
Ao entardecer de cada dia, após ter fechado o armazém, sua rotina era sempre a mesma. Saía discretamente para um banho de igarapé, num poço afastado e escondido no meio da floresta. Ali, se isolava, lavando o corpo nas águas frescas do riacho e, principalmente, lavava a lama e relaxava das tensões que o assaltavam.
Naquela tarde, depois do banho reparador, estava recostado a uma pedra, olhos fechados, meditando seus problemas, quando um ruído de folhas pisadas o despertou. Abriu os olhos atento, pronto para entrar em ação.
Lá estava ela. Encostada a uma árvore, Lúcia o observava brejeira, um sorriso impudente a lhe brincar nos lábios.
— Olá — disse ela — perturbei a sua paz?
A princípio, ele ficou sem saber o que dizer, ou fazer. A visão dela despertou-lhe emoções que estavam adormecidas desde que se engajara naquela missão. Procurou palavras, mas não as encontrou. Sorriu. Apenas sorriu.
— Posso dar um mergulho também? — Perguntou a moça com uma meiguice que ele não notara antes.
— Claro, a água está ótima — falou, já recuperado do susto inicial. — Venha.
Ela não teve qualquer pejo em se despir, ali mesmo. Tirou a roupa calmamente, sem pressa. Ele ficou olhando. Lúcia era bonita e esbelta. Morena clara, cabelos castanhos, olhos vivos e uma boca larga, carnuda, de lábios sensuais. Seu corpo era jovem, saudável, perfeito.
Ela terminou de se despir e mergulhou na água cristalina e inigualável daquele recanto paradisíaco perdido na selva. Quando voltou à tona, nadou para junto dele. As palavras não eram mais necessárias. Abraçaram-se ternamente. Suas bocas se encontraram sem esforço, em seqüência natural ao despertar e ao dar curso ao turbilhão de sentimentos e desejos que tomava conta de ambos. E eles se amaram. Um amor que não era nem esquerda, nem direita, nem comunista, nem capitalista. Era, apenas, homem e mulher. Vida. Emoção. Enlevo. Tudo! Livre de ódios e de paixões mesquinhas.




Alguns dias depois, Simplício encontrou-se com Tanaka no local de sempre. Passou-lhe as informações que levantara na última quinzena e perguntou ao nipônico:
- Como vão as coisas nos Perdidos e no Paraíso?
- Edmar e Pompeu conseguiram contato. Já temos bastante informações sobre o grupamento dos Perdidos, mas o Pompeu está com algumas dificuldades lá no Paraíso, — disse o japonês.
Despediram-se com um aceno, e cada um retornou para sua respectiva base de operação.





Na segunda metade de agosto, o trabalho comunitário, desenvolvido por Simplício com a ajuda entusiasmada de Lúcia, já apresentava os primeiros resultados. Os moradores da vila começaram a perceber as vantagens dos novos hábitos e, na mesma proporção, aumentavam suas participações na implementação das idéias progressistas do agente.
Por outro lado também, o disse-que-disse do relacionamento de Simplício e Lúcia corria à brida solta, tendo muito da interferência do conhecido fuxiqueiro Ari Buchincho.
O sentimento de amor, carinho e respeito que crescia entre eles tornava-se, a cada dia, mais e mais forte. No entanto, era Simplício quem vivenciava, sozinho, torturantes conflitos de consciência, nos quais seu espírito se afligia na busca da solução impossível, aquilo que pudesse conciliar o afeto e o cumprimento do dever.
Estava ele, pois, nesse estado d'alma quando, certo dia, Lúcia lhe disse que Zenóbio desejava uma entrevista com ambos. No momento em que ela o notificou da convocação, Simplício não fazia idéia da súbita mudança de rumo que os acontecimentos tomariam.
Depois de trocarem cumprimentos e comentarem amenidades, o guerrilheiro os colocou a par do motivo real do encontro.
- Camaradas, como vocês sabem, as forças desse governo corrupto, tirano e explorador do povo deram uma trégua, mas ela não deve durar muito. Precisamos nos armar e nos organizar para a luta que não deve tardar. Dentro de algumas semanas, vamos receber um carregamento de armas e munições que os nossos aliados cubanos estão preparando para fazer entrar no país, pelas Guianas, ou por uma praia deserta no litoral Norte. Nossos dirigentes, no entanto, necessitam de recursos financeiros para o transporte da carga até esta selva. Por esse motivo, temos que interromper, por ora, as atividades que vocês dois, tão diligentemente, vêm executando em proveito do povo sofrido desta vila. O dinheiro proveniente das próximas vendas de castanha será canalizado para o Exército Popular em formação, - finalizou Zenóbio em tom solene.
- Tudo bem, Zenóbio - disse Simplício, com tranqüilidade, embora a informação que acabara de receber o tivesse inquietado. - Agiremos como você determinou.
Despediram-se ali mesmo. Lúcia ficou para cuidar de outros afazeres, e Simplício retornou à vila com a cabeça em rebuliço. Seu próximo contato com Tanaka seria somente dentro de cinco dias. Entretanto, aquela informação era quente demais e não poderia esperar tanto. Não havia tempo a perder, Era preciso tomar uma decisão. "E Lúcia?", Pensava ele, atormentado. "Amo essa moça, mas tenho uma missão a cumprir. Valerá a pena abandonar tudo por ela? Romper com o compromisso que tenho comigo mesmo, com minhas idéias, com minha pátria?" O choque de sentimentos, de emoções e dos conceitos que ele tinha arraigado em relação ao cumprimento do dever lhe afligia dolorosamente a alma.
Mas, ao chegar à vila, já tomara uma decisão. Suas instruções eram claras para o caso de emergências. "À pátria tudo se dá, nada se pede, nem mesmo compreensão." O ensinamento piegas dos tempos de escola militar voltou-lhe à mente.



Na madrugada, Simplício levantou-se em silêncio, arrumou a matula com seus poucos pertences e ganhou a trilha que conduzia à PA-70. Sabia que a jornada ia ser árdua. Até chegar à estrada, seriam, mais ou menos, oitenta quilômetros por um caminho tortuoso no qual surpresas desagradáveis podiam acontecer a qualquer momento. "Quando derem pela minha falta, estarei cinco ou seis horas na frente", estimava. "Dificilmente, eles me alcançarão."
No embornal, levava um bom pedaço de jabá e um pouco de farinha grossa, No coração, uma ferida que só o tempo seria capaz de cicatrizar.
Ao anoitecer daquele mesmo dia, o agente Gabriel chegou à estrada. Estava exausto. A marcha forçada esgotara-lhe as energias. Numa ravina escondida na floresta, armou sua rede entre dois galhos de árvore e deitou-se para dormir. Demorou, contudo, a conciliar o sono. Sentia-se suado, cansado e sujo, de corpo e de alma.
Ao raiar do dia, acordou e se pôs novamente em marcha. No início da tarde, conseguiu, afinal, uma carona num velho caminhão. Em breve estaria em Marabá.
O que Gabriel não sabia era que um pedacinho de si mesmo ficara naquela selva.

Capítulo IV

São Raimundo era um lugarejo pobre e pacato, como tantos outros da região, perdido nas barrancas do Araguaia e carente dos mais simples recursos. O município todo talvez não tivesse mais do que três ou quatro mil habitantes. Médico nunca se viu por ali. O posto de saúde estava fechado há vários meses por falta de enfermeiro e de material.
Contudo, havia ali uma delegacia de polícia, O delegado, corrupto, bêbado e incompetente, era o cabo Bráulio da Polícia Militar do Pará. Também, como não ser corrupto com o salário de fome que recebia? "Se um coronel, que é um coronel, tá ganhando o mesmo que um sargento da PM de Minas, ou de São Paulo, 'çeis tão querendo o quê? Que eu viva de brisa?", ponderava ele, dirigindo-se aos seus dois auxiliares, os soldados Viriato e Josué. "Com mulher e cinco curumim pra criar, tenho mais é que me virar." Como não tomar uns tragos num fim de mundo daqueles, onde não acontecia nada? Era a outra ponderação que ele fazia para si mesmo. Quanto à incompetência, desta não tinha consciência. Se não o fosse, certamente não estaria ali.
O soldado Viriato, porém, não compartilhava da maneira de pensar de seu chefe. É verdade que cometera o desatino de fugir com Rosa, ela com quinze, ele com dezoito, há sete anos. A moça ficara grávida logo, e ele, com pouco estudo, agarrou a primeira oportunidade que surgiu. Sentou praça na Polícia Militar. Um ano depois, foi destacado para servir em São Raimundo. "Vai ser por pouco tempo, Viriato. Mais tarde, a gente consegue transferir você para um lugar melhor", dissera-lhe o sargento Murilo, seu instrutor no curso de formação de soldados. Depois de seis anos, suas esperanças estavam minguando, mas ele ainda as tinha. Seu sonho era ir para uma cidade maior, Marabá, Santarém, ou até, quem sabe, Belém. Concluir seus estudos, progredir, dar uma vida melhor para Rosa e os três filhos, aliás quatro, pois havia mais um a caminho.
- Tô aperreado, Josué - dizia Viriato, naquele anoitecer chuvoso de julho de 1973. - A Rosa tá entrando no derradeiro mêis, mais num tá igual como nas outras veis. Ela não está sentindo bem, e nois nesse buraco, sem um doutor, sem nem um enfermeiro. Se alguma coisa num andá direito, como é vai ser? O que é que eu faço?
- Num vai acontecer nada não, Viriato. Num se aperreie, homem. Vai tudo dar certo, com a ajuda de Deus. - Josué tentava animá-lo, embora soubesse que em caso de um imprevisto a única solução era encomendar a alma ao Criador.
Como se estivesse adivinhando, passava pouco da meia-noite quando Viriato acordou com os gemidos dolorosos de Rosa. À luz da lamparina, observou que a mulher estava pálida, lavada em suor, e um líquido sanguinolento encharcava a rede onde ela estava deitada.
- Valha-me, Deus! - Gritou o soldado e saiu correndo do barraco em busca de socorro.
Quando a velha Genoveva chegou, foi logo dando sua opinião abalizada de quem teve dezesseis filhos, embora só nove houvessem sobrevivido.
- Essa criança tá no ponto de nascê, mais tá travessada. Se não for na mão dum dotô, tá arriscado de morrer os dois, a mãe e o fio.
Viriato entrou em desespero.
Foi quando Raimundo Nonato, um rapazola de quinze anos, filho do vizinho e que havia acordado com o alvoroço, disse:
- Tem uns paulista acoitado no sítio do Buriti, bem perto daqui. É capaz deles tê argum remédio, ou quarqué uma outra coisa pra liviá o sofrimento de dona Rosa.
Todos olharam para o soldado, mas ele não estava em condições de decidir nada. Genoveva foi quem tomou a iniciativa:
- Vá logo, minino, atrais desses paulista. Tirante Deus, é a nossa única salvação.
O rapazinho não se fez de rogado. Partiu em desabalada carreira e sumiu na noite escura.
Cerca de uma hora e meia depois, Raimundo Nonato chegou de volta acompanhado por um homem e uma mulher, Olavo e Vera. Os dois assumiram imediatamente o controle da situação. Com jovialidade e calma, mas também com firmeza, eles determinaram que todos, à exceção do marido, saíssem do recinto onde gemia de dor a parturiente. Depois de um breve exame, ele confirmou o que dissera a velha Genoveva:
- A bolsa amniótica rompeu, e a criança está atravessada. Há risco de vida para ambos, - falou Olavo para Vera. E, olhando para Viriato, ordenou: - Peça a uma das mulheres que ferva uma vasilha d'água. Arrume lençóis e toalhas limpas, quantas houver. Quanto a você, camarada, aguarde lá fora e não se impressione com os gritos de dor de sua mulher. Ela vai se salvar. Confie em mim. - Ele mesmo não tinha tanta confiança assim, mas era preciso confortar o infeliz, para tentar uma manobra de rotação do bebê, extremamente dolorosa e arriscada, principalmente quando executada sem anestesia.
Olavo não era médico. Abandonara a faculdade, 1967, para se juntar à luta revolucionária, interrompendo os estudos no início do quinto ano de medicina. Numa situação como aquela, entretanto, tinha que tentar salvar a pobre mulher e, se possível, a criança.



Eram nove horas da noite. Na calçada da Farmácia Santa Rita, sentados em cadeiras e tamboretes, um grupo de pessoas estava conversando e aproveitando a fresca para aliviar o calor, antes de se recolherem para dormir. Reuniões desse tipo já se tornavam habituais ali, sempre encabeçadas pelo próprio dono do estabelecimento, um negro bonachão, fala mansa e conversa fácil, o qual há cinco meses montara seu negócio na Vila Palestina.
Levindo era o seu nome, mas atendia também pela alcunha de Azeitona e estava sempre pronto, a qualquer hora do dia ou da noite, para atender aos fregueses, um morador da vila, ou um trabalhador rural das redondezas. Suas fórmulas e receitas resolviam quase tudo numa comunidade carente como aquela. Por isso e por sua simpatia, conquistara rapidamente a amizade e o respeito daquela gente, e eles, por sua vez, contavam-lhe tudo, desde as fofocas domésticas até as últimas novidades sobre o povo da mata.
Naquele momento, com seu potente rádio portátil Transglobe, Levindo sintonizava, como fazia todas as noites, o programa mais ouvido da região.
"Senhoras e senhores, esta é a rádio Tirana, transmitindo especialmente em português, diretamente da Albânia para o Brasil, " dizia o locutor com leve sotaque lusitano, após os acordes triunfais de marchas e hinos militares que antecediam ao noticiário. "As forças guerrilheiras do Araguaia, com o apoio das massas camponesas, preparam a formação do Exército Popular para a derrubada do governo imperialista e corrupto brasileiro. A hora da libertação está, pois, chegando. Operários e trabalhadores rurais, estudantes, homens e mulheres do povo, uni-vos em defesa da democracia, contra os usurpadores do poder..." E nesse diapasão, a transmissão prosseguia, mesclada com músicas marciais e brados de exortação.
Quando o programa terminou, os comentários em torno do assunto logo começaram.
- Esses paulista são gente boa. É eles que tão defendendo nois contra a exploração dos rico e dos puderosos. Oceis num subero do causo do Manuel? Um desses grilero de terra teve lá, com uma cunversa mole, falando de comprá as terrinha dele e num-sei-quê-mais-lá. A salvação foi os paulista que chegaro em tempo e metero bala no fio du'a égua... - disse um.
- Eu, por mim, tou cum eles pra o que dé e vié. Na pricisão, largo muié, fio, tudo e vô lutá mais eles, do lado do povo. Chega dos rico explora os pobre. Nois trabaia feito um disgramado, e os fio da puta na capital, no bem bom... - acrescentou outro mais exaltado.
- Num sei não, cumpadre, se essas coisa qui tão aconticendo aqui é coisa certa, não... - obtemperou um outro.
O negro Levindo alimentou a conversa:
- Voc6es não estão vendo que esse punhadinho de paulistas não tem condição de lutar contra o governo!?
- O quê? Levindo, larga mão de falá besteira. O governo já mandou pra cá sordado e avião de ruma, cadê que acabou com os paulista?
Foi naquela hora que o coureiro Marinalvo, acabado de chegar e ouvindo o final da conversa, disse:
- Oceis já subero da novidade? - E sob o olhar expectante dos demais, continuou: - Ocêis tão alembrado daquele sordado de puliça, um tar de Viriato, lá de São Raimundo? Pois num é que o danado se ajuntou com os paulista. Roubou as arma da delegacia e capou o gato pra mata!
- Como foi isso, homem? - Perguntou Levindo.
- Disse que osturdia a muié dele que tava com o bucho por aculá, na hora de discansá o minino travessou. E ela já tava sangrando pra morre. Vei um paulista que parece que é douto, e salvou a muié e a criança. Pois, num deu uma sumana dispois do aconticido, o sordado arribou pra mata, carregando deis fuzil da delegacia. Diz que o cabo Bráulio, o delegado, tá quase doido...
O informe necessitava de confirmação, mas era importante. Levindo ia ter trabalho nos próximos dias. Teria que apresentar um relatório completo das últimas informações levantadas. Sim, porque Levindo era um nome frio. Ele era o sargento Inácio da Silva Orozimbo, agente do CIE, designado para assumir o papel de dono da farmácia que a agência central comprara, para lhe dar cobertura na coleta de informações sobre a atividade subversiva da região. A designação devia-se aos seus conhecimentos no ramo, adquiridos, na juventude em Taubaté, como aprendiz e auxiliar de farmácia, antes de se habilitar à Escola de Sargento das Armas.
A conversa ainda continuou por mais algum tempo. Depois, cada um foi saindo à sua vez para dormir, e o silêncio tomou conta do lugar.



No dia seguinte, Levindo tomou providências relativas à averiguação do informe, descobrindo que, de fato, o roubo das armas ocorrera em São Raimundo. O soldado Viriato fora o autor do crime e fugira, provavelmente para se juntar aos guerrilheiros. Cinco, e não dez, mosquetões MN-16/34 (modelo nacional de 1916, aperfeiçoado em 1934) haviam desaparecido juntamente com dois cunhetes de munição.
Levindo reuniu essa informação a outras que havia coletado depois do último encontro com seu contato, o Dr. Banzé, preparando o relatório que entregaria dois dias depois.
Na véspera do apontamento, contudo, mais um informe chegou à farmácia. Xexéu Barroso, um conhecido grileiro de terras e proprietário da Fazenda Buritizal, fora justiçado pelos paulistas. Segundo o boato corrente, os peões da fazenda invadiram a sede e fizeram da casa-grande um quartel de resistência do Exército Popular. A ser verdade, essa era a primeira ocorrência desse tipo na região.
"A situação está se agravando", pensou Levindo.




Acabara de chover forte, uma daquelas chuvas características da Amazônia, quando se pensa que o mundo todo vai despencar, mas cuja duração é bem curta. Depois da tempestade, aquele cheiro gostoso de terra lavada. A estrada na qual Tanaka trafegava com seu jipe estava, entretanto, uma só lama. Mesmo com tração nas quatro rodas, o deslocamento era penoso. Ele olhou para o relógio de pulso e viu que estava atrasado para seu apontamento com Pompeu. Ainda faltavam uns quinze quilômetros para chegar ao local onde deixaria o carro e seguiria o restante do trajeto a pé.
"A coisa está ficando perigosa. Pompeu já conseguiu levantar os nomes dos subversivos do Paraíso. Não descobriu mais nada porque os putos não engoliram de todo a história dele", pensava o nissei enquanto dirigia. "Tá na hora de retirar o bicho da área."
E assim cismando, chegou afinal ao lugar de parada. Colocou o jipe de ré numa posição que facilitasse uma fuga rápida, em caso de emergência, escondido entre a vegetação. Desceu e seguiu as marcas que ele mesmo fizera para sinalizar o caminho. Não eram traços visíveis a qualquer um. Só ele os reconhecia. Foi se aproximando com cautela. Espreitou por trás de uma árvore. O companheiro estava lá.
Eles não haviam trocado nem meia dúzia de palavras quando tiveram a atenção despertada por um ruído estranho. O nissei sacou sua arma, mas não houve tempo para mais nada. Uma saraivada de balas quebrou , de súbito, o silêncio da floresta. Tanaka se jogou na direção de Pompeu, derrubando-o no chão e, a seguir, na posição agachada, descarregou o pente de munição, atirando a esmo no rumo de onde viera o fogo.
- Seus subversivos filhos da puta! Mete a cara de fora, veados, covardes! - Gritou ele.
Como era costume, após a descarga inicial, os guerrilheiros fugiram, deixando apenas o cheiro de pólvora no ar. Eles não tinham armamento para sustentar um combate e temiam um enfrentamento por um tempo maior.
Pompeu recebera um tiro nas costas, na altura do pulmão direito. Estava vivo, mas em estado de choque. Tanaka sobraçou-o sem perda de tempo, colocando-o nas costas e caminhou o mais depressa que podia para o lugar onde deixara o jipe.
Dirigiu no limite de velocidade que a estrada e a viatura permitiam. No banco traseiro, Pompeu dizia coisas que ele não conseguia entender direito:
- Depósitos... ma... terial...
O agente Pompeu não resistiu. Antes de chegar à Transamazônica estava morto.



Na noite seguinte, reunidos como sempre na calçada da Farmácia Santa Rita, Levindo e outros, inclusive o Dr. Banzé, no papel de vendedor de laboratório, ouviam a rádio Tirana.
"... crescem as ações vitoriosas das forças guerrilheiras do Araguaia. Em uma manobra conjunta, guerrilheiros e camponeses tomaram de assalto a Fazenda Buritizal e justiçaram o gajo que se dizia dono das terras, um ladrão e explorador do povo. Em outra ação corajosa e fulminante, integrantes do Exército Popular emboscaram dois traidores da pátria que tentavam espioná-los na localidade conhecida como Jaboti. E atenção, senhoras e senhores, povo do Brasil, já prevendo a derrota, membros das Forças Armadas Brasileiras, gente do povo como vocês, começaram a desertar e estão se incorporando às forças guerrilheiras, sendo recebidos com respeito e consideração. O dia da vitória total e da libertação se aproxima! Todos juntos, homens e mulheres, operários e camponeses, uni-vos na luta..."
Levindo olhou significativamente para Banzé, e este pensou: "Temos que descobrir o filho da puta que está enviando informação para a Albânia. O pessoal de comunicações vai ter que achar o engraçadinho. E, aí, coitado dele..."
A reação daquela gente humilde ao noticiário da rádio Tirana não se fez esperar:
- ... não foi isso qui eu falei pro cêis, qui esse povo da mata é danado de porreta! Num tá vendo aí? Num foi só o sordado Viriato qui arribou pro lado dos paulista, gente. Num viu o qui o rádio falô?
- Essa é rádio de respeito, cumpadre. Num é dessas mequetrefe daqui não. Essa é do estrangeiro, meu fio!
A conversa continuava, quando Levindo disse:
- Hoje, vocês vão me perdoar, mas tenho que entrar mais cedo. Eu mais o seu Banzé temos que fazer uns acertos de pedido de remédio. Boa noite pra todos. — E os dois se retiraram. Logo, os demais também foram saindo e se recolhendo às suas casas.

Capítulo V
A tarde ia caindo quando o caminhão em que viajava Gabriel chegou ao entroncamento da PA-70 com a rodovia Transamazônica. Ele teria que descer ali para não levantar outras suspeitas. A história que o agente contara ao motorista, um sujeito falante e perguntador, parecia não o ter convencido.
- Pode parar aqui no entroncamento, por favor, amigão. Vou ficar aí mesmo - disse Gabriel.
- Que é isso, meu chapa? Te levo até Marabá. A gente toma um bom banho, come uma bóia na pensão da Noca e, depois, vamo pra zona, meu chapa, pegá umas putas e tomá cerveja. Que tal?
- Não posso, amigão. Tenho uns assuntos pra resolver aqui perto. Quem sabe, mais tarde, a gente topa lá na zona? De qualquer forma, obrigado pela carona.
Gabriel desceu do caminhão, acenou com a mão para o motorista e ficou aguardando parado, esperando que o veículo se afastasse. Só então iniciou a caminhada de cerca de nove quilômetros até a Casa Azul.
Anoitecia. Depois da cerca, seguindo a trilha em direção aos alojamentos doas agentes, alguém gritou:
- Alto lá, meu velho, aonde é que você pensa que vai?
Gabriel parou. O companheiro chegou mais perto, olhou-o de cima até em baixo e disse incrédulo:
- Puta que pariu, é você mesmo Gabriel?
Naquela noite, o agente Gabriel, depois de um banho de verdade, com muito sabão para tirar a sujeira que lhe impregnava o corpo, foi examinado pelo Dr. Walter, médico da equipe. O doutor verificou que o rapaz estava à beira de colapso nervoso e recomendou que, depois de se alimentar, tomasse um vasodilatador e dormisse o mais que pudesse.
- O que você tiver para dizer, vamos deixar para amanhã - falou para o agente e reiterou para Padilha e para o Gordo, pois ambos aguardavam ansiosos. — Hoje, nada de interrogatório.
A contragosto, a prescrição médica foi obedecida.



No dia seguinte, após um interrogatório minucioso de mais de duas horas, no qual Gabriel contou a respeito do carregamento de armas e munições que estava para entrar clandestinamente no país, o agente perdeu a tramontana e, por pouco mais ou nada, tentou agredir um companheiro.
O Dr. Walter foi chamado imediatamente e, desta vez, recomendou que Gabriel fosse afastado da área para um período prolongado de recuperação.
- A missão dele não foi fácil, e me parece que algo mais aconteceu, levando-o a este estado de esgotamento. Uma temporada longe daqui vai fazer bem a ele e a todos nós.
- Percebi, também, durante o interrogatório, que ele estava tentando esconder alguma coisa — complementou o Gordo.
- Não deve ser nada tão importante assim - disse o insensível e intragável Padilha.
As informações trazidas por Gabriel, no entanto, desencadearam uma série de providências e pelo menos um acontecimento dramático, o qual, por pouco, não complicou o país no âmbito diplomático.



Na "reunião-do-pôr-do-sol" daquele dia, o Dr. Kiner apresentou-se com o cenho carregado. Assaltavam-no inúmeras dúvidas e preocupações. As notícias trazidas por Gabriel eram o centro da questão.
- Meus senhores, as informações a respeito de um possível desembarque de armas e munições, pela fronteira terrestre, ou pela marítima, são de máxima gravidade e vão exigir de todos um esforço redobrado. Esse material não pode entrar na região de forma alguma, sob pena de colocarmos a perder todo o trabalho até agora desenvolvido, - perorava Kiner, enquanto em seu íntimo pensava no desastre que aquilo seria para sua promoção, caso os subversivos recebessem o armamento. - Hoje à tarde, falei com a agencia central em Brasília. Nossos chefes estão igualmente preocupados e, a nível do alto-comando, várias medidas estão sendo tomadas. No caso específico da nossa área de responsabilidade, encarreguei o Tomé de proceder a um estudo dos pontos mais vulneráveis de acesso à região, nos quais teremos que reforçar a vigilância. Ele vai, agora, nos apresentar os resultados do seu trabalho.
Tomé tirou do bolso uma ponteira telescópica, pigarreou, olhou para os companheiros e disse:
- Porra, antes desse estudo, nunca pensei que a área fosse tão grande, tivesse tantos pontos vulneráveis e tantos problemas de jurisdição envolvidos. A região - disse apontando para o mapa - compreende uma área de aproximadamente vinte mil quilômetros quadrados, quase do tamanho do Estado de Sergipe. Basicamente, teremos que reforçar todos os acessos rodoviários nos seguintes locais. - E foi nomeando os pontos, ao mesmo tempo em que mostrava cada localização na carta geográfica.
Depois dessa explanação inicial, Tomé concluiu dizendo:
- Além disso, há a necessidade de se montar um patrulhamento fluvial, cobrindo o Araguaia desde Pontão até aqui em Marabá. Contudo, o nosso maior problema são os conflitos de jurisdição. Observem que a região abrange partes de três Estados, Pará, Goiás e Maranhão. Se fosse possível coordenar a ação das polícias militares desses Estados, no trabalho de patrulhamento terrestre e fluvial, seria ótimo. No entanto, infelizmente, chegamos à conclusão de que isso é, na prática, impossível. Assim, minha sugestão é que a Polícia Federal seja colocada na missão, reforçada por pessoal do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, para guarnecer os pontos. Naturalmente, esse pessoal, caso minha opinião seja aceita, deverá atuar em trajes civis, não se caracterizando ação militar. Em resumo, é esse o resultado do nosso estudo e o que eu tinha a dizer. O detalhamento deverá ser objeto de outras reuniões específicas com o pessoal envolvido diretamente.
O Dr, kiner e os demais aprovaram as sugestões do subchefe de operações, e a reunião foi encerrada.
No dia seguinte, pela manhã, uma mensagem cifrada foi redigida, codificada e enviada para Brasília, solicitando o engajamento da Polícia Federal na missão de patrulhamento das estradas de acesso à região, bem como para a vigilância fluvial.




Enquanto isso, depois de uma série de reuniões nas quais tomaram parte membros dos Estados-Maiores do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, na capital federal, decidiu-se que a Força Aérea e a Armada se empenhariam na patrulha do mar territorial, no trecho entre Fortaleza, capital do Ceará, e o Cabo Orange, no Oiapoque, Amapá. De tal maneira que qualquer tentativa de desembarque da famigerada carga, por via marítima, fosse obstaculizada.
Quanto à fronteira terrestre com as Guianas, esta ficaria sob responsabilidade exclusiva da Força Aérea, tendo em vista as dificuldades de acesso àquela linha setentrional, tornando tal via a mais improvável.
Para a missão no litoral, a Marinha deslocaria duas fragatas e um navio-patrulha para o trecho de mar combinado, enquanto a Força Aérea movimentaria seu Esquadrão de Patrulha de Salvador para Belém, de onde passaria a operar com aeronaves P-15 Netuno, especializadas em vigilância marítima de superfície, assim como em guerra anti-submarino.
Ao mesmo tempo, um Esquadrão de Bombardeio Leve, equipado com aeronaves B-26, baseado em Cumbica, São Paulo, receberia ordem de movimento para Boa Vista, Roraima, de onde deveria lançar vôos de reconhecimento armado em toda a extensão da fronteira brasileira com as Guianas, para intimidar qualquer tentativa de penetração por aquela parte do território.
- Todas as providências possíveis foram tomadas - dizia o coronel Viana a uma alta patente do gabinete do ministro da Aeronáutica. - agora, é rezar para que tudo dê certo.
- Ativamos uma linha quente direta do Comando Geral do Ar para a Presidência da República. Em caso de situação não-prevista, ou de emergência, o general Médici quer ser avisado de imediato e decidir pessoalmente, - informou o outro.
Um terceiro oficial entrou na conversa e comentou sarcástico:
- No final, quem resolve tudo é a FAB. Os "paulinhos" vão gastar quase dez dias para chegar com aquelas banheiras velhas na área de operação.
Há quase quinze anos no "tapetão", ele nem desconfiava da azáfama que naquele momento agitava os integrantes de ambas as unidades designadas para cumprir a missão.


Setenta e duas horas depois da expedição da mensagem que solicitava o concurso da Polícia Federal, todos os pontos de acesso terrestre à região conflagrada estavam guarnecidos.
Mais quarenta e oito horas, e meia dúzia de "voadeiras" estavam colocadas em pontos estratégicos do rio Araguaia, patrulhando trechos fr maior probabilidade de entrada na área.
O Dr. Kiner estava tranqüilo agora. "A rapidez com que Brasília atendeu à minha solicitação é uma prova de que eles confiam em mim", pensava com um sorriso de satisfação.



- Radar para piloto, - explodiu a voz do operador-radar nos fones do capacete de vôo do major Eliseu. - Contato baleia, posição: zero zero graus, trinta e uno minutos norte; zero quatro uno graus, vinte e sete minutos oeste. Proa para interceptação: direita, três uno zero. Câmbio.
- Piloto para radar. Ciente. Curvando à direita para três uno zero. Câmbio.
O major João Elizeu de Barros executou uma suave curva para a direita, preparando-se para mais uma interceptação e identificação de navio. Eram dez horas e dezessete minutos. Céu claro com uns poucos cúmulos.
- Piloto para radar. Proa três uno zero, estabilizado. Câmbio.
- Radar para piloto. Distância do alvo: quarenta e duas milhas. Correção à direita dois graus. Câmbio.
- Atenção, tripulação, descendo para dois mil pés, - disse Elizeu, corrigindo o rumo dois graus à direita.
- Mais uma verificação de rotina, - falou o segundo-piloto, capitão Cavalcante. -Estamos patrulhando a área há dez dias e não acontece nada.
De fato, há dez dias o 1º Esquadrão do 7º Grupo de Aviação iniciara as operações naquela área marítima, com três aeronaves P-15, mantendo vigilância de vinte e quatro horas por dia. Cada missão era de oito horas, com revezamento no ar, não se considerando o tempo entre a decolagem, o deslocamento de ida e de volta e o pouso em Belém. Quatro tripulações trabalhavam em rodízio, de tal sorte que a cada dia uma ficava de folga.
- Radar para piloto. Alvo a vinte milhas. Câmbio.
— Ciente, radar. Atenção tripulação, descendo para mil pés. Fotógrafo e bombardeador a postos, - falou o comandante Elizeu ao microfone.
Cada um dos membros da tripulação deu o seu "ciente" e "em posição"pelo interfone.
- Radar para piloto. Alvo a dez milhas. Mantenha proa. Câmbio.
Um minuto depois Elizeu anunciou:
- Contato avistado.
E iniciou uma curva para a direita, descendo, com a finalidade de se posicionar para uma passagem em vôo rasante, no sentido transversal ao eixo de deslocamento do navio.
- É um cargueiro misto, de mais ou menos sete mil toneladas com a ponte de comando à ré, cinco paus de carga e um gantry — descrevia o capitão Cavalcante. - Pela linha d'água, está com carga total, navegando no rumo uno meia oito graus, direção aproximada de Parnaíba.
- Atenção, tripulação, para passagem baixa. O navio vai ficar à esquerda, - disse Elizeu, manobrando para passar a uma distância conveniente da popa do vaso e permitir a leitura do seu nome e porto de origem.
- É navio de bandeira russa, - falou Cavalcante, buscando na pasta de navegação o manual para decodificação do alfabeto cirílico. - É o Ivanenko, porto de Riga, Letônia, URSS.
- Okey, Cavalcante, - disse Elizeu, procurando demonstrar uma calma que não estava sentindo. - Vou fazer uma passagem no sentido longitudinal, da popa para a proa, e sinalizar para que ele mude o rumo para São Luís do Maranhão, onde a fragata da Marinha está.
- Ciente, Elizeu. A proa para São Luís é dois dois cinco. - E confirmou a leitura do plotador na carta de navegação.
Elizeu fez a passagem como previsto, usando os sinais de comunicação visual internacional avião/navio. O russo não tomou conhecimento. Manteve o curso. O major se impacientou. "Como é que uma merda dessas vem acontecer justo na minha missão?", pensava, preocupado. Se existia uma coisa de que ele não gostava era se ver metido em problemas. Muito maneiroso, Elizeu era um fraco. Tinha sempre medo de tomar decisões.
- Vamos fazer outra passagem e lançar um foguete de advertência na proa dele, - sugeriu Cavalcante.
- Tá certo. Enquanto isso, você tenta o contato com a fragata para dar a posição do navio e mandar que eles se desloquem para cá, - falou Elizeu para seu segundo-piloto e, pelo interfone: - Atenção, tripulação, para lançamento de foguete de advertência.
Manobrou com precisão, pois era um bom piloto, e alinhou no curso do navio, enquanto o sargento Pistolato ligava o circuito de foguetes. Entrou no mergulho e colocou o visor cerca de cem pés à frente da proa do vaso. O lançamento foi perfeito. Uma coluna de água explodiu na dianteira do russo, ligeiramente a bombordo.
O cargueiro, novamente, não tomou conhecimento e manteve o curso.
- Filho da puta! Esse russo tá querendo levar ameixa quente nos costados, - esbravejou o major.
Cavalcante havia acabado de falar com a fragata.
- O "Paulinho" disse que eles vão levar de dez a doze horas para chegar ao ponto provável de interceptação, mas, pelos meus cálculos, se o russo estiver mesmo com a carga referida na ordem de missão, ele faz o desembarque antes que a Marinha o alcance.
- Vamos falar com o Comgar (Comando Geral do Ar) e pedir instruções, - disse Elizeu. "Porra, ainda faltam quatro horas para nossa substituição, e eu com essa batata quente na mão", pensou.
Uma hora depois, chegou a mensagem em código com a resposta do Comgar. Depois de decodificada, Elizeu não acreditou no que lia: ORDEM DO COMANDO SUPREMO: ATACAR E COLOCAR O VASO RUSSO A PIQUE; DETERMINAÇÃO PARA CUMPRIMENTO IMEDIATO; COMGAR.
- Puta quina merda! Tô fudido e malpago. Esses putos de Brasília estão querendo me lascar, - esbravejou o major Elizeu. - Meu Deus, o que é que eu faço? Ordem do Presidente. Não pode ser!
"Este Zé é mesmo um cagão", pensava Cavalcante, mas, em voz alta, falou:
- Vamos pedir confirmação.
A confirmação chegou em seguida. Não havia dúvida. A ordem era mesmo para afundar o cargueiro russo.
- Eu não vou fazer isso, Cavalcante. A gente nem sabe se eles estão mesmo com a carga. Não posso fazer uma coisa dessa. Já pensou se o russo tá limpo, o peso na nossa consciência. O navio deve estar cheio de pessoas, de pais de família, de gente inocente. Não, eu não vou fazer isso.
Trinta minutos depois, o Comgar fez contato para obter informação do resultado do ataque.
- O que eu respondo? - Perguntou o sargento de comunicações ao major.
- Diga que estamos com problemas técnicos e que o ataque ainda não foi realizado, - respondeu Elizeu. Ele não poderia sustentar a mentira por muito tempo. Havia toda uma tripulação de testemunha, e a aeronave seria vistoriada no solo.



Enquanto isso, em Brasília, o alto-comando estava reunido para decidir o que fazer. O próprio Presidente ligara para o ministro da Aeronáutica cobrando o resultado do ataque.
- Esse majorzinho, o que é que ele está pensando que é? - Dizia um brigadeiro. - Que conversa fiada é essa de problema técnico? Será que ele pensa que nasci ontem? - Espumava a velha águia.
- Se ele não afundar o russo, vamos levar esse cara à corte marcial. Como é mesmo o nome do "boca-mole"? - Perguntou um outro brigadeiro.
- É um tal de João Elizeu de Barros. As fichas dele dizem que é um oficial regular. Não tem muita liderança e é incapaz de tomar decisões fortes, - disse o secretário da comissão de promoções.
O telefone não parava de tocar.



A bordo do P-15, o clima era tenso.
- Não tem jeito, Elizeu. Temos que afundar o russo, - disse o capitão Cavalcante.
Eram treze horas e cinco minutos. Há quase três horas eles faziam o acompanhamento do navio.
- Vou fazer um último passe, sinalizando para que ele mude o rumo para São Luís, - disse o major.
Na curva de regresso, após o passe, o sargento Pistolato falou pausadamente:
- Parece que ele está mudando o curso, major. Ficaram todos observando em silêncio. O navio estava curvando lentamente. Uma curva de raio bem grande para estibordo, tomando a proa para o litoral do Maranhão.
Elizeu respirou aliviado. Toda a tripulação respirou aliviada. "O cara é um bunda-mole, mas tem sorte", pensou Cavalcante.
Seis horas depois, quando Elizeu e sua tripulação já estavam no cassino da Base Aérea de Belém, a fragata da Marinha interceptava o Ivanenko e iniciava a escolta para o porto de São Luís.
No dia seguinte o navio foi vistoriado e nenhuma carga ilícita foi encontrada. A explicação do comandante para a sua desobediência inicial aos sinais do P-15 foram de que o navio estava com problemas na casa do leme. Uma engrenagem havia cisalhado, e o dispositivo ficara travado na posição de alinhamento com o eixo longitudinal da embarcação. Não havia como mudar o rumo. O velho marinheiro ficara apavorado. Ele sabia que a qualquer momento uma bomba poderia ser lançada contra seu navio. Os mecânicos trabalharam a toda pressa para fazer o reparo. No porto, os técnicos da Marinha comprovaram as alegações do russo, e o cargueiro foi liberado.



Em Brasília, as opiniões se dividiam.
- Continuo achando que esse major tem, no mínimo. Que ser levado a Conselho de Justificação, por não ter cumprido a ordem, - dizia um brigadeiro mais radical.
- Acho que ele tem mais é que receber uma medalha. A indecisão dele salvou o país de um sério problema diplomático, - rebateu um outro.
- Uma coisa é certa. Esse major tem uma sorte admirável. Deve ser protegido do meu padim padre Cícero, só pode! Desse jeito, daqui a alguns anos, ele chega a brigadeiro, - augurou um terceiro.
Poucos dias depois, já não se falava mais sobre o assunto. O tempo se encarregou de apagar o incidente.

Capítulo VI

A notícia da emboscada na qual perdeu a vida o agente Pompeu consternou a todos na Casa Azul. Ele era uma pessoa querida, com seu jeito tranqüilo de falar e seu acendrado espírito de companheirismo.
- Estes subversivos, filhos da puta, estão ficando muito ousados. Tá na hora de colocar a tropa em combate. O que as autoridades estão esperando? - Especulava, no alojamento, um dos agentes de menor graduação, dirigindo-se a um colega.
- Fique na sua, Firmino! Os homens sabem o que estão fazendo, - respondeu o outro, cortante.
Naquele dia, o Dr. Banzé chegou de Vila Palestina. Seu relatório verbal a Kiner e a Padilha não foi dos mais animadores.
- ... e, para complicar mais ainda, essa porra de rádio Tirana está insuflando esses matutos ignorantes contra o governo. O que a Tirana diz eles acreditam. E o pior é que a rádio esta recebendo informações fresquinhas de tudo o que acontece aqui.
- Nós temos escutado a Tirana todas as noites, - disse Kiner. - E, agora, com as informações que você trouxe, a gente verifica que, embora distorcidas, algumas notícias acabaram de sair do forno. São fatos ocorridos há vinte e quatro, ou quarenta e oito horas.
- Tá na cara que alguém da região e com acesso às informações está enviando-as para a Albânia, - falou Padilha, concluindo o óbvio e acrescentando: - Agora, o que eu não compreendo é como um país atrasado como aquele, onde não existe liberdade alguma, pode querer alardear sobre democracia, acusando a nós de usurpadores do poder.
- É a velha e conhecida história do faça o que eu digo e não faça o que eu faço, - comentou Banzé.
- Você queria o quê? - Disse Kiner. - A Albânia é o país comunista mais retrógrado do Leste europeu. Eles entendem que aquilo a que chamam de ditadura do proletariado é democracia. Como é que você vai colocar na cabeça de um comunista radical que liberdade e igualdade são palavras antagônicas, incompatíveis uma com a outra, meu caro? O regime de liberdade democrática que almejamos para o nosso país, dentro de uma economia capitalista, com um mercado de livre concorrência, inevitavelmente gera desigualdades, e os mais capazes tendem a obter maiores vantagens. A própria sociedade se encarrega de reconhecer e recompensar melhor aqueles que têm mais a dar de si à comunidade. E é isso o que está certo.
- Pensamento claríssimo, chefe. Sua colocação foi brilhante. E não estou lhe puxando o saco, pois o senhor sabe que este não é o meu feitio, - disse Padilha.
- Também penso como o senhor, Dr. Kiner, - falou Banzé, complementando: - Como é se vai tratar igualmente aos desiguais? Concordo que temos situações muito difíceis, no Brasil, do ponto de vista social. No entanto, existem inúmeros outros problemas, e o governo não pode resolvê-los todos ao mesmo tempo. A Revolução que fizemos foi para acabar com a corrupção e com a subversão das instituições democráticas. As demais dificuldades serão solucionadas aos poucos e ao seu tempo. Não é assim?
- Correto, Banzé. De mais a mais, veja, o país está em franco desenvolvimento, estarrecendo o mundo com uma taxa de crescimento do PIB nunca antes experimentada. Que liberdade é essa de que esses comunistazinhos tupiniquins reclamam? O povo ordeiro e trabalhador está feliz. Agora, o que os comunistas querem mesmo é liberdade para destruir os nossos valores e tradições cristãs. Para nos impingir uma doutrina utópica e que nega, até mesmo, a existência de Deus. Mas, nós não permitiremos que isso aconteça. As Forças Armadas desta nação estarão sempre alertas e prontas para defender a verdadeira democracia, - disse Kiner em tom de discurso.
- Mas, doutor, voltando ao assunto da rádio Tirana, isso não pode ficar assim. Temos que tomar alguma providência. O que é que fazemos? - Perguntou Padilha.
- Não se preocupem com isso agora. Dentro de alguns dias, o pessoal de comunicações estará em condições de agir para localizar a fonte de informação que está transmitindo para a Albânia as notícias daqui. Penso que não será difícil descobrir de onde está ocorrendo o vazamento. Eles têm bons equipamentos de radiogoniometria, - explicou Kiner.
Dias depois, um serviço de radioescuta permanente foi instalado na Casa Azul. Além disso, uma estação móvel foi montada numa camioneta Veraneio, para permitir o deslocamento rápido e possibilitar o cruzamento de eventuais sinais eletrônicos suspeitos que viessem a ser detectados.
- Pode deixar conosco, Dr. Kiner, - garantiu Clementino, o chefe da equipe de especialistas em comunicações. - Não vai demorar nada pra gente plotar o puto que está fazendo isso.
Dia e noite eles pesquisavam as diversas bandas de freqüência. Nada. Numa madrugada, um dos operadores imaginou ter escutado algo. Apurou o ouvido e a sintonia do aparelho, porém só conseguiu ouvir uma estação que transmitia em Morse as cotações da arroba do boi gordo, da soja e coisas desse tipo. O ponteiro do radiocompasso indicava cento e trinta graus.
- Deve ser algum correspondente da bolsa de mercadorias, numa dessas grandes fazendas de Goiás, Sul do Maranhão, ou Norte da Bahia, - disse o radioperador a seu colega de turno. E não deu mais importância àquele sinal.
Uma pena!



- Minino, vai vestir uma roupa, minino! Se não o candiru te pega, seu peste, - gritava a cabocla Januária para o moleque Altair que insistia em tomar banho nu no rio Araguaia.
- Tem pirigo não, mãe.
Eram sete horas da manhã, e o calor já estava forte em Xambioá. Enquanto Januária lavava a roupa na beira do rio, um barco vinha chegando. O homem desligou o motor e deixou a embarcação encostar suavemente na areia branca da margem. Um casal de maracanãs passou voando baixo, cruzando o rio.
- Bom dia, Zé Geraldo. Acordou cedo pra pesca, né? - Perguntou ela ao barqueiro.
- Bom dia, Januária. Saí na madrugadinha, mas a pescaria foi fraca. Um pintado pequeno, dois bagres e uns seis ou sete pacus. Pegue alguns pra você, - disse, arrastando o barco mais para cima e acorrentando-o ao tronco de uma saboarana.
- Fico com os bagre. Pra fazê um pirão de peixe não tem milhor, - falou e acrescentou: - O fio da dona Etinha teve aqui inda agorinha, procurando por ocê. Deixou recado, dizendo que a mãe tá precisando de falá com ocê. Pra quando cê tivé um tempinho, passá na casa dela.
- Obrigado, Janu, pelo recado, - respondeu Zé Geraldo, caminhando os poucos metros que separavam o rio de sua oficina mecânica, no início da rua.
Geraldo Monteiro de Góis, conhecido como Zé Geraldo, era um pernambucano, muito magro, mas de braços fortes, embora um tanto desproporcionais em relação ao restante do corpo. Ou seriam suas mãos que eram grandes demais, com dedos muito longos? Em pé, na posição anatômica normal, com os braços soltos ao longo das laterais do tronco, a ponta do dedo médio de cada uma de suas mãos lhe tocava as pernas na altura dos joelhos. Não era lato, nem baixo, devendo ter um metro e setenta, talvez um pouco mais. Moreno, aparentava uns trinta e oito anos. Tinha cabelos lisos e negros, penteados com capricho para trás, deixando em evidência uma testa larga com ligeiras entradas. Os olhos eram castanho-escuros, um pouco encovados, mas vivos e inteligentes. O Nariz era reto, fino e pequeno. Um queixo quadrado, encimado por uma boca grande de sorriso fácil. Podia-se dizer que ele era bem-apessoado. Além disso, a par da simpatia e de um certo jeito especial que fazia com que as pessoas confiassem nele, Zé Geraldo era um sujeito de muitas habilidades e superprestativo.
Ele abriu a oficina, guardou com cuidado seus petrechos de pesca e disse para Xingó, um negrinho risonho, seu ajudante:
- Se alguém me procurar, diga que fui até a casa da dona Etinha e não demoro. Enquanto isso, desmonte o carburador do carro do seu João da farmácia e faça uma limpeza completa. - Pegou sua bolsa de ferramentas e partiu.
- Bom dia, Zé Geraldo. Aonde vai você com tanta pressa, homem de Deus? - Perguntou Valdir, o dono do bar Quentão, acabando de abrir as portas.
- Vou atender a um chamado de dona Etinha. Te mais tarde, meu velho, - respondeu e apressou o passo.
- Sujeito bom tá aí, esse Zé Geraldo. Trabalhador e sempre ajudando um aqui, outro acolá, - comentou Valdir com um freguês que ia entrando.
- Tem razão. Tá sempre na dele, num arruma confusão e é cabra de confiança. Respeitador que só, - concordou o outro.
Zé Geraldo era assim. Todos gostavam dele. Todavia, embora levasse vida pacata, movimentava-se bastante. Freqüentemente, lá estava ele indo a Araguaína, a Estreito, a Imperatriz e a outros locais para comprar peças, dizia-se, ou para atender a um amigo, ou para adquirir material de pesca, sua grande paixão. Nessas viagens, usava um fusquinha velho, porém mantido em perfeito funcionamento, por ele próprio, em sua oficina. Seu pequeno barco recebia o mesmo tratamento dispensado ao carro. Fato interessante, no entanto, era que ele viajava, ou saía para pescar, sempre sozinho. Contudo, ele não era um solitário. Não, solitário ele não era. Estava sempre buscando a companhia de outras pessoas, gostava de conversar e de se relacionar com todos na comunidade.
- Bom dia, dona Etinha. Mandou chamar, tou aqui, às suas ordens, - disse Zé Geraldo, entrando na casa de Etinha.
- Meu Deus, isso é que é homem de presteza, - falou a mulher, um tanto assustada com a chegada quase inopinada dele. - Se abanque. Vou lhe dar um cafezinho. Depois explico por que lhe chamei.
A casa era pobre, mas limpa e bem-cuidada. Ele sentou-se na ponta de um banco, sorriu para ela e disse:
- Um cafezinho eu aceito, e uma broa de milho daquela ali no fogão.
Etinha era viúva. Tinha quatro filhos para criar. O mais velho, com dezoito anos, já ajudava trabalhando em São Geraldo, do outro lado do rio, na Madeireira Nova Olinda. Ela, por seu turno, lavava e passava roupa para fora.
- Tá aqui seu café e sua broa, filho de Deus. Agora, lhe explico. Tou desacoroçoada, Zé Geraldo. Tava onte passando umas pecinhas de roupa pra mode intregá hoje, quando di repente o ferro papocou, saiu um foguinho e num funcionou mais, o disgramado. Aí, me alembrei de ocê! É capaiz qui o Zé Geraldo dê um jeitinho nesse ferro. Mandei lhe incomodá, mas Deus vai lhe abençoá por essa sua bondade, meu fio.
O conserto foi coisa simples, resolvida em poucos minutos. Etinha ficou feliz, e ele se preparou para partir de volta.
- Ocê é um anjo, Zé Geraldo. Me diga quanto é, lhe pago depois, quando Tonho recebê.
- Dona Etinha, não me fale em pagamento. Foi uma coisica de nada. O café e a broa pagaram com sobra, - disse o rapaz, despedindo-se.
Assim era o Zé Geraldo. Instalado em Xambioá desde 1966, era também eletricista e radiotécnico. Se surgia um problema hidráulico, ele resolvia igualmente. Se as pessoas podiam pagar, ótimo. Se não podiam, tudo bem. E ele estava pronto a ajudar pobres ou ricos, indistintamente. Além do mais, Zé Geraldo era discreto, ouvia muito e falava pouco. Tinha lá os seus casos na Zona do Vietinam, ou com umaou outra mulher do lugar, mas sempre na maior discrição e decência. Uma grande amiga sua era a Baleia.



O mês de setembro de 1973 ia pelo meio. A retirada do agente Edmar da região dos Perdidos fora realizada sem incidentes. As informações obtidas por ele, embora não fossem completas, eram suficientes para os propósitos da Casa Azul. A situação estava se deteriorando a cada dia. Mais fazendas haviam sido invadidas, e mais pessoas, justiçadas.
Na reunião do pôr-do-sol daquele dia, o clima estava tenso. Até o Gordo estava sério e compenetrado. Padilha, este nem se fala, destilava ódio por todos os poros. José Lucas não demonstrava nada, mantendo o olhar frio, à espera das palavras de Kiner. Os demais estavam, igualmente, nervosos e expectantes.
- Meus senhores, - disse Kiner, - hoje é um dia decisivo e no qual colocaremos todos os dados ne mesa, para avaliação das ações que deverão ser empreendidas daqui por diante. Como todos os senhores sabem, o quadro geral da área está ficando cada vez mais difícil. Em que pese a quantidade de subversivos alienígenas, segundo o nosso próprio levantamento, ser menor do que supúnhamos, eles estão conseguindo aliciar um número crescente de elementos naturais da região, de tal sorte que o ambiente na área está à beira de uma explosão social. Desta forma, teremos que agir em duas frentes. Primeiro, conquistar o apoio da população local e, em segundo lugar, combater os guerrilheiros diretamente, através de uma operação de força para eliminar, de uma vez por todas, o tumor pela raiz. - Fez uma pausa e olhou para cada um dos presentes com energia, concluindo: - Assim, o nosso chefe de operações, Dr. Padilha, vai expor o panorama geral da situação. A seguir, o Dr. Ambrósio nos mostrará o que foi planejado no que respeita à questão da conquista do apoio da população civil. E, finalmente, o subchefe de operações, Dr. Tomé, discorrerá sobre o problema tático de combate, - disse encerrando sua fala, sentando-se e entregando a palavra a Padilha.
- Senhores, como tivemos oportunidade de dizer anteriormente, os subversivos estão distribuídos basicamente em três grupamentos. O grupo dos Perdidos, que denominaremos de grupamento A, conta com dezoito elementos do PC do B, sendo que três são considerados como figuras principais do movimento revolucionário. O chefe é o Paulo Paraná, chamado de o Velho. Os outros dois são o Mauro Guerra e a Olga. Esta última é chamada de a Velha. Por esse motivo esse grupo é considerado como o mais importante. O grupamento que denominamos de B é o dos Caianos. Tem dezessete elementos e o chefe é o Zenóbio, terrorista e assaltante de banco, bem como figura de proa do PC do B. O terceiro grupamento, o C, está na região do rio Saranzal e do igarapé Paraíso. Este tem quatorze elementos, é o menor e, talvez, o menos importante. O chefe é o Osvaldão que, como todos sabemos, foi, infelizmente, oficial do Exército Brasileiro.
Depois de uma curta pausa, Padilha prosseguiu:
- Mandamos confeccionar em Brasília um quadro geral da "ordem de batalha"dos subversivos, divididos nos grupamentos, com seus nomes verdadeiros e frios, bem como a fotografia de cada um, segundo os nossos arquivos. Esse quadro irá facilitar a operação na fase de combate. Além disso, eles contam, atualmente, com um número expressivo de naturais da região, numa quantidade que não foi possível determinar. O trabalho de nossos agentes levantou, no entanto, que eles não possuem armamento adequado e suficiente. As armas mais comuns são de caça, e as demais são de pequeno calibre. O apoio de retaguarda deles para alimentação, abrigo e outras necessidades é provido, até onde sabemos, pela população local. A vigilância dos pontos de acesso à área continua intensa, para não permitir qualquer fluxo de suprimento que venha abastecê-los de armas, munição e outros materiais. É essa, pois, a situação geral, - concluiu e sentou-se.
A um sinal de Kiner, o Gordo levantou-se e assumiu a plataforma. Não obstante a gravidade da reunião, Ambrósio não conseguia esconder seu ar jovial e brincalhão.
- Meus amigos, a situação está preta, - iniciou dizendo, com um leve sorriso. -Numa situação dessa, eu mato ou morro. - Fez uma breve pausa sob o olhar expectante da audiência. - Ou corro pro mato, ou corro pro morro! - A platéia, como sempre, explodiu em risos, nem tanto pela velha piada, mas pelo jeito dele e pela cara de pacamão de enxurrada feita por Padilha.
- Desculpe, chefe, - disse o Gordo para Kiner, quando a ordem se restabeleceu. - Mas, sabe, né, era preciso quebrar um pouco da tensão antes de falar de coisa séria.
- Tá desculpado, Gordo. Pode prosseguir, - aquiesceu Kiner.
- Bem, como vocês estão vendo, o quadro geral não está lá muito favorável a nós. A cada dia a população vem ficando mais hostil ao governo, em função não apenas do trabalho da subversão, mas também pelas próprias condições da região. A pobreza, os problemas de grilagem e de propriedade das terras, a exploração dos donos de castanhais que, em alguns casos, fazem uso do trabalho escravo, a carência e a omissão das instituições federais, estaduais e municipais, tudo isso contribuiu para se chegar à situação de caos social que teremos de enfrentar. Entretanto, não podemos esquecer que estamos numa guerra. Não será agora que iremos consertar os erros do passado, bancando os bonzinhos. Na área da Transamazônica, o governo já está criando núcleos rurais e providenciando o assentamento de colonos, mas é um trabalho lento e de longo prazo. Não é, pois, o caso de se pensar em operação Aciso - Ação Cívico-Social. - Precisamos de resultados imediatos. Assim, o planejamento de conquista da população está baseado no uso da força e da intimidação. Não poderia ser de outra maneira.
Ao desencadearmos as ações, no primeiro momento temos que prender todos os principais suspeitos de colaboração com o movimento subversivo. Vamos entrar de sola. Com o apoio de helicópteros descaracterizados, isto é, sem indicação de que pertencem à FAB, pousaremos nas vilas, nos povoados e nos sítios onde os guerrilheiros têm tido suporte de retaguarda e prenderemos os líderes e chefes de família. Os prisioneiros serão levados para um local no quilômetro cinqüenta da Transamazônica, denominado de Bacaba. Há uma pista de pouso lá, o que facilitará o trabalho. Com essa gente presa, vamos dar uma prensa neles. Quem oferecer resistência, o que não acredito ser possível acontecer, será simplesmente eliminado. Os mais cordatos serão aliciados para trabalhar para nós como mateiros e guias para as patrulhas a serem lançadas na mata, mais pra frente. Para as famílias desses últimos, garantiremos alimentação e tudo mais que for necessário. Cada um receberá, inclusive, diárias em dinheiro a título de bonificação. Montamos um esquema em que os próprios familiares irão pressioná-los a colaborar com o nosso lado. Naturalmente, essa operação depende de aprovação e de outras providências de Brasília. Pela atenção, obrigado. - Concluiu o Gordo, passando a palavra a Tomé.
Este largou a bomba e acuia de chimarrão,sacou sua ponteira telescópica e falou:
- A idéia geral do planejamento tático de combate visa principalmente a evitar os erros cometidos nas operações pas¬sadas. Assim, não se pretende lançar grandes contingentes, por períodos longos de tempo, no campo de batalha. A proposição é que se use patrulhas pequenas, com cinco homens, mais um mateiro e um guia, constituídas por elementos da própria região. Dessa maneira, a tropa mais indicada é a do Batalhão de Selva de Manaus. Inicialmente, penso que cem soldados escolhidos serão suficientes. Eles seriam divididos em vinte pa¬trulhas, de tal sorte que poderemos lançar dez de cada vez, ficando as outras dez de repouso. O tempo de cada grupo na selva não deve ser de mais de três dias. Por esse sistema, o homem não precisará transportar um peso excessivo de supri-mento e, conseqiientemente, estará mais disposto para o com¬bate. Além disso, usando-se o homem da região, não haverá necessidade de pagarmos aquelas abomináveis rações enlata¬das que tantos problemas causaram nas outras operações. Pro¬blemas de saúde e de peso. A experiência demonstrou que um pedaço de jabá, farinha grossa, peixe seco e rapadura são su¬ficientes.
"As patrulhas, como de resto todos os demais elementos envolvidos, deverão usar roupas civis, liberando-se o corte de cabelo e da barba, uma vez que não é conveniente caracteri¬zar a manobra como operação militar. Os subversivos gosta-riam que assim fosse porque isso lhes daria, a nível internacional, a oportunidade de obterem o reconhecimento, por outros países, de um território conflagrado dentro do Brasil.
"A execução desse plano tático dependerá de apoio aé¬reo, tanto de helicópteros de assalto como de aviões de liga¬ção e observação para o controle e acompanhamento da evo¬lução das patrulhas no terreno, através de rádio. Outro as¬pecto é o de acantonamento. O comando da operação deve permanecer aqui, na Casa Azul, e a tropa ficaria acampada em Xambioá. Teríamos aqui, também, um helicóptero e um avião, enquanto lá seriam dois e dois. A sugestão é que a For¬ça Aérea se instale sob a capa de uma companhia de minera¬ção. A força terrestre adotará a cobertura de uma empresa agropecuária. É essa, em linhas gerais, a ideia de manobra” — concluiu, finalmente, o subchefe de operações.
Kiner ocupou mais uma vez a plataforma e dirigiu-se à audiência:
- Companheiros, é este o quadro de situação, bem como os planos e planejamentos apresentados que levarei ama¬nhã para Brasília e mostrarei aos nossos chefes. A eles cabem as decisões finais. Estarei de volta dentro de dois ou três dias. Boa noite a todos.


- Se achegue, meu nego. Aceita um refresco de cupuaçu? Se quiser de graviola também tem - disse Valquíria ao recém-chegado, o conhecido Zé Geraldo.
- Cupuaçu está bem, Val. Como vão indo as coisas? - perguntou o mecânico, puxando uma cadeira e sentando.
Estava uma noite de céu claro, quente e úmida, como são as da Amazónia. Um sapo-cururu coaxava na barranca do rio. A caboclinha Bartira, meninota fagueira, empregada da Ba¬leia, trouxe um copo gelado do delicioso refresco e entregou-o a Zé Geraldo.
- Obrigado, Bartira - disse ele.
- Não tem de quê, Zé Geraldo.
- O povo da mata é que num tem aparecido mais por aqui, né, dona Valquíria? - comentou Raimundo Barroso, o dono do armazém e negociante clandestino de peles adqui¬ridas a baixo preço dos coureiros da região e vendidas com alto lucro em Belém.
- É verdade. Vai pra mais de um mês que nenhum de¬les mostra a cara no Xambioá. O que será deles? - falou Val¬quíria.
- O filho do cumpadre Félix, cês conhece ele né?, che¬gou hoje cedo da mata e disse que os paulista tão se armando e falando pró povo se arma também, que não demora muito vem mais tropa pra cá. Será verdade? - perguntou Maria Pre¬ta, mulher do dono da padaria.
- Verdade ou não, os paulistas tão certo. Tem que aca¬bar essa pouca vergonha dos castanheiro explorar os pobres dos colhedô. E o castanhal nem deles é de verdade, que ês não pussui os documento do cartório. Alguns que diz que tem, quando vai vê, é farcificado - falou Armandino, barbeiro do salão Tesoura Dourada.
Era assim a calçada da casa de Maria Valquíria Antunes, a Baleia. As pessoas ficavam ali conversando e pegan¬do a fresca. Passava um, parava para um dedo de prosa e apro¬veitava para tomar um refresco, que nunca faltava. Ali, tam¬bém, ficava-se sabendo de tudo. Os mexericos da cidade, os acontecimentos da região, tudo circulava pela porta da Ba¬leia.
O apelido era, entretanto, dito à boca pequena. Os me¬nos íntimos a tratavam de dona Valquíria, e só os mais che¬gados chamavam-na de Vai. Era viúva e, embora não tivesse filhos, criava duas moças, Doralice e Dagmar, a primeira com dezessete anos e a outra com dezesseis. Valquíria não era feia; ao contrário, suas feições eram ainda belas, apesar de seu imen¬so corpanzil. Natural de São Félix do Xingu, não se sabia ao certo como viera dar com os costados em Xambioá, há mui¬tos anos. Aliás, não se sabia muito sobre a verdade de sua história. Ela se dizia rica, herdeira de terras obscuras que ora eram no Maranhão, ora no Pará. Vivia bem. Sua casa era uma das melhores da cidade, mas a origem de suas rendas era um mistério. Ainda mais considerando-se a relativa opulência de que ela e as filhas adotivas desfrutavam, guardadas as pro¬porções do lugar.
- Bem, vou indo - disse Zé Geraldo. - Obrigado pe¬lo refresco, Val.
- Não me diga que vai pescar esta noite - falou a Ba¬leia, e soltou uma gostosa gargalhada. - Tem peixe melhor pra você pegar na rede aqui mesmo, meu nego. Você é que não quer ver - maliciou ela.
Val era clara, tinha os cabelos artificialmente louros e, nos seus trinta e cinco anos e cento e dez quilos de peso, é possível que nunca alguém tenha notado o mais leve sinal de mau hu¬mor e aborrecimento em seu semblante. Estava sempre alegre e satisfeita, demonstrando seu bom humor por gargalhadas como aquela.
Embora na porta de Valquíria os comentários fossem os mais variados e ela participasse deles intensamente, um por¬menor, talvez, não escapasse a um observador arguto. Curio¬samente, tanto ela como Zé Geraldo, quando este se encontrava presente, jamais falavam, contra ou a favor, dos guerrilhei¬ros ou do governo. Mantinham uma posição de neutralidade, muito embora Vai, principalmente, estimulasse a conversa so¬bre o tema.
A calçada da Baleia era, pois, em Xambioá, o similar da Farmácia Santa Rita na Palestina, se bem que as informações da viúva tivessem um outro endereço.


Segunda Parte
A GUERRILHA

Capítulo VII

— Olá, Dr. Kiner, como foi de viagem? — cumprimen¬tou Padilha, no saguão do aeroporto de Marabá, ao chefe que acabara de desembarcar do avião comercial procedente de Brasília. Eram três horas da tarde de uma quarta-feira, úl¬tima semana de setembro de 1973.
— O voo foi bom. A estada em Brasília é que não foi tão agradável quanto eu esperava. Trago notícias boas e más — respondeu Kiner, enquanto entregava os bilhetes de baga¬gem ao motorista da camioneta que viera apanhá-lo. — Fui para passar três dias, terminei ficando oito. Aqueles calças-altas do tapetão são uns babacas. Mas vamos andando que estou louco por um banho. Mais tarde a gente conversa. Con¬voque o pessoal para uma reunião às oito da noite.
Logo depois, na Casa Azul, Padilha comentava com To¬mé:
— O chefe chegou afinal. Parece que as coisas não an¬daram muito bem lá na corte. Ele está meio aborrecido. Reu¬nião às oito. Avise ao pessoal.
A informação de que Kiner não trouxera boas notícias da capital correu rápido, preocupando a todos. Às oito, o am¬biente na sala de reuniões estava tenso.
— Meus senhores, em primeiro lugar, quero me congra¬tular com todos vocês pelo excelente trabalho desenvolvido — iniciou Kiner. — Nossos chefes, em Brasília, ficaram mui¬to satisfeitos e impressionados com os resultados da opera¬ção de inteligência, bem como com o planejamento da ação futura. — Todos respiraram aliviados. Estas eram excelentes novidades, ainda que não surpreendentes. Se havia más notí¬cias, quais seriam então? — Portanto, vocês estão de para¬béns. Transmitam os meus agradecimentos aos demais subordinados. Dentro de alguns dias, as tropas e os compa¬nheiros da força aérea estarão chegando para a manobra de combate, conforme os planos que vocês traçaram. — Fez uma pausa e encarou cada um. Depois prosseguiu: — Sei, no en¬tanto, que já circularam os boatos de que trago, também, no¬vidades nada boas. Não é verdade, Padilha? — O chefe de operações pigarreou, contrafeito. Kiner continuou: — As más notícias, porém, dizem respeito a mim e ao próprio Dr. Padi¬lha. Após muitas reuniões e debates, nossos generais chega¬ram à conclusão de que a fase seguinte não deve ser comandada por elementos da comunidade de informações. Assim, eu e Pa¬dilha seremos substituídos, nos próximos dias, por gente da tropa. Provavelmente, alguém do Comando Militar da Ama¬zónia, o CMA, que trará seu próprio chefe de operações. Co¬mo vocês sabem, esta região está provocando conflito de jurisdição também no Exército. A área, geograficamente, per¬tence ao CMA, embora quem está de fato à frente das opera¬ções seja um general do Comando Militar do Planalto. Isso vem provocando ciúmes, daí a decisão de se colocar gente do CMA na Casa Azul. Este era, pois, o meu relatório de via¬gem — concluiu ele.
Padilha ficou desolado. "Logo agora que vai começar a fase boa de caça aos subversivos? E as diárias fora de sede que tanto ajudam no orçamento? Isso foi sacanagem", pen¬sava. Os demais abandonavam o recinto, quase todos satis-feitos com as "más notícias".



— Égua, seu menino, que as coisas vão entortar de vez agora. Quer dizer que os home tão prendendo todo mundo, a torto e a direito, lá na mata? — perguntou Valquíria.
— É o que lhe estou dizendo. Os home do governo tão chegando nos sítios, nas vilas e em tudo que é lugar, naqueles avião, sabe qual, né? Aqueles da hélice em cima. E vão des¬cendo e prendendo e dando porrada nos pobre dos trabaiadores. Quando é com pouco, eles alevantam voo, carregando quatro, cinco pai de família. Diz que as muleres eles não tão prendendo não, ou parece que prenderam só uma tal de Palmira, muler dum cara que eles chamam de Manel das Duas — contou um dos frequentadores da calçada da Baleia.
— E eles tão levando esse povo preso pra onde? — per¬guntou Maria Preta.
— Ninguém sabe, dona Maria. Agora, diz que o que faz pena são as crianças chorando, vendo os pais sendo preso, sen¬do humilhado debaixo de porrada, sem ter feito nada.
— Aqui no Xambioá eles não apareceram ainda, mas não demora muito eles vão tá chegando naqueles avião que faz apa pá pá pá pá — disse Paulo Boto, um pescador conhecido por seus ditos engraçados.
— Esse avião chama helicóptero, Paulo Boto — falou Valquíria, soltando uma de suas gargalhadas.
— Minha língua não dá de fala esse nome aí, não, dona Val — retrucou ele, e todos riram do jeito franco e espontâ¬neo do homem.
Zé Geraldo, que estava só ouvindo, sem se manifestar, pensava: "Esta noite vou ter que sair para uma pescaria."



O local denominado Bacaba, no quilómetro cinquenta da Transamazônica, a contar da divisa de Goiás com o Pará, era constituído por apenas uma velha casa de madeira, recuada uns cem metros, do lado esquerdo da estrada, no sentido Palestina—Marabá. Do outro lado do caminho, igualmente a uns cem metros, existia uma pista de pouso de cascalho, pa¬ralela à rodovia e dela separada por um trecho de vegetação de médio porte.
Os prisioneiros não paravam de chegar. Tão logo o heli¬cóptero UH-1H, aeronave usada para transporte de tropa na zona de combate, assalto e ataque com foguetes, batizada pelos agentes de "Sapão", pousava na pista de Bacaba, os pre¬sos eram conduzidos para uma espécie de barracão nos fun¬dos da casa, algemados a troncos de madeira, ou colocados no pau-de-arara. As sessões de tortura eram quase contínuas. Os gritos e gemidos de terror e sofrimento povoavam o am¬biente.
— Pelo amor de Deus, seu doutô, tenha piedade... Eu conto tudo que o doutô quisé... Ai, ai aiai... Virgem Maria, me acuda! — implorava e gemia, gemia e gritava Chicão, coIhedor de castanhas e morador da região dos Perdidos.
— Você vai continuar a dar guarida pra subversivo, seu filho da puta... Hein?... Responde, seu corno, se não eu vou enfiar este pedaço de cano no seu rabo... — José Lucas Quin¬tino Nicoline, o Dr. Zeca, era implacável.
— Eu juro, doutô, que num sei de nada... Não faça is¬so... Eu prometo que, se o sinhô me sortá, mostro o lugar on¬de esse povo da mata sisconde... Prometo, doutô...
— Quer dizer que você sabe, não é, seu merda? Ô Laurindo, coloca neste aqui o "brinco da princesa", pra ele ficar sabendo o que acontece com quem mente — falou Zeca.
Dois terminais tipo jacaré, ligados a um magneto de telefone de campanha, foram ligados às orelhas de Chicão, um em cada lóbolo. Quando Laurindo rodou a manivela, um cho¬que de alta voltagem e baixa amperagem fez com que o pri-sioneiro urinasse e defecasse, ao mesmo tempo. O mau cheiro empesteou o ar.
— E, ainda por cima, esse veado é cagão... — disse o que se chamava Laurindo.
— Chega por hoje. Manda dar um banho nesse cara — ordenou Zeca. E, para Chicão: — Se você se comportar direi¬to, amanhã nós vamos conversar sobre essa história de você nos mostrar onde os subversivos estão escondidos.
Chicão estava pálido, quase desfalecido. "Meu Deus, o que será de mim? O que esses home quisé eu faço. Só num quero é sofrê mais. Deus me ajude", pensava, enquanto era arrastado para fora do barracão.


Na noite escura, Zé Geraldo colocou com cuidado seu ma¬terial de pesca no barco. Verificou o relógio de pulso. Eram duas horas da manhã. Empurrou a embarcação para dentro do rio, tomou assento na popa e remou até um local onde ele sabia ser a profundidade suficiente para acionar o motor.
Navegando com atenção pelos canais que conhecia na pal¬ma da mão, chegou até a embocadura do rio Corda. Pouco depois, encostou na barranca do afluente do Araguaia e amar¬rou o barco a um tronco de árvore.
Consultou o relógio novamente, com o auxílio de uma lanterna. Três e trinta e cinco. Ainda tinha vinte e cinco mi¬nutos. O lugar onde ele se encontrava era de vegetação menos densa, quase do tipo cerrado.
De um compartimento secreto, na proa da embarcação, retirou um transreceptor miniaturizado que ligou a uma bate¬ria de doze volts. Entre duas árvores, Zé Geraldo armou uma antena.
Às quatro horas, iniciou a transmissão em morse. A men¬sagem era num código alfanumérico e dizia:
"AGULHA PARA TIRANA; DISPARADA OP REPRESSÃO A GA; DEZENAS TRABALHADORES E CAMPONESES PRESOS; POP RURAL EM CLIMA TERROR; DESCONHECIDO PARADEIRO DOS PRISIONEIROS."
Às sete da manhã Zé Geraldo estava de volta a Xambioá. O barco, como sempre, trazia alguns peixes.



Como sempre também, o serviço de radioescuta da Casa Azul pegou de passagem a estação que transmitia as cotações da bolsa de mercadorias. Se o operador houvesse prestado bas¬tante atenção e fosse mais perspicaz, verificaria que os preços dos produtos eram um tanto estapafúrdios. Porém, não se po¬dia exigir tanto de um pobre terceiro-sargento.



"...os usurpadores do poder no Brasil mais uma vez des¬respeitam os direitos do povo. Dezenas de pais de família, po¬bres e humildes trabalhadores do campo estão sendo presos e torturados no Araguaia. Esta ação covarde não há de ficar impune. Povo brasileiro, operários e camponeses, uni-vos. O Exército Popular vencerá esta luta. As forças guerrilheiras do Araguaia estão cada vez mais fortalecidas. Trababalhadores rurais, não cedam às pressões. É hora de lutar...", transmitia a rádio Tirana, no seu estilo mesclado com marchas e hinos marciais.
- Filha da puta de rádio! A operação só começou há dois dias e a Tirana já está noticiando - disse Kiner para os doutores Oran e Gil, recém-chegados à Casa Azul para assu¬mirem suas funções no lugar do próprio Kiner e de Padilha. - Este é outro problema que você terá de enfrentar, Oran. Alguém da região está enviando informações para a Albânia, mas nós ainda não conseguimos detectar a fonte transmisso¬ra. O nosso serviço de radioescuta tem se empenhado, mas sem resultados até agora.
- Na reunião marcada para amanhã, quero que você me coloque a par de todos os problemas, indicando os responsá¬veis por cada uma das áreas - falou Oran. -Até lá, vamos tratar das verbas e da prestação de contas, para que eu assu¬ma sabendo das disponibilidades de dinheiro. Pelo visto, as despesas da operação são altas e irão aumentar com a chega¬da da tropa.
- Vou lhe passar tudo em ordem e em dia, mas não se preocupe com esse aspecto. Brasília não recusa nenhum pedi¬do de verba para nós, e o intendente da operação é um sujeito bem traquejado - disse Kiner, num tom quase paternal, ao companheiro.
De fato, Oran estava, de início, muito preocupado com os aspectos administrativos. Esta era a primeira missão de peso que recebia depois de sua promoção a coronel. Oran era, na¬turalmente, um nome frio. O verdadeiro era Laércio Gentil Falcão, e, como ele mesmo dizia a seus subordinados, "sou Laércio no nome, Gentil no trato social, porém Falcão, ave de rapina, agressiva e tenaz, no cumprimento do dever e das missões que me são confiadas".
Os três, Kiner, Oran e Gil, foram até o pátio para dar uma volta. A noite estava muito quente, e a cobertura de amianto da Casa Azul contribuía para aumentar o calor. Fo¬ra, Padilha juntou-se ao grupo.
- Naquele conjunto habitacional - explicou Kiner -, depois desse descampado, requisitamos uma das casas ao Incra para alojar o pessoal da força aérea que vai operar aqui em Marabá. O mais antigo deles participa da reunião do pôr-do-sol, quando toma conhecimento da programação aérea do dia seguinte.
- E que tal é o relacionamento com eles? - perguntou Gil.
- Ah, são todos jovens, alegres e divertidos. O relacio¬namento é ótimo - disse Kiner.
- Se bem que eles são um pouco folgados pró meu gos¬to - acrescentou Padilha, mordaz. Os outros três não lhe de¬ram atenção.
- No mesmo conjunto, existe uma casa que é ocupada por cinco professoras solteiras, contratadas pelo Incra para lecionar na escola rural que será inaugurada em breve. Apeli¬damos a casa de pombal e as moças, de pombas. À noite, de¬pois da reunião, a gente, de vez em quando, dá uma chegada lá, joga uma conversa fora com elas e relaxa das tensões do dia. Elas são boas pessoas, e, pelo que sei, até agora ninguém comeu ninguém.
- Parece, então, que a estada aqui não é tão má assim - comentou Gil, arregalando os olhos interessadamente. Quando o assunto era mulher, ele ficava aceso. Alto, aloira¬do, com pinta de galã de novela, era o major de artilharia Ranulfo Silveira. Embora fosse um testicocéfalo, era considerado um bom profissional.
- Bem, não é um mar de rosas, mas dá pra levar sem entrar em desespero. Antes que algo semelhante aconteça, nós mandamos o homem passar um semana na sua sede. Temos uma espécie de rodízio, no qual cada um procura cobrir a au-sência do companheiro que está fora - explicou Kiner.
- Quando fui designado para a missão - disse Oran -, tive o cuidado de dar um pulo a Brasília para tomar pé da si¬tuação nos bastidores. Um dos assuntos que verifiquei lá foi, justamente, o de pessoal. A fase de combate vai exigir um es¬forço maior, de maneira que providenciei um aumento do efetivo no comandamento da operação. Cada função terá, no mínimo, dois homens, de tal sorte que os períodos de "refres¬co" na sede sejam regulares, de acordo com uma escala.
Oran era metódico e organizado. Suas ações eram sem¬pre planejadas, jamais decidia de afogadilho.
- Grande providência, Oran - disse Kiner que pensa¬ra em fazer o mesmo quando assumira o comando, mas de¬sistira da idéia para que o general não achasse que estava exigindo muito.
- Voltando ao assunto das pombas - falou Gil - elas são confiáveis, quero dizer, elas sabem da nossa missão aqui?
- Mandei fazer um levantamento completo sobre elas. Todas estão limpas. De qualquer forma, a recomendação que dei ao pessoal é de que não comentem nada sobre a nossa atividade. Elas, no entanto, não são tolas e já devem ter des-confiado, mas nunca perguntaram, ou insinuaram, algo sobre o assunto. Quando surgem comentários sobre política, elas se posicionam sempre a favor do governo. A mãe de uma delas, inclusive, participou da marcha com Deus pela Liberdade, no Rio - disse Kiner.
- É bom saber disso. Parece que elas têm consciência de que a Revolução de 64 não foi um movimento unilateral dos militares, mas uma solicitação da própria sociedade civil para que nós interviéssemos para dar cobro à situação de caos político, social e económico a que nos estava levando João Goulart - observou Gil, imaginando quão interessante seria conhecer as pombas.
A conversa prolongou-se por mais algum tempo, antes que eles se recolhessem para dormir.


- Quer dizer que você está mesmo disposto a colaborar com o governo, Chicão? - perguntou o Gordo pela enésima vez, calma e pacientemente.
- To sim sinhor, doutor. Pode confiá - respondeu Chicão.
- Se você cagar no pau, já sabe o que acontece, não é?
- Sei, sim sinhor, doutor.
- Então, tá tudo combinado. Por uns tempos você vai ficar aqui com a gente, mas ninguém vai mais bater em você. Quanto à sua família, pode ficar tranquilo. Nós já estamos providenciando tudo. Sua mulher vai receber mantimentos e roupas pra ela e pras crianças. Por seu trabalho para nós, va¬mos lhe pagar também um dinheirinho. O governo é bom, Chicão, só queremos o bem do povo.
Era meados de outubro. Dos duzentos e tantos prisionei¬ros que haviam passado por Bacaba, eles selecionaram cerca de quarenta, entre mateiros e guias. Os que foram liberados saíram dali aterrorizados. Sabiam que a punição iria fazê-los pensar duas vezes antes de darem qualquer cobertura ao po¬vo da mata.
Além disso, cada um fora identificado e catalogado; tam¬bém foi montado um programa de acompanhamento para os liberados e suas famílias. Era uma espécie de liberdade vigiada.
Apesar da dureza com que Zeca e outros trataram Palmira, a mulher resistiu bravamente, negando até o fim sua par¬ticipação na emboscada que vitimara o agente Eliseu sete meses atrás. Contudo, ao ser liberada, juntamente com Manuel, ela levava secretamente um ódio e um desejo de vingança que per-durariam por muito tempo. Aquela era uma mulher indomável.



- O Matuala não sabe de nada, porra. É um babaca, porra! Pode deixar que eu falo diretamente com ele e resolvo isso. Manda o pirão, negão, sem perda de tempo - dizia o major-aviador Sariema, oficial de operações do 1º EMRA, Esquadrão Misto de Reconhecimento e Ataque, ao chefe do material. - Se não estiver tudo pronto até o fim do expediente, porra, nós vamos fazer serão. Um Búfalo e um Dakota vão estacionar aí no pátio amanhã cedo para carregar. Decola¬gem prevista para as treze zulu, negão.
- Tudo bem, major. Mas é que o comandante esteve lá embaixo, no hangar, e disse que era para suspender o encaixotamento do material até ele falar com o Comar (Comando Aéreo Regional). O velho tá uma arara com essa operação -disse o capitão Kauajima.
- Porra, já falei, porra! Manda o pirão, negão - re¬plicou Sariema nervoso, mas sem se aborrecer com o zeloso e responsável chefe de material do esquadrão.
Quando o japonês saiu da sala de operações, Sariema fa¬lou para o chefe de pessoal, capitão Gonçalo:
- E você, porra, como é que está a sua parte?
- Meu setor está todo pronto, viu, viu, major. Estamos embalando as última caixas de material de expediente e a sala de briefing está preparada para amanhã às oito, major - res¬pondeu o atoleimado capitão.
O 1º EMRA, unidade aérea designada para dar o apoio à operação de combate no Araguaia, estava numa confusão geral, preparando-se para se deslocar para Xambioá em qua¬renta e oito horas.
Sariema entrou no gabinete do tenente-coronel Matuala, o comandante do esquadrão.
- Porra, coronel, o senhor mandou parar o trabalho de apronto do material!?
- Não foi bem assim, Sariema. Quero só perguntar pri¬meiro pró Comar como é que vai ficar a situação do esqua¬drão, aqui na sede, com o deslocamento da maioria das aeronaves e do efetivo. Sem avião aqui eu fecho as portas e vou pra casa. Porque eu, meu caro, não vou pro meio do mato me foder. Estou muito velho pra isso.
J. Matuala era assim. Um incompetente e boa-vida. Gos¬tava de ter o pátio cheio de aeronaves e de escolher as missões que ele faria. Viagem a Manaus ele não rejeitava. Afinal, era preciso aproveitar a sua etapa em Belém para comprar todas aquelas maravilhas da Zona Franca. A banda podre, ir para o meio do mato e dormir em barraca com os mosquitos fa¬zendo a festa no sangue dele, nem pensar. O major Sariema com os capitães e tenentes que fizessem isso.
- Porra, coronel, sou o chefe de operações desta por¬ra, ou não sou? Mandei preparar para deslocamento, porra, cumprindo determinação direta do Comgar (Comando Geral do Ar), porra.
- Calma, Sariema. Não precisa ficar nervoso... Pode prosseguir com a sua programação - disse ele, afável. Outra carac¬terística de sua personalidade era que, se o subordinado o pei¬tasse, ele não revidava. Ao contrário, "botava o galho dentro".
O major saiu do gabinete cuspindo marimbondos.
No dia seguinte, às oito da manhã, as tripulações reuniram-se para o briefing final da missão.
- ...hoje às dez horas - treze Greenwich ou zulu - o material começa a ser transportado para Xambioá. Na pri¬meira perna, está seguindo uma equipe precursora que vai pro¬videnciar as condições mínimas de operação - dizia o capitão Kauajima. - Depois que nos instalarmos lá, com calma, pois a missão parece que será prolongada, iremos melhorando o acampamento para maior conforto das tripulações. Antes dis¬so, espero que cada um dê a sua parcela de sacrifício, sem muita reclamação.
O major Sariema dera o briefing de operações, explican¬do a respeito do deslocamento das aeronaves, um helicóptero UH-1H, já que dois outros estavam em Marabá há duas se¬manas, e três aviões de "ligação e observação", do tipo L-19, um versátil monomotor de asa alta com dois assentos em tan¬dem, para o piloto e o observador. Essa fração aérea decola¬ria no dia seguinte, às sete da manhã.
- ...todo o pessoal envolvido na operação usará trajes civis, sendo recomendável que cada um deixe de cortar o ca¬belo e a barba, por algum tempo, para nos descaracterizar¬mos da postura militar - expunha agora o chefe de pessoal. - Todos, igualmente, devem usar um codinome, e é termi¬nantemente proibido que um se dirija ao outro pelo nome ver¬dadeiro. Assim, vamos procurar decorar, o mais rápido possível, o nome frio dos companheiros. Esta é uma medida de segurança...
Às dez e trinta da manhã do dia 23 de outubro, Dia do Aviador, o primeiro EMRA pousava na pista de terra de Xam¬bioá, com dois Sapões e dois Paqueras, os UH-1H e os L-19.



- Arre égua! Mas é muito macho chegando - disse a mulata Nair, prostituta da zona do Vietinam, com um sorriso.
- E parece que os home vão ficar é muito tempo, muler. Vamo faturar um bocado, minha santa - completou Isadora.
Xambioá estava um rebuliço. A chegada de tantos aviões e helicópteros agitava a cidade com as opiniões mais desen¬contradas. Gente contra e a favor, conforme a conveniência de cada um.
- Se é o que tão dizendo, vou enricar, Zé Geraldo? - falava Valdir, atrás do balcão do bar Quentão. - Diz que che¬gou pra mais de duzentos homens. Uns poucos que espiaram de perto disseram também que eles são de duas empresas. Uma tal de DDP Mineração e uma outra, Agropecuária do Ara¬guaia. Mas a verdade é que é tudo soldado disfarçado. Cê já viu mineração e agropecuária trabalhar junto, Zé Geraldo? ah, aah, aaah - gargalhou ele, feliz.
- E cê já viu gente de mineradora e de agropecuária ar¬mada do jeito que eles chegaram, em avião da FAB pintado de verde!? - disse um outro freguês de Valdir. - Eles pen¬sam que o povo é burro.
Realmente, o disfarce, do ponto de vista daquela gente, era uma piada. Mas Zé Geraldo sabia qual era a finalidade. "Eles vão fazer tudo para esconder dos organismos interna¬cionais a situação de conflito na região. Para não dar chance de reconhecimento de uma zona liberada, como aconteceu no Vietnam", pensava ele. "Hoje terei mais uma madrugada de pescaria."
Despediu-se de Valdir e tomou o rumo de sua oficina.



Na lateral da pista de pouso de Xambioá, o pessoal de apoio da Força Aérea trabalhava a todo vapor para colocar em operação um grupo gerador, a estação de rádio, a cozinha de campanha e mil outras facilidades. Um poço para fornecimento de água estava sendo cavado, latrinas instaladas, fios elétricos estendidos, antenas esticadas, três heliportos construídos, uma zorra total.
- Vamos lá, macacada. Esta porra tem que ficar pron¬ta ainda hoje - gritava o chefe da manutenção, Dr. Vitrôncio. - Ô Gauchão, vamo com isso, cara. Quer moleza, meu nego, senta no pudim.
Mais um Búfalo C-115, avião de transporte de tropa e, portanto, com larga capacidade de carga, estava estacionan¬do para descarregar tambores de querosene de aviação JP-1.
Ao lado do acampamento da DDP Mineração, compo¬nentes do BGS, Batalhão de Guerra na Selva, ou Agropecuá¬ria do Araguaia, labutavam com igual intensidade. O local destinado a eles ficava mais próximo do rio, facilitando o aces¬so à água. Em compensação, a área a ser desmaiada era mui¬to maior.
Vinte e quatro horas depois, um Sapão pilotado pelo Dr. Jorge, ou major Joaquim Sariema, pousava em Xambioá, tra¬zendo Oran e sua equipe para inspeção e verificação das con¬dições para início efetivo da operação de combate.
No dia seguinte, logo pela manhã, as primeiras patrulhas seriam lançadas na selva.

Capítulo VIII

- Porra, assim não dá, Gil - falou Jorge.
- Como não dá? São três Sapões, um daqui de Marabá e dois de Xambioá. Cada um lança três, ou no máximo qua¬tro patrulhas. Num só dia, teremos as dez patrulhas em ação — ponderou o chefe de operações terrestres.
- Picas, não pode ser assim. Não sabemos qual é a opo¬sição que podemos encontrar durante a fase crítica de pouso e desembarque. Se na aproximação um puto dum guerrilhei¬ro desse, escondido no mato, der um tirinho no meu rotor de cauda, derruba a aeronave e desconta todos os bonecos que estiverem dentro - disse Jorge.
- Então, como é que você imagina que tem que ser? - perguntou Gil ao aviador.
Os dois majores estavam acertando os detalhes para a reu¬nião do pôr-do-sol da véspera do dia de início dos combates. Jorge era um experiente piloto de ataque, com curso de ope¬rações aéreas especiais. Gil, por outro lado, conhecia profun-damente tática e progressão no terreno, mas nada de aviação.
- Cada patrulha terá que ser lançada com dois Sapões. Um deve chegar ao ponto de lançamento, a uma altura de du¬zentos, ou trezentos pés, e circular o local, amaciando o ter¬reno adjacente com rajadas de tiro lateral. Para isso, já mandei montar metralhadoras em ambas as portas do compartimento de carga de um dos Sapões. Ao mesmo tempo, o segundo Sapão, transportando a patrulha, vem em voo rasante sobre a copa das árvores e faz uma aproximação para pouso de as-salto no ponto determinado. Após o desembarque, ambos re¬tornam a Xambioá, para reabastecimento e para pegar outra patrulha. É assim que tem que ser, porra - explicou Jorge.
- Puta merda! Gostei. Deve ser uma manobra bonita e aumenta muito a segurança. Mas, dessa forma, não dá para lançar todas as patrulhas num só dia, não é?
- Claro que não, porra. Lançaremos três, ou quatro, por dia, e já será um puta esforço aéreo. Entretanto, há uma vantagem. No fim do terceiro dia, teremos lançado todas as patrulhas, e, a partir do quarto dia, iniciamos o trabalho de recolhimento das primeiras. Nessa ocasião, o Sapão lança a substituta e recolhe a substituída. Dessa maneira, desenvol¬veremos um trabalho contínuo, não permitindo que as tripu¬lações fiquem ociosas.
- Brilhante, companheiro. Penso que, agora, estamos em condição de apresentar ao chefe e aos demais a idéia de manobra. Todos os dias, também, o Paquera sobrevoa a re¬gião com um observador da Casa Azul, ou do comando da tropa em Xambioá, e faz contato com cada uma das patru¬lhas pelo rádio. Manteremos assim o acompanhamento de evo¬lução das ações - concluiu Gil, agradecendo o apoio de seu companheiro da Força Aérea. Afinal, aquela era uma opera¬ção conjunta, embora o comandamento fosse da Força Ter¬restre.



- Já sabem, não é, Dora e Dag? - disse Valquíria. - Podem ir prô forró do Quentão dançar à vontade, mas, pelo amor de Deus, vê se vocês conseguem enrabichar um desses caras da mineradora. Estou louca pra saber das futricas so¬bre essa gente.
- Pode deixar, Val. Se eles derem a cara no forró, vou jogar um charme em cima desses bonitões - falou Doralice, a mais desinibida das filhas de criação da Baleia.
Antes da chegada da mineradora e da agropecuária, Valdir promovia aos sábados um arrasta-pé no salão dos fundos do bar. Agora, com tanta gente de fora na pequenina Xambioá, havia forró de quinta a domingo, de oito à meia-noite.
- É o que estou lhe dizendo, Valdemar. O movimento melhorou muito, mas não é, nem de longe, como era de pri¬meiro, quando as tropas estiveram aqui antes - disse Valdir para o padeiro.
- Pois eu tou vendendo pão a valer pra eles - replicou o dono da padaria. - Mas quando eu falei de aumentar o pre¬ço, vixe!! Os home viraro bicho. Um deles teve lá em casa e garrou a xingá eu mais a Maria Preta e disse que se o preço subir nós íamos acertar as contas no acampamento. O jeito foi deixar como tá. Num quero saber de confusão com esse povo da federal não. Deus me livre!
- Aqui, no bar, eles não tão reclamando do preço. Mas, também, quase que só aparece aqui os doutô. É doutô fulano pra lá, doutô sicrano pra cá. Os amarra-cachorro vêm muito pouco.
Realmente, na agropecuária, o Dr. Elesbão mantinha com mão de ferro a disciplina de seus homens. Os que estavam no período de folga de três dias, após patrulha, só podiam sair do acampamento um, com regresso até as dez da noite. Mil recomendações eram feitas.
- Se algum engraçadinho aprontar na cidade, já sabe, volta preso pra Manaus no dia seguinte... Cuidado pra não pegar gonorréia no Vietinam... - E blá, blá, blá...
O Dr. Arnon, juntamente com seu colega Dr. Galileu, da mineração, ambos médicos, haviam examinado cada uma das moças da zona do Vietinam. As que estavam contaminadas passaram a receber tratamento adequado à base de Benzetacil. Todas as semanas elas eram inspecionadas.
Na DDP Mineração, eles eram mais liberais. Com um efetivo bem menor, quase todos "doutores", ou funcionários mais graduados, a recomendação de Jorjão era simples:
- Só se justifica falta aos horários de decolagem por doença. E ressaca não é doença, porra. Quem chegar bêba¬do, porra, vomita lá fora, antes da cerca, vai dormir e não enche o saco dos demais.



A floresta estava silenciosa. Um calor úmido e abafante colava ao corpo a roupa suarenta dos homens. Eles se deslo¬cavam devagar, com passadas cuidadosas. Num local onde a mata estava mais aberta e limpa, o que parecia ser o chefe fez um sinal e os outros pararam.
Florêncio ficou alguns minutos com o ouvido atento. De repente, o silêncio foi quebrado por uma gritaria ensurdece¬dora. Os homens se abaixaram, procurando abrigo. Mas a al¬gazarra passou logo. Fora apenas um bando de macacos que, saltando e guinchando nos galhos mais altos do arvoredo, fu¬giram à aproximação daqueles sete estranhos, os cinco solda¬dos mais o guia e o mateiro da patrulha Jabuti Um.
- E aí, Raimundo, qual é o rumo agora? - perguntou Florêncio, em voz baixa, ao guia.
Raimundo Nazaré examinou meticulosamente os arredores e disse:
- Ês pássaro por aqui há uma meia hora, e seguiro na¬quele rumo - apontou.
- Como é que você tem certeza disso?
- É só oiá essas folhinha de pranta aqui. Tá vendo? Num tem uns musquitinhos invorta delas? Pois então.
- Pois então o quê?
- Seu Florêncio, quando os cabra pássaro, esbarraro o corpo suado nas foias. Os musquitinhos fica tudo invorta chu¬pando o sargadinho quente. Conforme o tanto de musquito, carculo o tempo que és pássaro.
Florêncio fez uma expressão ao mesmo tempo de dúvida e de admiração. "Quanta sabedoria num homem tão rude", pensou.
A patrulha seguiu no rumo indicado por Raimundo. Es¬tavam todos ansiosos para entrar em ação. O primeiro cha¬furdo da Jabuti Um.


- Olá, seu Jocelino. Como vão indo vocês? - disse Osvaldão entrando no terreiro do sítio do Angico. Juntamente com ele vinham Ananias e Rosa.
- Pode vortá pra trais, seu Osvaldão. Pelo amor de Deus, cêis trata de vortá pra trais - respondeu Jocelino, en¬costando o machado que estava usando para rachar a lenha e encarando o negro e seus dois acompanhantes.
- Que é isso, Jocelino? Que bicho lhe mordeu, meu ami¬go? Você tá parecendo que viu assombração - brincou Os¬valdão.
- Foi muito mais pior que assombração. Cêis pode vortá pra mata e é já. Num quero nem pensá em negócio com ocêis mais, e é de jeito ninhum - falou Jocelino apavorado.
- Ô seu Jocelino, nós sempre fomos tão amigos - in¬terferiu Rosa. - Como vai a comadre Zefinha?... e os meninos?
- Vai tudo bem, minina Rosa. Vai tudo bem. Mais ocêis num pode vim aqui mais não. Me adiscurpe, mais se os home do gunverno fica sabendo que ocêis tão vindo aqui, vai com¬plicá pró meu lado.
- Ah, então é isso? A nossa velha amizade não vale mais nada!? - falou Ananias.
Zefinha e as crianças estavam escondidas no tapiri, mor¬tas de medo. Os três guerrilheiros sabiam que não teriam mais apoio daquela gente. Eles já haviam sido escorraçados num outro sítio, e aquela era uma última tentativa de se reaproximarem da população e concitá-los a resistir às tropas.
- Tudo bem, Jocelino. Nós vamos embora em paz com vocês - disse Osvaldão, desolado. - Um dia, muito em bre¬ve, voltaremos e vocês ficarão do nosso lado. Até mais ver, meu amigo.
Os três entraram na mata pelo mesmo lugar de onde ti¬nham vindo. Mais à frente, num baixio do terreno, próximo ao igarapé do Mutum, afluente do Saranzal, uma parte do gru¬po esperava.
- Camaradas, não conseguimos nada. Fomos novamente enxotados. Os filhos da puta da repressão deixaram essa gen¬te aterrorizada - falou Osvaldão.
- Porra, mas isso é muita ingratidão desse povo. Há mais de cinco anos a gente vem ajudando e fazendo um puta tra¬balho de doutrinação socialista com eles, mostrando como eles estão sendo explorados por essa sociedade injusta, e, agora, os cagões se borram todos com medo de uns sargentinhos de merda que pensam que são os donos do Brasil - desabafou Sampaio.
- Vamos ter calma, camaradas. Agora não é hora pra entrar em desespero - disse Osvaldão.
- O que a gente faz, então? - perguntou Iracema.
Osvaldão, no dia anterior, quando eles escutaram a ba¬rulhada dos helicópteros e as rajadas de metralhadoras, na re¬gião do igarapé Paraíso, resolvera que a melhor tática seria dividir o grupo em dois. Assim, ficaram com ele Sampaio, Ál-varo, Iracema, Antenor, Ananias e Rosa. No outro grupo, che¬fiado por Eraldo, ficaram Vanderlei, Celso, Vera, Olavo, Demerval e Delmo. Em cada subgrupo ficou também meia dú¬zia de nativos que haviam aderido ao movimento guerrilhei-ro, entre eles o ex-soldado Viriato e a cabocla Palmira.
- Vamos manter o que planejamos. Essa é uma guerra de paciência. Temos que nos manter alerta e, sempre que hou¬ver uma oportunidade, armamos uma emboscada para os milicos de merda.
Eram duas horas da tarde. A oito mil pés, um pequeno avião monomotor sobrevoava a região do Saranzal. Eles não escutaram o ruído do Paquera, mas ouviram um outro baru¬lho estranho. Osvaldão, levando o dedo indicador à boca, fez sinal de silêncio. Era um negro alto, forte e valente. Todos o respeitavam, e ele exercia sobre os demais uma liderença sem autoritarismo.
Um som abafado, quase imperceptível, chegou até eles, vindo do outro lado do igarapé, onde a vegetação entre as ár¬vores era mais espessa. Osvaldão atravessou o riacho para ver o que era aquilo. Dois nativos o acompanharam.



- Jabuti Um, Paquera, câmbio - disse Rafael ao mi¬crofone.
- Paquera, aqui Jabuti Um, na escuta. Câmbio - res¬pondeu Florêncio.
- Paquera para Jabuti Um. Alguma novidade? Câmbio.
- Jabuti Um para Paquera. Estamos no rastro. Confir¬me resgate para amanhã. Câmbio.
- Afirmativo, Jabuti Um. Confirme ponto de resgate. Câmbio.
- Jabuti Um para Paquera. Resgate na clareira da Água Preta. Estaremos prontos para resgate a partir de duas da tarde. Câmbio final.
- Ciente, Jabuti Um. Boa missão e desligo. Enquanto Florêncio mantinha contato com o Paquera, o restante dos homens estava disposto em semicírculo, alerta. O Loiro foi quem primeiro ouviu o barulho de mato pisado e, a seguir, uma manopla negra afastando a ramagem para o lado. Ele não pensou duas vezes. Descarregou uma rajada do seu fuzil-metralhadora, rápida e certeira. Os demais atira¬ram em dois vultos que corriam em busca de abrigo.
Quando o tiroteio cessou, Florêncio, que ficara estático, ouviu o tropel de passos do outro lado do igarapé. A patru¬lha se manteve em posição, aguardando as ordens do chefe.
- Loiro e Vicente, venham comigo - disse ele. - Marivaldo e Biguá, nos dêem cobertura.
Os três soldados avançaram com cautela. Não sabiam se haveria nova surpresa. Com prudência, foram se aproximan¬do do local de mato mais denso. Um bando de araras passou grasnando por cima da copa das árvores. No meio do mata¬gal, encontraram, primeiro, o corpo de um negro enorme. Vá¬rios projetis haviam penetrado no peito e no abdome, saindo pelas costas do homem. A morte, provavelmente, fora ins¬tantânea.
Mais à frente, encontraram dois outros. Um já estava mor¬to, o terceiro agonizava.
"O batismo de fogo da Jabuti Um foi um sucesso", pen¬sou Florêncio.
- E agora, chefe? - perguntou Vicente.
- Vá chamar os outros e traga o rádio depressa. Preci¬so tentar um contato com o Paquera. Ele ainda deve estar na área.
Logo depois a patrulha estava reunida. Florêncio disten¬deu a antena telescópica do transreceptor FM e ligou a chave de potência.
- ...ciente Jabuti Dois. Câmbio final - o Paquera es¬tava acabando de falar com outra patrulha.
- Paquera, aqui Jabuti Um. Câmbio - chamou Flo¬rêncio.
- Confirme Jabuti Um chamando Paquera. Câmbio - respondeu o piloto.
- Positivo. Positivo, Jabuti Um para Paquera. Houve chafurdo. Confirme entendido. Câmbio.
- Afirmativo Jabuti Um. Estou lhe ouvindo alto e cla¬ro. Entendido que houve chafurdo. Prossiga. Câmbio.
- Paquera, aqui Jabuti Um. Chafurdo rendeu três pre¬suntos. Solicito instruções. Câmbio.
- Paquera para Jabuti Um. Confirme três presuntos. Câmbio.
- Positivo, paquera. Três presuntos. Repito. Chafurdo rendeu três presuntos. Solicito instruções. Câmbio.
- Ciente, Jabuti Um. Aguarde instruções. Paquera vai fazer contato com a Casa Azul. Permaneça na frequência. Câmbio.



Eram duas e quarenta da tarde modorrenta. Na sala da estação de rádio da Casa Azul, um pequeno ventilador tenta¬va, inutilmente, espantar o calor. Os dois operadores conver¬savam amenidades a respeito da participação do Brasil na Copa do Mundo do ano seguinte. Um deles acendeu um cigarro. De súbito, o receptor VHF ganhou vida.
- Casa Azul, Casa Azul. Paquera chamando Casa Azul. Câmbio.
- Paquera, Casa Azul lhe ouvindo cinco por cinco. Na sua escuta. Prossiga. Câmbio - respondeu o operador.
- Paquera para Casa Azul. Patrulha Jabuti Um obteve contato. Houve chafurdo. Repito. Houve chafurdo. Três pre¬suntos. Três pres... - O sinal caiu e o operador ajustou a sin¬tonia do aparelho. - ...acões. Câmbio.
- Casa Azul para Paquera. Entendido que a Jabuti Um obteve contato e que houve chafurdo. Confirme o restante da mensagem, Paquera. Câmbio.
- Paquera para Azul. Confirmando. Houve chafurdo. Três presuntos. Jabuti Um solicita instruções. Câmbio.
- Ciente, Paquera. Copiado. Aguarde na frequência. Câmbio.
- Ciente, Azul. Câmbio e aguardo.
O operador saiu à procura do chefe de operações. Ia ex¬citado. Era a notícia do primeiro chafurdo depois que as pa¬trulhas começaram a ser lançadas, no dia anterior.
Gil e Oran estavam conversando na sala de reuniões. Dois aparelhos de ar-condicionado, recém-instalados, tornavam o ambiente bastante agradável. Uma conquista da administra¬ção de Oran.
- Dá licença, doutor - disse o operador, entrando ino¬pinadamente.
- Fala, Marcondes. O que foi? - perguntou Oran, afável.
- O Paquera acabou de fazer contato. Disse que a Ja¬buti Um chafurdou e que fez três presuntos e estão pedindo instruções, e o Paquera está na escuta, aguardando - falou Marcondes de um só fôlego.
Oran e Gil ficaram imediatamente eletrizados.
- Vamos lá para a estação - disse Oran. Os dois se le¬vantaram e saíram nos calcanhares de Marcondes que partiu na frente em direção à sala de rádio.
- Casa Azul para Paquera. Paquera, Paquera, Casa Azul chamando. Câmbio -falou o operador ao microfone.
Após se inteirarem, diretamente, da notícia, tendo o Pa¬quera informado que as três baixas eram do lado inimigo e que uma delas era um negro, Oran e Gil disseram quase em uníssono:
- O negro deve ser o Osvaldão!
- Mas precisamos ter certeza disso - disse Oran.
- Sugiro que a gente mande um Sapão resgatar os cor¬pos e levá-los para Bacaba. Um Sapão de Xambioá, que está mais perto da Jabuti Um. Enquanto isso, nós nos deslocamos daqui para Bacaba noutro Sapão - falou Gil.
Oran ponderou a sugestão, consultou o relógio e disse:
- É isso mesmo. Creio que há tempo suficiente. Ainda são três e dez.
- Okei. Pode deixar, chefe. Vou tomar as providências.



Quando a mensagem de "missão imediata" chegou à mineradora, eram três e vinte.
- Esses pés-de-poeira estão malucos, negão - disse o Dr. Banto para seu companheiro Tiago. - Eles estão pensando o quê? Que isso aqui é cu-de-mãe-chica? Temos ainda que mon¬tar o guincho no Sapão, e não sei se vai dar tempo de cumprir a missão antes do pôr-do-sol.
- Já falei com o Jorjão, em Marabá. Ele disse pra gen¬te mandar pirão. A missão tem que ser cumprida hoje - fa¬lou o japonês.
- Ô Vitrôncio, quanto tempo pra montar o guincho no Sapão e dar o pronto para decolagem? - perguntou Banto, consultando a Tabela do Nascer e do Pôr-do-Sol.
- Trinta a quarenta minutos, estaremos com a aerona¬ve em condições de decolagem - respondeu o chefe da ma¬nutenção.
- O pôr-do-sol aqui é às seis e vinte e sete, nessa época do ano - falou ele para o nipônico. E, para Vitrôncio: - Manda pirão. Ordes é ordes, negão, tá esperando o quê?
Tiago havia acabado de fazer os cálculos de tempo na car¬ta de navegação.
- Se decolarmos até as quatro e trinta, vai dar tempo, mas teremos que pernoitar em Marabá ou, na pior das hipó¬teses, em Bacaba. Não vai dá pra voltar pra cá de jeito nenhum.
- E aí, o que você decide? - perguntou Banto.
- Eu não decido nada, negão. Já está decidido. Prepa¬rar para a decolagem tão logo o guincho esteja no lugar e fun¬cionando.
Às quatro e cinco o equipamento de resgate estava insta¬lado e testado. Às quatro e doze o Sapão decolou. O Paquera, com sua maior autonomia, permanecia na área para orientar o Sapão na localização do ponto de resgate. Rafael já fizera a plotagem do local com o rádio em homing, posição que per¬mitia traçar a direção do sinal transmitido por Florêncio no solo. Com duas plotagens em ângulos diferentes, tinha-se um pon¬to de relativa precisão. Naturalmente, a localização visual era impossível. Do alto só se via o tapete verde da floresta.
Às quatro e quarenta, o Sapão iniciou o voo pairado so¬bre a copa das árvores, a cerca de cem pés do solo.
- Alvo avistado à nossa direita - disse o artilheiro e operador do guincho, embora o piloto, na cabine, tivesse tam¬bém comando sobre o aparelho de içamento.
O próprio fluxo de ar, provocado pelo movimento das pás do rotor principal, abria espaço na ramagem, permitindo que se avistasse a patrulha trinta metros abaixo.
- Cauda para a direita, devagar - falou o controlador de cauda pelo interfone. - Mantenha posição, se quiser po¬de baixar mais um pouco.
Na cabine, o piloto executava os movimentos ditados pelo controlador. Era uma operação de extrema precisão e confian¬ça entre os membros da tripulação. Os comandos da aerona¬ve, pedais, cíclico e coletivo, tinham que ser manuseados com suavidade, mas determinação, para manter o voo pairado, com árvores a toda volta, o mais estável possível. Qualquer des¬cuido e um dos rotores podia bater num galho ou tronco, pro¬vocando um acidente de graves proporções.
- Pronto para início do resgate. Guincho para fora e cabo baixando - disse o artilheiro, acionando o motor elétrico do equipamento para a posição down.
No solo, os homens seguraram a ponta do cabo de aço, retiraram o colete de resgate e o vestiram no cadáver do ne¬gro. Engataram o gancho do cabo na alça de peito da vesti¬menta e fizeram o sinal convencional de "positivo", dedo polegar para cima com o punho fechado.
- Iniciando o içamento - falou o artilheiro, ativando o botão up. O corpo começou a subir. O piloto colocou mais um pouco de potência para compensar o aumento de peso.
De repente, um tranco nos comandos.
- O que foi isso! - exclamou o comandante.
- O crioulo despencou! Abriu os braços e escorregou do colete. Caralhos, se não estava morto, morreu com a por¬rada no chão - informou o artilheiro.
- Você tem alguma coisa contra crioulo? - perguntou Banto.
- Que é isso, doutor, foi só força de expressão.
Começou tudo de novo. Na segunda vez, os braços do cadáver foram amarrados ao tronco, e o resgate se proces¬sou.
Às cinco e cinquenta e cinco, o Sapão pousava na pista de Bacaba. Oran e sua equipe aguardavam. A identificação foi positiva. Era o Osvaldão.

Capítulo IX

O forró estava pegando fogo no Bar Quentão. Os corpos suados de moças e rapazes, homens e mulheres bamboleavam ao som estridente e ao ritmo animado do carimbó:
"...corre veado, lá vem caçador..."
- Olha só aquela de calça justa azul, japonês - disse Silvério para Tiago. Eles haviam acabado de chegar e esta¬vam parados na porta do salão.
O nipônico olhou na direção da moça, mas não fez qual¬quer comentário. Apenas pensou: "Vai ser boa lá em casa."
De fato, Joaninha era um bela garota. Na flor de seus dezoito anos, tinha um corpo escultural e a alegria própria da juventude. Cabelos curtos, castanhos claros e lisos. Pele al¬va, um rosto encantador com olhos vivos e brejeiros, umas poucas sardas nas maçãs do rosto emprestavam-lhe uma gra¬ça especial, A boca era carnuda, e um sorriso franco e mole¬que habitava, constante, seus lábios levemente vermelhos de batom.
Tiago dirigiu-se para onde estava Joaninha, ao lado de uma outra moça. Entretanto, antes que ele a convidasse para dançar, um moreno um tanto desengonçado saiu a bailar com ela. Era Zé Geraldo.
O japonês, para não perder a viagem, convidou a outra, e isso iria mudar o curso dos acontecimentos.
Por volta da meia-noite, a calçada da Baleia estava ain¬da animada. Umas cinco ou seis pessoas conversavam, entre elas Zé Geraldo, que havia chegado há uma meia hora, vindo do Quentão.
- E aí, Zé Geraldo, dançaste muito no forró? - per¬guntou Valquíria.
- Dancei um bocado com a Joaninha. Boa menina, aquela.
- Precisas tomar tenência, meu nego - falou Val, dando uma de suas gostosas gargalhadas. - A Joaninha é muito jo¬vem pra você, ô Zé. Tá na hora de arrumares uma muler mais velha, casar por contrato ou se amigá.
Zé Geraldo deu um sorriso, mas não disse nada.
- Viste minhas meninas por lá? - perguntou Vai.
- Vi. E olha elas vindo ali — disse ele, apontando para uma das extremidades da rua.
Lá vinham elas, Doralice com Silvério e Dagmar com Tia¬go. "Uma bela arrumação!", pensou Valquíria.
Os quatro se aproximaram, e Dora foi fazendo as apre¬sentações.
- Minha mãe Valquíria, Silvério e Tiago. Eles trabalham na mineração, Val - observou ela. - Esse aqui é o nosso ami¬go Zé Geraldo, e ali é a Maria Preta, esposa do Valdemar pa¬deiro... lá o Paulo Boto... - E assim por diante.
- Boa noite, pessoal - cumprimentaram os dois rapazes.
- Podem ir se abancando, minha gente - disse Val sor¬rindo. - Os moços aceitam um copo de refresco de caju? Tá geladinho.
- Não precisa se incomodar, não, minha senhora - res¬pondeu o japonês.
- E eu vou lá me incomodar? - gargalhou Val. - Do¬ra e Dag, vão lá dentro buscar o resfresco dos moços. Dessa cadeira aqui só me arredo na hora de ir dormir.
- Quer dizer que vocês trabalham na mineradora? - perguntou Maria Preta. Era uma mulata bem-fornida, de an¬cas largas, e não mais que trinta anos, na avaliação de Silvério.
- É, trabalhamos sim - respondeu o tenente-aviador Cesário Magalhães, mineiro de São João Del-Rei, estatura me¬diana, moreno claro, magro e de olhar desconfiado.
- Ainda que mal pergunte, vocês trabalham de quê lá, são engenheiros? — provocou Valquíria, sorridente, fazendo um olhar maroto.
Tiago não estava gostando do rumo da conversa. "A gor¬da é alegre e simpática, mas está querendo saber demais", pen¬sou. Tiago era o codinome do capitão António Kauajima, paulista de Jabuticabal, ombros largos, um metro e sessenta e oito, esguio e de espírito reservado, quando não tinha inti¬midade com as pessoas. Fosse outra a situação, já estaria fa¬zendo brincadeiras e rindo descontraidamente.
- Somos pilotos - disse Silvério com sequidão.
As garotas trouxeram os copos de refresco e serviram o suco gelado aos rapazes.
Minutos depois eles se levantaram para ir embora.
- A conversa está boa, mas está na hora de ir. Amanhã temos vôo às sete - falou Tiago.
- Ainda é cedo, minha gente. Fiquem mais um pouco - convidou Val. - Vocês nem esquentaram a cadeira. Vo¬cês precisam conversar com o Zé Geraldo, um mecânico de mão-cheia. - Acrescentou ela. - De repente, lá na mineradora aparece um problema, pode chamar o Zé Geraldo que ele conserta - espichou ela a conversa, indicando o homem que, até então, se mantivera calado.
O japonês se lembrava dele. "É o mesmo que saiu para dançar com aquela garota de calça justa azul'', pensou, e disse:
- Prazer em conhecê-lo, companheiro. Quem sabe a gen¬te pode vir a precisar mesmo de seus serviços?
- Se vocês tiverem dificuldades de mecânica ou de eletricidade, pode mandar me chamar, estarei às ordens — res¬pondeu Zé Geraldo, um tanto tímido.
Afinal, eles se despediram. As moças os acompanharam até a esquina, onde as despedidas levaram um pouco mais de tempo. Ambas, Doralice e Dagmar, estavam encantadas com os pilotos. Eles significavam tudo o que elas desejavam e não podiam ter numa cidade tão pequena e pobre como Xambioá.
No caminho de volta para o acampamento, eles pararam num botequim do Vietinam para tomar uma cerveja.
- O que você achou das moças? - perguntou Silvério ao companheiro.
- Boas meninas. Já temos um programa para quebrar a tensão e espairecer das preocupações do dia-a-dia - disse Tiago. - Agora, a gordona, mãe delas, é muito curiosa.
- Negão, pra lhe falar a verdade, gostei mesmo foi da tal Maria Preta. Que bunda, japonês, você reparou bem nela?
- Claro que reparei. A mulata tava comendo você com os olhos! Vai fundo que ali pode dar caldo, mas tem que ver qual é a do marido.
E, assim conversando, eles foram até umas tantas horas. A estada em Xambioá não ia ser tão má. Muito ainda estava por acontecer.


Na Casa Azul, após a reunião do pôr-do-sol, Oran, Gil, o Gordo, Zeca e outros escutavam a rádio Tirana.
"...Bravos guerrilheiros do Araguaia, vamos resistir com firmeza às forças imperialistas do governo corrupto e desu¬mano do Brasil... O assassinato covarde do herói Osvaldo Oli¬veira Couto enche de indignação o povo brasileiro. Porém, a morte do valente e destemido tenente Osvaldão, do Exérci¬to Popular, exalta os ânimos e a vontade de vencer dos traba¬lhadores e camponeses. O povo oprimido do Araguaia..."
- Olha aí. Quarenta e oito horas depois do chafurdo, Osvaldão já é herói na Albânia - disse Gil. - E o Clementino não consegue descobrir nada com essa parafernália eletrônica dele. Não dá para continuar assim, porra. Desculpa, chefe, pelo "porra". Acho que estou conversando muito com o Jorjão. O cara fala três palavras, sai quatro "porra".
- Fiz contato com Brasília, a respeito da Tirana. En¬quanto não se descobrir a fonte que está mandando infor¬mações para lá, o SNI vai colocar uma portadora de cinco quilowatts, na frequência da Tirana, no horário em que ela transmite para o Brasil. A interferência vai ser tão grande que acho que essa gente desiste de escutar as notícias capciosas des¬ses comunistas baratos - informou Oran.
Depois do noticiário, Gil, Zeca e o Gordo foram dar um passeio na casa das pombas. Quando chegaram lá, Jorge já estava de papo com as moças.
- Porra, porra, vocês demoraram a chegar - disse o aviador. - Eu sozinho aqui, contra cinco, porra, elas iam aca¬bar me estuprando. - Todos riram. - E eu ia gostar, né?
Jorge era um cara divertido e bom profissional. Muito alto, loiro e com um rosto avermelhado, era magro, tinha um grande nariz e um queixo proeminente. Não era uma figura que chamasse a atenção das mulheres, mas era um tremendo mulherengo. Fazia, assim, uma ótima dupla com Gil.
A conversa logo ficou animada. Zuleica, uma das pom¬bas, serviu um licor para cada um, e eles todos deram boas gargalhadas com as piadas do Gordo.
Por baixo da mesa, Gil escorregou um pé na direção de Nadir. Ela retribuiu o toque. Contudo, naquela noite, não aconteceu mais nada além disso. As pombas tinham que manter uma capa de respeitabilidade.


- Estamos perdendo apoio da população, camaradas. Entretanto, a luta continua. As forças repressoras estão nos caçando como a animais, mas nós vamos resistir - dizia Pa¬raná, o Velho, ao seu grupo guerrilheiro reunido à sua volta, numa clareira da mata, na região dos Perdidos.
Ele falava com voz mansa e pausada. Devia ter uns cin¬quenta anos, mas era dotado de um invejável vigor físico. Bai¬xo, bastante calvo, com os cabelos das têmporas longos e grisalhos, usava óculos de aros redondos e tinha o cenho car-regado pelos muitos anos de lutas e de vida na clandestinidade.
O grupo era constituído por quatorze homens e quatro mulheres. Com exceção de Olga, que devia ter uns quarenta e cinco, e do próprio Paraná, os demais eram jovens da faixa de vinte e cinco a trinta e cinco anos. Havia também alguns nativos agregados, cerca de dez, ou pouco mais ou menos.
- Creio que uma boa tática será nos dividirmos em três grupos - continuou o Velho. - Seria muito perigoso nos des¬locarmos juntos, manobra que devemos adotar daqui por diante. Quero dizer, nos mantermos em constante movimento, mudando sempre de sítio para confundir os nossos perseguidores. Sugi¬ro, assim, que Demétrio e Lauro assumam, cada um, a chefia de um grupo de seis militantes mais três ou quatro nativos. O terceiro grupo ficará comigo e Olga. Há alguma outra sugestão?
O moral deles estava um pouco abatido. No dia anterior, eles haviam tomado conhecimento da queda de Osvaldão, na região do Saranzal.
- Acho que você está certo, Velho. Se permanecermos juntos, ficaremos mais vulneráveis a um ataque das tropas. Concordo plenamente com a sua sugestão - disse Augusto.
Os demais concordaram igualmente.
- O critério da divisão será o de que, em cada grupo, haja um número equilibrado de elementos que tenham conhe¬cimento da localização dos nossos diversos depósitos - fa¬lou Paraná.
Eles possuíam, em toda a região, um sistema de depósi¬tos de armas e munições, de material cirúrgico e medicamen¬tos, e de alimentos enlatados e desidratados. O conheci¬mento dos locais onde estavam tais depósitos, e seus respecti¬vos conteúdos, era, entretanto, compartimentado. Aquele que sabia a respeito de um determinado tipo desconhecia tudo so¬bre os demais. O sistema tinha dupla finalidade, ambas liga¬das à segurança. De um lado, se um deles caísse prisioneiro, só revelaria, sob tortura, a localização daquilo que sabia, pre¬servando as demais informações. Por outro lado, o sistema contribuía para a coesão entre eles próprios, já que o fato de um só conhecer parte do conjunto tornava-os todos depen¬dentes uns dos outros.
Dividiram-se, pois, em três subgrupos conforme haviam decidido e cada um tomou uma direção.
Perto dali, as patrulhas Capivara Um, Dois e Três, lan¬çadas respectivamente ao norte, ao centro e ao sul dos Perdi¬dos, progrediam em busca de rastros dos paulistas.



- Essa espera é enervante. Há três dias não acontece na¬da. No Saranzal, a Jabuti Um conseguiu retomar os rastros, mas a Dois e a Três estão sem pistas - esbravejava Gil. - Nos Perdidos, nada até agora. Parece que os subversivos eva-poraram no ar. Nos Caianos, só a Pato Bravo Dois descobriu rastros frescos e está nos calcanhares de um grupo que, se¬gundo o mateiro dela, deve ser de uns seis ou sete elementos. Tá foda, Tomé.
- Essa mata é um tabuleiro de xadrez, Gil. Temos que ter paciência. É um trabalho meticuloso, lento e, sobretudo, de persistência no objetivo - disse Tomé em tom encorajador ao chefe de operações.
- É, porra, mas depois da queda do Osvaldão há duas semanas, só conseguimos esfriar o Walter e o Ernani, no cha¬furdo da Pato Bravo Três, nos Caianos - falou Gil, olhando o quadro com a "ordem de batalha" dos guerrilheiros, onde os retratos de Osvaldo Oliveira Couto, do destacamento C, de Jaime de Souza Pequeno e de Arildo Viana, do destaca¬mento B, estavam marcados com um X em vermelho, indi¬cando as baixas dos paulistas. Não constavam, é claro, os nativos da região.
- Paciência. Temos que ter muita paciência. "Somente nas volteadas se apanha a gadaria xucra."
- Nessa toada, vamos levar muito tempo para eliminar todos eles...



- Capivara Três, Paquera. Câmbio - chamou Tiago. A bordo do avião de ligação e observação, Gil fazia um de seus primeiros voos como observador. Estava fascinado com o acompanhamento de suas patrulhas e com o panorama mag¬nífico da selva vista da altitude de seis mil pés. Um manto verde-escuro levemente ondulado. "Quem diria que, embai¬xo deste tapete exuberante de vegetação, homens estão à caça de outros homens?", devaneou ele, mas rapidamente afastou o pensamento piegas e incompatível com sua condição de sol¬dado. Assim ele cria.
- Paquera, aqui Capivara Três. Temos novidade, Pa¬quera. Repito. Temos novidade. Câmbio.
- Capivara Três, Paquera lhe ouvindo alto e claro. O chefe de operações está a bordo, na sua escuta. Prossiga. Câm¬bio - disse Tiago.
- Paquera, aqui Capivara Três. Ciente presença chefe de operações. Confirme, da Casa Azul ou de acampamento. Câmbio.
- Capivara Três, Paquera. Chefe de operações azul. Prossiga com a mensagem. Câmbio.
- Okei, chefe de operações Azul. Descobrimos rastros frescos hoje pela manhã. Estamos na caça deles. Câmbio.
- Ciente, Capivara Três - disse o próprio chefe de ope¬rações, fazendo uso de seu microfone na nacele traseira. - Especifique sua posição, Capivara Três. Adiante — comple¬tou Gil, com uma fraseologia mais apropriada a radioama¬dores do que à aviação.
- Paquera, Capivara Três. Estamos nas nascentes do iga¬rapé Pacajá, afluente do Água Fria. Segundo o guia, estamos a um dia de marcha da clareira da Mutuca, que é nosso local de resgate. Confirme entendido. Câmbio.
- Entendido, Capivara Três. Câmbio final.
"Até que enfim uma notícia promissora", pensou Gil. Desde o início da operação de combate, essa era a primeira pista do povo da mata, na região dos Perdidos, que eles ob¬tinham.
O voo prosseguiu sem mais novidades naquele dia. Não obstante, quando pousaram em Marabá, Gil estava mais cal¬mo e esperançoso.



O subgrupo chefiado por Lauro estava acampado provi¬soriamente num trecho pedregoso do igarapé Pitauá, próxi¬mo à confluência com o Água Forte. Há quase três semanas, eles vinham se deslocando todos os dias e, agora, ali estacio-nados, refaziam as energias para uma nova jornada. Estavam, contudo, cansados de tantas mudanças. Nenhum deles dizia, mas uma espécie de desânimo e desesperança ia tomando conta de cada um.
- Se colocarmos vigias avançados, em pontos certos, é possível permanecermos aqui por mais um ou dois dias, Lauro. O pessoal está esgotado de tantas caminhadas sem um des¬tino definido - disse Tadeu.
Lauro ponderou por algum tempo a sugestão do amigo. Ele também sentia a necessidade de uma parada maior. Era preciso não apenas descansar o corpo, mas repensar as ações futuras, encontrar solução para a situação em que se encon¬travam. "Não é possível, nem tampouco viável, continuarmos indefinidamente essa fuga louca. Se tivermos que cair, é me¬lhor que caiamos lutando", pensou ele.
- Como é, camarada? O que você decide? - pergun¬tou Hélcio, que ouvira a sugestão de Tadeu. - De minha parte, sou a favor.
- Chamem os outros. Vamos ver o que eles acham - falou o chefe.
Dos outros três, só Carlos se manteve relutante. Os qua¬tro nativos do grupo não foram consultados.
- Vamos adotar a posição da maioria. Permanecemos aqui hoje e amanhã. Durante o dia, vamos nos revezar na vi¬gilância. Dormir e acender fogo, só à noite - decidiu Lauro.
A noite era o período de maior tranquilidade. Ninguém se movimentava na escuridão da floresta. Nem eles, nem as tropas. Do pôr ao nascer do sol, no Araguaia, fazia-se uma trégua natural, aceita tacitamente por todos. Era uma impo¬sição, não-contestada, da própria hiléia.
- Neste caso, já que é uma decisão da maioria, sugiro que a gente caminhe sobre esta parte pedregosa e desça pelo leito do igarapé mais quinhentos ou mil metros - falou Car¬los. - Se houver alguém no nosso rastro, provavelmente per¬derá a pista aqui. Enquanto isso, podemos montar um posto de vigilância naquela curva do riacho e observar esta área. As¬sim, a possibilidade de sermos surpreendidos ficará bastante diminuída.
A sugestão de Carlos foi acatada, e eles assim procede¬ram. Um nativo e o próprio Carlos estabeleceram o posto de vigilância na curva do igarapé. Não tiveram que esperar mui¬to. Cerca de duas horas depois, viram a patrulha chegar ao local que antes ocupavam.
Lauro e os demais foram avisados. Sabiam no entanto que a tropa perderia algum tempo ali à procura de pistas, e haviam tomado providências para essa eventualidade. Imediata e silenciosamente, posicionaram-se conforme um plano con¬cebido antes.
"Esses pelegos da ditadura vão sentir na carne o valor e a determinação de um guerrilheiro!", dissera Augusto, cu¬jo ânimo era sempre uma fonte inspiradora de entusiasmo para os demais.
A um sinal de Lauro, eles descarregaram as armas, pe¬gando a tropa de surpresa. Atiraram como podiam com seu precário armamento e fugiram mata adentro, sem saber do resultado do ataque.


A refrega não poderia ter sido mais desastrosa para a Ca¬pivara Três. No tumulto que se seguiu à artilharia, os solda¬dos, pegos de surpresa, ficaram por um momento sem saber o que fazer. Uns correram para o igarapé, outros para o abri-go das árvores na floresta. Dois, porém, permaneceram onde estavam, no meio do pedregal.
Quando Tinoco conseguiu reagrupar a patrulha, consta¬tou que nada mais podia ser feito pelo chefe. Numa poça de sangue, Rogério, aliás Asdrubal Queirós, segundo-sargento de infantaria, exalava seu último suspiro.
A dois metros dele, jazia contorcido o corpo do mateiro António. Este recebera dois balaços no peito, enquanto o ou¬tro tinha vários ferimentos. O projetil fatal, porém, parecia ter sido na cabeça.
Tinoco, ou cabo Ítalo de Souza, assumiu o comando da patrulha. Era uma hora da tarde. Eles haviam feito contato com o Paquera às nove da manhã, quando Rogério informa¬ra que estavam seguindo rastros frescos.
- Não adianta tentar fazer nada. Vamos aguardar aqui. Entre duas e três horas o Paquera deve nos chamar. Aí, os homens é que vão decidir, se a gente enterra eles aqui, ou se o Sapão vem buscar - disse Tinoco aos companheiros.


- Puta que pariu, porra... Não é possível! Isso não po¬dia ter acontecido... - lamentava-se Gil na sala de reuniões da Casa Azul.
- Calma, companheiro. Não podia ter acontecido, mas aconteceu - disse Oran. - Isso é uma guerra, Gil. As baixas ocorrem dos dois lados. Agora, o que eu quero saber é como aconteceu. Faça um contato com a agropecuária em Xambioá e diga pró Elesbão pra submeter o cabo a um minucioso in¬terrogatório. Precisamos saber dos detalhes para verificar onde houve falha nossa e corrigir para que não aconteça novamente.
Oran, como sempre, não se alterava. Mantinha o racio¬cínio claro, organizado e calculista. Gil, ao contrário, num mo¬mento de revés, perdia a calma e se desesperava. Apesar de, ou até por isso, as duas personalidades tão opostas eram ami¬gas e trabalhavam em harmonia.
- Tá certo, chefe. Aliás, penso que seria melhor eu dar um pulo até lá e participar diretamente do interrogatório do Tinoco. O que o senhor acha?
- Autorizado. Fale diretamente com o Jorge, em meu nome. Ainda são quatro da tarde. A operação de resgate dos corpos e da patrulha está em andamento. Se você decolar da¬qui até às cinco, ainda chegará lá em tempo de recebê-los. O mateiro vai ser sepultado em São Geraldo. Amanhã, um Bú¬falo vai trasladar o corpo do sargento Queirós para Manaus. Você pernoita em Xambioá e, à noite interroga, o Tinoco e os outros soldados da patrulha.
- Certo, chefe. Amanhã estarei de volta aqui, com os elementos para o relatório - falou Gil.
O interrogatório da Capivara Três demonstrou que, no momento em que eles perderam o rastro, a patrulha se descu¬rou da segurança, no afã de encontrar as pistas novamente.
- Um rastro, quando some de repente, deve ser consi¬derado um alerta de que algo pode estar sendo armado do la¬do do inimigo - instruía Elesbão, e seus auxiliares, a partir de então, aos comandantes de patrulha. — Assim, este é um momento crítico, em que vocês devem recomendar aos mem¬bros da equipe para ficarem atentos, dispondo os homens nu¬ma formação que proporcione o máximo de cobertura contra tocaias e emboscadas.
Enfrentando pela primeira vez esse tipo de conflito as Forças Armadas Brasileiras ainda teriam muito a aprender. As dezenas de livros que fossem lidos a respeito das "guerras de insurgência" não seriam capazes de lhes dar o conhecimento que a experiência prática proporcionava. Não obstante os "se¬nhores da guerra", os generais do poder, pouco inteligente¬mente, recomendavam que não se fizessem registros dos acon¬tecimentos do Araguaia. De certo, temiam a condenação da historia, como se pudessem esconder dela aqueles fatos.

Capítulo X

Não muito longe da Vila Remédios, na região dos Caianos, próximo ao igarapé da Bicuda, a patrulha Pato Bravo Um descobriu rastros.
- Pelos meus cárculo, ês pássaro aqui hoje de manhã¬zinha, mais é duas turma. Teve uns que pássaro premero. Só dispois é que pássaro os outro - disse o mateiro João Tatu.
Eram três horas da tarde. Os homens estavam bem-dispostos e, agora, tinham ficado mais animados ainda pela descoberta do rastro.
- Quanto tempo, depois de uma turma ter passado, pas¬sou a outra? - perguntou Adilson, o chefe da Pato Bravo Um.
- É difícil dizê, dotô. A turma mais pequena, uns treis, passô u'as quatro hora dispois da outra mais maior, mai eu num tenho, assim, quer dizê... é certeza não.
- Vamos seguir em frente. Ainda há bastante tempo, antes de escurecer - disse Adilson.
Avançaram mais uns quarenta minutos, quando o matei¬ro fez sinal de parada e acenou para que o chefe se aproximasse.
- Ês deve de tá aqui pertinho - falou Tatu em voz bai¬xa, e apontou para uma pegada nítida no barro úmido da tri¬lha. Há muito Adilson desistira de perguntar os porquês ao mateiro. Ele sempre dava explicações que pareciam inverossímeis, mas que depois se mostravam corretas.
Adilson fez sinal para que dois soldados abrissem pa¬ra o flanco direito e outros dois para o esquerdo. Ele pró¬prio e o mateiro seguiriam pelo centro. O guia ficaria na reta¬guarda.
Nesta formação, caminharam mais uns dez minutos, devagar e sem ruídos. Numa curva do igarapé, escutaram vozes. O terreno onde estavam era um pouco mais elevado. Adilson fez sinal para que os outros parassem e mantivessem a posição.
Rastejando lentamente, ele foi se aproximando de um local de onde pudesse observar sem ser visto. E lá estavam eles. Dois homens e uma mulher. Um dos homens enfaixava o pé direi¬to da moça com uma atadura que parecia de crepom. O outro observava.
Adilson levantou-se de um salto e gritou:
- Parados!
O que estava observando correu em busca de abrigo. Adil¬son atirou. Um único tiro. O guerrilheiro como que subiu no ar e despencou no chão já sem vida. Os outros dois ficaram estáticos, completamente sem ação.
- Quem se mexer morre! - disse o chefe da Pato Bra¬vo Um, apontando o fuzil na direção dos prisioneiros. - Avan¬çar! - gritou, a seguir, para a retaguarda.
O restante da patrulha se aproximou com as armas em riste.
- Calma, rapazes, não è preciso atirar - falou ele, acres¬centando: - Recolham as armas deles e os amarrem.
Os soldados procederam como determinado. A guerrilhei¬ra estava com o tornozelo luxado. Eles a amarraram na posi¬ção sentada, com os braços para trás. O rapaz foi colocado abraçado a uma árvore, com os braços e as pernas em volta do tronco, fortemente atados com cordéis de náilon do tipo usado em pára-quedas.
Eram quase cinco horas da tarde. A floresta já estava bas¬tante escura.
- Vamos passar a noite aqui - disse Adilson. - Pre¬parar acampamento. -E, para os prisioneiros: - Não que¬ro saber de porra nenhuma a respeito de vocês. Amanhã, os dois serão entregues às autoridades. Elas é que vão decidir a sorte de cada um.
- Vai pra puta que o pariu, seu milico de merda - dis¬se a moça.
- Deixa eu dar um trato nessa zinha, chefe? - falou Dirceu Pé de Burro, um soldado enorme que calçava qua¬renta e quatro, origem do apelido que lhe seguia o nome frio.
- Negativo, Pé de Burro. Fique quieto no seu canto e não se meta com ela. Não quero saber de violência com os prisioneiros e não admito que nenhum de vocês se meta a en¬graçadinho com eles. Entendido?
Os soldados sabiam que as ordens de Adilson não admi¬tiam contestação. Prepararam o local para o pernoite. O morto jazia no mesmo lugar onde caíra, trespassado pelo tiro certei¬ro do chefe da Pato Bravo Um.


- Olá, Valquíria, tudo bem? Boa noite pra todos - disse Silvério, que chegava à calçada da Baleia, vindo da mineradora. Ele, agora, estava mais à vontade, quase íntimo. De¬pois de duas semanas de namoro e bolinagem com Doralice, um copinho de refresco ali, outro acolá, como não ia ganhar intimidade? Além disso, a própria Val fazia gosto no relacio¬namento dos dois pombinhos, embora provocasse comentá¬rios de desaprovação de alguns e, principalmente, de Maria Preta.
- Tudo bem, Silvério. O que foi que houve na agropecuária? Ficamos sabendo que o António Mão de Vaca, lá de São Geraldo, morreu, trabalhando pra vocês. Como foi isso? - perguntou Valquíria, provocativa. A notícia já se espalhara, pois São Geraldo ficava do outro lado do rio, e o trânsito de pessoas de uma localidade para a outra era grande.
- Foi só um acidente, coisa que acontece - respondeu Silvério.
- Mas diz que morreu um outro também, um tal de Ro¬gério, funcionário mais graduado. É verdade? - insistiu Val.
Silvério sabia que não adiantava ficar escondendo os acon¬tecimentos da Baleia. Ela ia perguntar, perguntar e pergun¬tar. Se ela não tomasse conhecimento por ele, descobriria de alguma outra forma. Por isso, deu de ombros e respondeu. Afinal, que mal havia? Todos sabiam da missão deles ali. Es¬conder pra quê?
- É, é verdade. Eles foram tocaiados pelo povo da ma¬ta. Mas vamos mudar de assunto. Quede a Dora?
- Tá lá dentro se aprontando. Pode entrar. Vá procurá-la. Fique à vontade - disse Valquíria, feliz.
Silvério foi entrando, sem se fazer de rogado. Conhe¬cia bem a casa. Um corredor comprido com três dormitó¬rios do lado esquerdo. Nos fundos, uma sala de refeições com uma cozinha ampla e mais outro quarto, onde ele dor¬mira uma noite em que uma chuva forte o impedira de voltar ao acampamento.
- Ocê tá dando muita asa pra esse homem, Val. Ga¬ranto que ele tá tirando um bom sarro na Dora, lá dentro. Depois eles vão embora, e acaba a menina embuchada e vo¬cê com neto - falou Maria Preta, sem conseguir esconder o ciúme.
- Deixe isso comigo, Maria. Sei o que estou fazendo - disse Valquíria, dando uma de suas conhecidas garga¬lhadas. - Eles têm que se divertir um pouco. - E, em voz baixa, falou para a outra: - Seu caso a gente resolve de¬pois.
- Boa noite - cumprimentou Zé Geraldo, que ia che¬gando.
- Ah, meu nego, que bom que você chegou. Tava pre¬cisando de você, Zé Geraldo. Vamo lá dentro. A pia da mi¬nha cozinha está com um vazamento, quem sabe você conserta - disse Val, levantando o enorme corpanzil e arrastando o mecânico para dentro da casa.
No meio do corredor, ela gritou:
- Tou entrando, Dooorá. - Ouviu-se um burburinho vindo dos fundos, mas, quando eles chegaram à cozinha, Do¬ra e Silvério estavam sentados calmamente num pequeno so¬la, de mãos dadas, conversando. Com exceção de uma edição velha da revista Manchete que o rapaz tinha sobre o colo, tu¬do o mais estava normal.
- Como é, vocês não vão ao Quentão hoje? - pergun¬tou Val.
- Já estávamos de saída, Val. O Silvério estava só me contando um caso lá de Minas. Estamos indo. Até mais tar¬de, Zé Geraldo. Tchau, tchau - falou Dora, e os dois saí¬ram.
Naquela madrugada, Zé Geraldo sairia, também, para pescar.


Fazia uma manhã ensolarada, naquele dia de meados de novembro. Seriam nove e trinta, se tanto, quando o ope¬rador de rádio entrou esbaforido na sala de reuniões da Ca¬sa Azul.
- Doutor, boas notícias! O Paquera acaba de informar que a Pato Bravo Um chafurdou. Esfriaram um e fizeram dois prisioneiros. O piloto quer um contato direto com o senhor. Está aguardando na frequência - falou Zé Fuinha.
Gil levantou-se de um salto.
- Grande notícia, garoto. Vamos lá falar com o Paquera. Tomé, avise ao chefe. Estou indo para a estação de rádio. - E saiu apressado.
- Paquera, Azul voltando. Chefe de operações presen¬te. Câmbio.
- Paquera para Azul. Ciente presença chefe de opera¬ções. O chafurdo da Pato Bravo Um aconteceu ontem, no cair da tarde. A patrulha tem condições de se deslocar para uma clareira que fica a umas três horas de marcha do local do cha-furdo, conduzindo os dois prisioneiros - informou o piloto do Paquera. - Acontece, porém, que eles não sabem o que fazer com o presunto. Não há condição para o transporte do falecido. O corpo está se deteriorando rapidamente. A Pato Bravo Um solicita instruções. Câmbio.
O calor e a umidade, em alto grau na floresta, provoca¬vam a decomposição acelerada de qualquer organismo mor¬to. Ao amanhecer, o cheiro de carniça era insuportável no lugar onde ocorrera o chafurdo. Os soldados tampavam as na-rinas com lenços. O fedor, entretanto, tudo penetrava, e o am¬biente estava irrespirável. Além disso, o ruído de animais rondava as cercanias. Nos galhos mais altos das árvores, um bando de urubutingas crocitava, aguardando uma oportuni¬dade para descer sobre o banquete macabro.
Gil, em conferência com Oran e os demais membros da Casa Azul, admitiu finalmente que a melhor solução seria en¬viar pelo Sapão um agente familiarizado com a "ordem de batalha" do inimigo para fazer a identificação do cadáver. Zeca recebeu, pois, a incumbência da missão.
Numa manobra à qual se dá o nome de "rapel", o Sa¬pão pairou sobre a copa do arvoredo, a mais ou menos ses¬senta pés do solo. Uma corda especial, do tipo usado pelos alpinistas, foi lançada da aeronave. Enganchado a ela, atra¬vés de um equipamento em forma de um oito de aço preso a uma cinta também especial, o agente escorregou suavemen¬te até o chão.
A corda foi recolhida, e o Sapão, cinco minutos depois, pousava na clareira onde aguardaria a chegada da patrulha, de Zeca e dos prisioneiros, três horas mais tarde.


Tão logo o helicóptero encostou os esquis no pátio da Casa Azul, os dois prisioneiros foram conduzidos para o galpão onde ficavam as celas.
A moça era a guerrilheira Áurea, ou Maria Lúcia da Sil¬va, e o rapaz tinha o codinome de Victor, tendo sido identifi¬cado como José Lírio Prata.
- E aí, Zeca, como foi a missão? - perguntou Gil, an¬sioso para saber onde colocaria mais um X vermelho no qua¬dro de "ordem de batalha" do inimigo.
- Companheiro, não foi fácil. Puta que pariu!... O pre¬sunto fedia... porra, mas fedia que não dava pra aguentar! Cacetada! Que missão!
- Porra, Zeca, fala logo quem era o presunto - disse Gil, impacientando-se com Zé Lucas.
- Calma, cara, não precisa ficar nervoso. Digo já - sorriu o agente. - Era o Paulo Rocha Martins, nome frio Fábio.
- Grande! - falou o chefe de operações, pegando um pincel atómico vermelho e fazendo um X na fotografia do res¬pectivo integrante do grupamento B dos guerrilheiros.
- Agora, eu e meu pessoal da segunda seção vamos tra¬balhar os dois presos. Eles vão vomitar tudo o que sabem. Ah! Se vão! - disse Zeca, com uma expressão no rosto que deno¬tava a antecipação de um prazer inconfessável.
Quatro agentes da "comunidade" já haviam iniciado as sessões de tortura física e psicológica dos prisioneiros para lhes minar a vontade e obrigá-los a contar tudo que soubessem.
Em cubículos hermeticamente fechados, Victor e Áu¬rea foram encerrados separados. Por horas, ou dias, era im¬possível dizer, ruídos ensurdecedores alternavam-se com pe¬ríodos de absoluto silêncio. Às vezes, a temperatura era de mais de quarenta graus, noutras, caía para oito graus, quan¬do potentes aparelhos de refrigeração canalizavam ar ge¬lado para os cubículos, através de dutos especialmente insta¬lados.
De tempos em tempos, um de cada vez era retirado para interrogatório. Áurea resistiu por mais tempo. Victor cedeu logo.
- Como é, boneca, vai falar, ou nós vamos ter que lhe dar um tratamento melhor? - disse o Dr. Tarquínio.
- Vá pra puta que o pariu, seu capacho da ditadura - respondeu ela.
- O que adianta esse seu mau humor? - falou o interrogador com um sorriso sarcástico. - Seu amiguinho já está abrindo o bico. Contou sobre as táticas de deslocamento que Zenóbio, o chefe do seu grupo, está adotando. Vamos lá, se¬ja boazinha.
Ela ainda encontrava forças para resistir, mas sabia que não seria por muito tempo. "Este agora, pelo menos, não es¬tá me dando porrada", pensou ela. "É um filho da puta do mesmo jeito, mas é um filho da puta delicado. Vai ver é vea¬do, o desgraçado."
Eles estavam adotando a técnica de alternar um interrogador que usava de meios violentos com outro que fazia o pa¬pel de bonzinho.
- Se você não contar pra mim, querida, vou ter que en¬tregar você prô outro, o Mustafá. O que você acha de ser in¬terrogada por ele, hein?
Mustafá era um animal. Áurea tremeu ao pensar no ou¬tro. Preferia morrer a ter que enfrentar aquele indivíduo re¬pugnante e impiedoso. "Aquele sujeito não é humano. Não! Não, não quero ver aquela besta nunca mais..." Seus pensa-mentos entraram num torvelinho de dúvidas e incertezas. A técnica começava a fazer efeito.
- Que tal um cigarro, e a gente depois conversa como pessoas civilizadas? - Ele ofereceu-lhe o maço, e ela aceitou com a mão trémula.
"Meu Deus, há quanto tempo não sei o que é um cigar¬ro?", pensou Áurea, enchendo os pulmões com a fumaça e obtendo uma sensação de enorme bem-estar. "Afinal, este cara não é tão ruim assim."
- E agora, está se sentindo melhor? Podemos conver¬sar? - disse Tarquínio.
- E depois, se eu contar o que sei, o que vai ser de mim? - falou ela.
A barreira estava quebrada. Tarquínio sabia disso.
- Depois que você me falar tudo, vou mandar lhe dar roupas limpas, você tomará um bom banho, num banheiro só para você, vai se alimentar com uma boa refeição e terá uma cama para dormir à vontade.
A oferta era tentadora. "Banho, roupas limpas, comi¬da, dormir. Isso é um sonho! Não mais o inferno daquele cu¬bículo." Seu pensamento flutuou por alguns segundos. Os olhos parados, fixos no homem à sua frente.
- Podemos começar? - perguntou ele.
- Vocês me soltarão depois? - quis saber ela, sem ofe¬recer mais qualquer resistência.
- Não, Áurea. Isso não posso lhe prometer. Mas você não será mais maltratada.
"Ele também está sendo honesto. Poderia dizer que me soltaria depois, mas está sendo sincero ao falar que não pode prometer isso", pensou ela.
Ele observava as reações dela. "Se eu dissesse que a libertaria, logo ela ia desconfiar de que isso é mentira", racio¬cinava ele. Aquilo era um jogo de técnica e de inteligência que seria vencido por quem detinha os cordéis manipuladores da volição.
- Está bem, eu conto o que você deseja saber - disse ela finalmente. E foi falando, falando e falando. Aqui e ali ele a interrompia com palavras de aprovação e de incentivo. Um gravador fora acionado sem que ela percebesse.
- Sem apoio da população, como vocês estão resolven¬do o problema de alimentos? - perguntou Tarquínio a certa altura.
- Temos comida suficiente nos depósitos - falou ela. Era a primeira vez que as forças do governo ouviam falar de depósitos dos guerrilheiros. Ele insistiu no assun¬to.
- Como são esses depósitos?
- São recipientes de metal, ou de plástico, enterrados na mata.
- Em que lugar da mata?
- Em diversos lugares.
- Você me mostraria esses lugares?
- Não conheço todos, só alguns. Os de alimentos.
- Existem outros?
- Sim. - As respostas estavam ficando lacónicas. Ela estava cansada. Muito cansada. Mas ele precisava insistir mais naquele ponto.
- Os outros, como são os outros?
- São iguais, apenas contêm outras coisas.
- Que tipo de coisas?
- Remédios... armas...
- Está bem, vou providenciar para que você receba o que lhe foi prometido. Amanhã, conversaremos mais - disse Tarquínio.


Eram quase cinco horas da tarde. A floresta estava ficando muito escura. Os homens estavam muito cansados. Há vários dias a Pato Bravo Dois vinha perseguindo um rastro sem re¬sultados.
— Acho melhor pararmos aqui e armar acampamento — disse o chefe de patrulha Adelino.
— Se o sinhô qué um parpite, nóis devia de seguir mais pra frente — falou Zé Tico, o guia. — Mais uma hora de ca¬minhada, tem um lugar mais mior pra nóis drumi.
— Que lugar é esse de que você está falando? — pergun¬tou Adelino.
— É um dismate na berada dum igarapé qui tem um po¬ço bão de nóis toma um banho, fazê um fogo e dispois drumi.
— E quem é que vai tomar banho de igarapé de noite, Zé Tico? — falou o chefe da Pato Bravo Dois.
— Lá num tem pirigo não, seu Delino. Conheço lá. Já me banhei naquele poço umas pouca de vêis.
— O que vocês acham? — perguntou Adelino para os outros membros da patrulha.
— Acho uma boa ideia — disse um, e os demais con¬cordaram.
— Vamos lá, então. — E puseram-se a caminho. Apesar da pouca claridade, eles caminharam rápido. Ao aproximarem-se do lugar indicado por Zé Tico, entretanto, diminuíram o ritmo. Havia outras pessoas no local.
— Tem subversivo aí — cochichou Adelino. — Vamos abrir em leque e pegá-los de surpresa.
Foram chegando de mansinho e posicionaram-se na bor¬da da clareira, protegidos por um tronco caído. Um manto de escuridão os protegia igualmente, mas o mesmo acontecia do outro lado. Os guerrilheiros haviam feito silêncio também. Uma sombra caminhou com o corpo abaixado, procurando se esconder.
Adelino pressionou o gatilho de seu fuzil-metralhadora, disparando uma rajada longa no sentido horizontal. Ra, tá tá tá tá...
Ouviu-se um grito de dor no outro flanco e várias raja¬das de metralha em resposta ao ataque da Pato Bravo Dois. "O inimigo vai querer opôr resistência", raciocinou Adelino. No entanto, logo a seguir, um outro pensamento o assaltou de súbito: "Mas eles não têm armamento automático!"
Alguém do lado de lá pensou, ao mesmo tempo, a mes¬ma coisa e gritou:
— Filho da puuutaa, aqui é a Pato Bravo Treiis, seu veado!
Seguiu-se um momento de silêncio. Adelino ficou por al¬guns segundos sem ação. Ainda sob a proteção do tronco caí¬do, ele gritou para os outros companheiros:
— Cessaaar fogo!
O estrago, no entanto, já estava feito. Ainda bem que não havia mortos. Não obstante, um soldado da Pato Bravo Três fora atingido por uma bala na panturrilha da perna esquer¬da. O ferimento, embora não fosse fatal, iria imobilizá-lo por algum tempo no hospital.
Mais ensinamentos. Ninguém pensara antes numa possi¬bilidade dessas. O encontro de duas patrulhas na selva. No caso de dúvida, ou dificuldade de identificação, era preciso haver um meio de impedir que amigos atirassem em amigos. Foram então criadas as senhas e as contra-senhas para as pa¬trulhas. Uma medida simples e eficiente que a experiência prá¬tica, mais uma vez, ensinava. Um sinal convencionado que não serve unicamente para os que se aproximam de um posto de sentinela nas prontidões dos quartéis.


— Porra, porra, negão, já estou há mais de quarenta dias na área. Tá na hora de dar um pulo em casa, né, porra? Fazer a barba, né? — dizia Jorjão no salão de passageiros do aero¬porto de Marabá ao recém-chegado João Pedro, que iria substituí-lo.
Tempos atrás, um piloto casado há poucas semanas fora incumbido de levar uma aeronave a Belém para revisão. No pátio do esquadrão, outro Sapão estava pronto para fazer a troca. Era descer de um, entrar no outro e decolar de volta para Xambioá.
— Porra, mas não posso nem dar uma chegada em casa pra "fazer a barba"!! — dissera o saudoso Zelazowiski, lamentando-se. A expressão difundiu-se logo entre os avia¬dores.
— Estou aqui, pronto para recerjer o serviço, Sariema — falou João Pedro que estava iniciando sua primeira esta¬da na região.
— Porra, negão, porra, não me chama pelo nome não, porra. Aqui eu sou Jorge, porra.
— Desculpa, Sá... isto é, Jorjão. Ainda vou levar um tem¬po para me acostumar até com o meu próprio nome frio, quan¬to mais com os dos demais.
— Mas é bom se acostumar logo, porra. O pessoal da Casa Azul não admite isso de jeito nenhum. Tá legal? — dis¬se Jorjão, colocando o braço no ombro de João Pedro ami¬gavelmente. — Meu avião está quase saindo. Não vou ter tempo para lhe explicar como as coisas funcionam aqui. O Tenório sabe tudo da área. Já falei pra ele lhe dar um briefing completo. Não é nenhum mistério, porra. É só questão de adaptação — completou ele, despedindo-se.
E assim, depois de se alojar na casa do Incra, chamada de "o ninho", numa alusão à expressão "ninho das águias" usada pelos aviadores para designar seus locais de pernoite, João Pedro começou a se familiarizar com a missão. Tenório ia explicando tudo pacientemente.
— Hoje mesmo, vamos à noite à reunião do pôr-do-sol na Casa Azul. Fique tranquilo que rapidamente você vai ficar por dentro de tudo.
João Pedro era capitão-aviador. Moreno, estatura me¬diana, magro e de olhar penetrante, ele tudo observava, pro¬curando assimilar o que o outro ia dizendo. Tinha, porém, opiniões próprias sobre aquela missão, e o que ele queria mes¬mo era voar. Voar muito, pelo prazer intrínseco do voo.
Dias depois, ele estava perfeitamente senhor da situação, ou, pelo menos, assim pensava. Na Casa Azul, conheceu os companheiros da Força Terrestre e, até, verificou que alguns da Força Aérea que trabalhavam na área de inteligência, ou se¬gunda seção, eram antigos contemporâneos da época de es¬cola militar.
Um deles lhe mostrou as dependências da tão misteriosa construção.
— Aqui fica o galpão com alguns alojamentos, as celas e sala de interrogatório — disse-lhe Tarquínio, acrescentando a meia-voz: — Não é preciso que eu lhe diga que o que vou mostrar lá dentro é estritamente confidencial. É coisa que não convém ser comentada, nem com os demais pilotos.
— Certo, Tarquínio. Não se preocupe. De mim eles não saberão nada — falou João Pedro, adentrando o famigerado domínio da "comunidade".
— Aqui são as celas — mostrou o agente. — Uma mas¬culina e outra feminina.
— E quem são os dois presos? — perguntou o aviador.
— São dois guerrilheiros que caíram prisioneiros há al¬guns dias. Este é o Victor, do destacamento B. A moça é Áu¬rea, também do B — explicou Tarquínio, aproximando-se da porta gradeada da cela onde uma mulher franzina, cabelos es¬corridos e muito pálida observava. — Como vai, minha que¬rida? Está boazinha hoje?
— Vou bem — respondeu ela numa voz fraca, os olhos compridos e tristes. — Você disse que nós íamos viajar. Quan¬do será isso?
— Breve, querida. Muito breve. Este aqui é o Dr. João Pedro, piloto do Sapão. Ele veio visitá-la.
— Como vai, João Pedro? É você que vai nos levar pa¬ra viajar? — a moça tocou novamente no assunto da viagem.
João Pedro não sabia o que dizer. Ela falava com uma voz meiga e delicada. Sorriu para ele, um sorriso tímido, re¬catado, os olhos marejados de lágrimas.
— Vou bem, Áurea. Ainda não sei nada sobre a sua viagem. Creio que não vai demorar — respondeu o pilo¬to, no mesmo tom que observara Tarquínio usar para com ela.
Os dois se afastaram em direção ao pátio da Casa Azul, e João Pedro, lá fora, perguntou:
— Eles vão viajar para onde?
— Eles vão dar um passeio aí pela mata, para nos mos¬trar onde ficam uns depósitos. A história da viagem é uma invenção — respondeu Tarquínio secamente.
— Áurea é delicada e meiga. Esta foi a minha impressão.
— Aquilo é uma jararaca. Subversiva filha da puta, não vale o que o gato enterra, João Pedro. Você não conhece isso como eu conheço. Deixe de sentimentalismo, companheiro. Se qualquer um dos dois que você viu ali dentro tiver oportu¬nidade, lhe mata com o mesmo sorriso que você chama de meigo.
João Pedro despediu-se do colega e voltou para o ni¬nho, pensando nos infelizes que estavam naquelas celas da Casa Azul.


Capítulo XI

— Por que não? Acho que você teve uma ótima idéia. Pois, se nós estamos aqui no meio do mato, nos fodendo de verde e amarelo, porra, nada mais justo que a gente procure melhorar o conforto do acampamento — disse Silvério em res¬posta à sugestão de Tiago de que eles se cotizassem para ad¬quirir alguns equipamentos que iriam tornar mais fácil a estada de cada um em Xambioá.
Entretanto, outros, mais mãos-fechadas, estavam opinan¬do contra.
— Ninguém vai garfar minhas diárias assim sem mais nem menos, não, negão! — falou Banto, obtendo apoio de Vitrôn¬cio e de Zé Traíra.
— Porra, negão, você vem pra cá, come, bebe e dorme de graça e, ainda por cima, recebe uma diária de alimentação e outra de pousada, e não quer pagar nada, nadica de nada?! Pra melhorar o seu próprio conforto e bem-estar? Puta que pariu, vai ser munheca lá na casa do "carvalho!" — esbrave¬jou Tiago.
— Não é questão de ser ou não ser munheca, japonês. Acontece que não fui eu quem inventou essa porra de guerra, meu nego. Se a nação me quer aqui pra combater subversivo, tem mais é que me pagar e me proporcionar as condições pra isso. A questão é de princípios — rebateu Banto.
— Minha gente, vamos ser razoáveis. Será apenas uma pequena contribuição, o correspondente a um quarto da diá¬ria por cada dois dias que o sujeito ficar aqui — ponderou Silvério.
— Da minha parte, sou contra, viu, viu. Mas o que vo¬cês decidirem, pra mim tá tudo bem, viu — opinou Zé Traí¬ra, que detestava se comprometer.
— Pessoal, com esse dinheiro nós vamos ter condição de melhorar o rancho, vamos adquirir uma caixa-d'água, insta¬lar uma bomba pra puxar água do poço, colocar chuveiros decentes e fazer um monte de outras coisas que vão tornar a nossa estada aqui mais agradável — disse Tiago. A reunião do pôr-do-sol no acampamento da mineradora estava quase virando comício político.
— Pra acabar com a discussão, sugiro que cada um dê o seu voto, contra ou a favor. O lado que perder perdeu, pron¬to, tá acabado! — falou Vitrôncio, que era contra e achava que a maioria também seria.
— Certo. Vamos então botar em votação. Quem for con¬tra levante o braço — conclamou Silvério.
Uns poucos levantaram o braço. A proposta fora aceita por larga margem, uma vez que eles desejavam, de fato, me¬lhorar as condições do acampamento. A missão, pelo visto, ainda ia durar vários meses, e todos tinham consciência disso.
No dia seguinte, o próprio Silvério, num intervalo das ope¬rações, decolou num Paquera para Imperatriz, comprou uma parafernália de materiais e utensílios, regressou ao cair da tarde e deu início aos melhoramentos pretendidos.
Em meados de dezembro, o acampamento da minerado¬ra começava a chamar a atenção dos membros da agropecuária. Os rapazes da Força Aérea eram empreendedores e estavam tomando gosto por aquele espaço de terreno que iria ser suas próprias casas por um longo período de tempo. No entanto, a inciativa deles geraria também alguns problemas.


— ...então, é só observar o quadro de ordem de batalha do inimigo para se ter uma estimativa. Estamos completando dois meses de operação de combate, nos quais conseguimos esfriar oito subversivos, sem contar os naturais da região, e fizemos dois prisioneiros. Não adianta, meu general, querer acelerar as ações. O processo é, naturalmente, lento — dizia Oran ao chefe do Estado-Maior do CMA, que, junto com uma comitiva de oficiais superiores, fazia uma visita de inspeção à Casa Azul.
— Diante do que você está me dizendo, parece-me que o CMA terá que arcar com este sacrifício de fornecimento de tropa por mais uns dez meses, pelo menos. Não há, portanto, alternativa? — questionou o general.
— Não, excelência. No meu entendimento, não há alter¬nativa, a não ser que as ordens de Brasília sofram uma pro¬funda modificação, o que pessoalmente não acredito — disse Oran.
O general olhou mais uma vez o quadro onde, recente¬mente, quatro X em vermelho haviam sido grafados sobre as fotografias de Alfredo Campista, o Vander, e Maurício Guerra, o Mauro, ambos do grupamento A, bem como de Gilberto Oliveira Malta, o Vanderlei, e Vandique Palmeira, o Delmo, do grupamento C.
— É, você tem razão. As autoridades em Brasília devem saber o que estão fazendo, e nós, como bons militares que so¬mos, temos que cumprir as ordens. Os princípios da hierar¬quia, da disciplina e da ordem são os pilares da nossa insti-tuição. O trabalho que vocês estão desenvolvendo aqui deve estar sempre centrado nestes princípios, como de resto estão sendo todas as demais ações do governo da revolução de 31 de março. Parabéns, companheiro, a você e à sua equipe, pe¬lo alto espírito de patriotismo com que vocês estão procuran¬do livrar o Brasil dessa mancha subversiva — falou o velho general em tom solene.
A comitiva despediu-se logo depois, pois um avião da FAB aguardava no aeroporto para conduzi-la de volta a Manaus. O ano estava chegando ao fim e, com aquele vôo, os oficiais mais antigos do CMA completariam as vinte horas regulamen¬tares de "atividade" aérea, como passageiros, o que lhes ga¬rantia o recebimento de cinquenta por cento da gratificação normal devida àqueles que, de fato, tinham função a bordo e voavam mais de cem horas anuais. "Quanto patriotismo!", pensou João Pedro.
— Gil, amanhã, como lhe expliquei, preciso de um Sa¬pão para lançar uma patrulha especial — disse Zeca, já de volta à sala de operações da Casa Azul. — Eu e mais três agentes vamos dar um passeio com a Áurea e o Victor para estourar os tais depósitos.
— Tudo certo, Zeca. A missão está na programação aé¬rea de amanhã, com decolagem prevista para as sete horas, saindo daqui do pátio da Casa Azul.
— Outra coisa, é bom ficar de olho nesse tal João Pe¬dro. O cara é muito perguntador, e o Tarquínio caiu na bes¬teira de mostrar para ele as dependências do galpão — falou Zeca.
— Que é isso, Lucas?! O Joãozinho é boa gente. Está apenas se familiarizando com a missão. Além disso, já virou "peixe" do chefe. Os dois conversam muito e ele só chama o Oran de "tio Oran". Fique tranquilo.
— Bem, você é quem sabe. Não vou muito com a cara daquele sujeito, mas se ele é peixe do chefe, paciência. Peixe é peixe, já não está aqui quem falou.


— E aí, Silvério?! Quede o japonês, home de Deus? O danado tomou chá de sumiço e deixou a pobrezinha da Dagmar desesperada. Isso é lá coisa que se faça com a moça? — perguntou Valquíria, sem perder o ar alegre e soltando uma de suas conhecidas gargalhadas.
— Ah, o Tiago é assim mesmo. Não gosta de se amarrar a uma só. Parece que ele agora está namorando uma tal de Dulcilene — respondeu Silvério.
— A Dulcilene, filha do Jerônimo Pereira?
— Sei lá de quem ela é filha, Val. Sei que é amiga da Joa¬ninha. As duas só andam juntas — falou Silvério. Ele e Val¬quíria estavam conversando na sala de almoço, nos fundos da casa da Baleia, enquanto Dora se aprontava no quarto. A noite estava chuvosa, não havia como colocar as cadeiras na calça¬da. Eles estavam a sós.
— É essa mesma. Pois então você não conhece o Jerônimo, pai dela?! Ele trabalha lá na agropecuária, fazendo ser¬viço de mateiro. A mãe é a Mundinha, uma branca da bunda grande, boa gente — disse Val, que sabia de tudo. — O japo¬nês tá arrumado. Se não comer a filha, na certa vai passar a mãe nas armas — gargalhou ela, ferinamente.
— Eu não conheço esse tal de Jerônimo. Também, tem tanta gente trabalhando na agropecuária que fica difícil co¬nhecer todos.
— Agora, por falar em bunda grande — disse Val em voz baixa — quem tá doidinha pra ir pra cama com você é a Maria Preta. Menino, ela não fala noutra coisa. Eu, por mim, não me importo. É até melhor do que você acabar embuchando a minha Dora...
— O que é que vocês estão cochichando aí? Posso sa¬ber? — perguntou Doralice, entrando na sala. Silvério ficou desconcertado.
— Que cochichando nada, menina — falou Val sem per¬der a bonomia. — Tava só comentando sobre a Mundinha, mãe da Dulcilene. Cê sabia que o Tiago tá de caso com ela?
— Com a filha, tou sabendo. Com a mãe, você tá me falando agora — torceu Dora de propósito.
— Ah, sua cabrita! Sabia e não me disse nada, né? Dei¬xe está, filha desnaturada!! — gargalhou Valquíria, desvian¬do a atenção de Doralice do cochicho que ela estivera tendo com Silvério.
— Vamos, benzinho, pró Quentão? — disse Dora para o namorado.
— Tá chovendo, Dora. O Quentão hoje deve estar uma porcaria. Vamos ficar por aqui mesmo, conversando com a Val — falou o rapaz. Ele estava interessadíssimo em prosse¬guir com o assunto interrompido, tão logo houvesse uma opor¬tunidade.
— A chuva já está passando, e, além disso, nós vamos na camioneta, não é? — disse ela. Realmente, a desculpa da chuva era um tanto esfarrapada. Na semana anterior, a mineradora havia recebido duas camionetas usadas, mas em bom estado, do Incra. Os trabalhos no acampamento ficaram mais fáceis, e à noite os carros eram usados pelos doutores.
— Então vamos. Mas se o Quentão não estiver bom, nós voltamos pra cá. Estou precisando falar com o Zé Geraldo sobre um serviço lá na mineradora. Se ele aparecer por aqui, Val, diga-lhe que me espere, por favor.
— Pode deixar que eu dou o recado, Silvério — falou Val. Quando o casalzinho saiu, Valquíria chamou Bartira:
— Minha neguinha, dê um pulo correndo na casa de Zé Geraldo. Se ele estiver lá, diga pra ele vir aqui hoje, sem fal¬ta, antes do forró do Quentão terminar.
— Vou já, já, dona Val. É só o tempo de ir aqui no ba¬nheiro — disse Bartira, e entrou depressa numa espécie de la¬vatório que havia ao lado. A neguinha era esperta e libidinosa. Perto de completar quinze anos, e de tanto ouvir as conversas picantes da Baleia, ardia por uma oportunidade de ficar a sós com Zé Geraldo, o homem mais gentil que ela conhecera até então. O mecânico a tratava com carinho, mas ele era assim com todas as pessoas. No entanto, na cabeça de Bartira, ele era o seu príncipe encantado.
— Vixe, mas vai é perfumada, hein, Bartira? — falou Val, quando a garota saiu do lavatório. — Tá doidinha pra esfregar o rabo e perder o couro do cu, né, minha filha? — gargalhou ela.
— O que é isso, dona Val, só passei uma aguazinha-de-cheiro. — E lá se foi ela para cumprir o mandado da pa¬troa.


Eram três e trinta da tarde. O céu estava limpo de nu¬vens e o ar muito fresco a oito mil pés de altitude. O ronco firme e suave do motor embalava o voo do Paquera. João Pedro executou uma curva de inclinação média sobre a região que o mapa indicava ser a do igarapé dos Caianos. Só faltava o contato com mais uma patrulha. Depois, o regresso a Ma¬rabá e o relatório da missão para o Dr. Gil.
— Rouxinol, Paquera. Câmbio — chamou o aviador, acionando a tecla do microfone no manche da aeronave. Si¬lêncio. João Pedro esperou mais alguns segundos e fez uma chamada mais longa. — Paquera para Rouxinol. Rouxinol, uno, dôs, três, quatro, quatro, três, dôs, uno, Paquera cha¬mando Rouxinol. Câmbio.
— Paquera, aqui Rouxinol. Na sua escuta. Prossiga. Câmbio — respondeu finalmente a patrulha especial Rouxinol.
— Paquera para Rouxinol. Estou lhe ouvindo cinco barra três. Alguma novidade? Câmbio.
— Positivo, Paquera. Houve chafurdo. Solicito resgate amanhã, às nove horas na PA-70, local combinado. Câmbio final.
— Paquera para Rouxinol. Confirme chafurdo. Câmbio — falou João Pedro, excitado pela notícia de que houvera en¬contro das forças legais com o povo da mata.
— Rouxinol para Paquera. Afirmativo. Houve chafur¬do. Câmbio final e desligo — respondeu a patrulha lá embai¬xo, seca e friamente.
O aviador ficou por algum tempo sem entender. "Então é assim? Há um chafurdo e os caras informam sem maiores explicações, porra?!", pensou João Pedro. "É aquele tal de Zeca, a voz era dele. Sujeitinho babaca! Como ele vai ser res¬gatado amanhã cedo, quer dar os detalhes, em primeira mão, ao chefe dele."
De qualquer forma, aquela era a primeira participação efetiva de João Pedro nas operações. "Pelo menos, estou le¬vando uma notícia quente", disse ele para si mesmo tomando o rumo de regresso para Marabá.
Após duas horas e vinte de voo solitário, o Paquera esta¬cionou no pátio do aeroporto.
— Que tal a esvoaçada, Dr. João Pedro? A aeronave es¬tá com algum problema? — perguntou o mecânico Almeida, colocando os calços no avião.
— Tudo bem, Almeidinha. A garça está redonda — dis¬se João Pedro e entrou na "abreviatura" que o aguardava. "Abreviatura" era o termo que eles usavam para designar as camionetas, ou viaturas, uma vez que, alguém explicou, "se o carro serve para abreviar as distâncias, não é só uma viatu¬ra, é uma abreviatura, sim senhor!"
Tão logo chegou à Casa Azul, João Pedro anunciou pa¬ra Gil, Tomé, Tarquínio e outros que estavam na sala de ope¬rações.
— Pessoal, grandes notícias! A Rouxinol informou que houve chafurdo! Deseja resgate amanhã às nove, no local com¬binado da PA-70.
— E as demais patrulhas? Alguma novidade? — pergun¬tou Gil, sem manifestar qualquer entusiasmo pela informa¬ção de João Pedro.
— As outras patrulhas não disseram nada que chamasse a atenção. Está tudo aí no relatório — disse o aviador, com¬pletamente atônito.
— Tá legal, Joãozinho. Obrigado pelo relatório. Até mais tarde, na reunião do pôr-do-sol.
João Pedro saiu para o pátio da Casa Azul, confuso. Pe¬gou a abreviatura e rumou para o ninho. "Tem que haver al¬go errado nisso", cismava ele. Entrou no alojamento pensativo colocou seu material de navegação sobre uma mesa e balan¬çou a cabeça, como se tentasse afastar uma ideia indesejável.
— O que foi, Joãozinho? Algum problema? — pergun¬tou Tenório, que estava deitado num dos beliches.
João Pedro contou ao companheiro o acontecido.
— ...que é que se pode pensar disso? — finalizou ele, questionando.
— Joãozinho, fique fora dessa história. Não pergunte os porquês. Faça como a maioria de nós vem fazendo. Cumpri¬mos a programação de vôo e pronto! Nossa responsabilidade acaba quando a gente toca a borracha no chão, no regresso das missões. Fim!
— Não posso agir assim, porra! Não sou um mero cho¬fer de avião! Nenhum de nós é, caralho. Somos oficiais da força aérea. Nossa responsabilidade está muito acima da sim¬ples condução de uma aeronave com segurança, Tenório! A nação espera de nós muito mais. Agora, voltando ao assun¬to, o que você acha que está acontecendo?
— Joãozinho, tá na cara que esse chafurdo que o Zeca reportou é fajuto!
— Fajuto em que sentido? Você quer dizer que não houve, e que os outros sabiam disso?
— Não, não é bem assim. Hoje pela manhã, a patrulha do Zeca foi desovada na PA-70. Eu e o Rafael cumprimos a missão. Junto com eles foram dois prisioneiros, um rapaz e uma moça. O recado que ele mandou é de que os dois já fo¬ram esfriados, João.
— Não acredito! Se isso for verdade, então não é guer¬ra. É assassinato a sangue-frio, porra!
— João Pedro, é o que lhe falei. Fim! Se você disser que eu disse, digo que é mentira sua, tá legal? Agora, quer um con¬selho? Fique na sua, cara. Se você chiar, esse pessoal da "co¬munidade" faz a sua cama direitinho e lhe queima dormindo.
João Pedro encostou a cabeça no travesseiro e ficou olhan¬do fixo para cima. O pensamento absorto. Uma tristeza imensa lhe invadia a alma.


— Bom dia, Zé Geraldo — disse Silvério, estacionando a camioneta na frente da oficina.
— Bom dia, Silvério. Que bons ventos o trazem aqui a essa hora da manhã? — falou o mecânico, aproximando-se do carro e segurando a porta do motorista para que o outro descesse.
— Deixei, ontem à noite, um recado na Val de que esta¬va precisando de um favor seu. Como você não pintou por lá resolvi que o melhor era vir pessoalmente à toca do lobo — pilheriou o aviador.
— Não recebi o recado, não. Ontem à noite, fui pescar. Pura perda de tempo. Peguei muita chuva e pouco peixe. Mas, o que é que o amigo manda? — disse Zé Geraldo com um sorriso.
— É o seguinte, Zé. Nós instalamos uma bomba para pu¬xar água do poço, lá no acampamento da mineradora. Aconte¬ce que a porra da bomba não está conseguindo pressão sufi¬ciente para colocar a água na caixa. Meu pessoal analisou o pro¬blema e concluiu que é preciso fazer uma redução no cano de saída. Acho, também, que a solução é essa, mas vai ser neces¬sário um mandril para abrir rosca num cano de uma polegada e não temos a ferramenta. Você teria condições de nos ajudar?
— Mas é claro, Silvério! Vamos lá que eu resolvo isso rapidinho — respondeu Zé Geraldo. — É só o tempo de pe¬gar as minhas ferramentas.
— Ô, Zé, não é preciso você se incomodar. Basta me em¬prestar o mandril. O resto a gente faz lá mesmo.
— De jeito nenhum, Silvério. Faço questão de ir lá pes¬soalmente e fazer o serviço — falou o mecânico, indo apa¬nhar as ferramentas.
Silvério ficou meio desconcertado diante de tanta genti¬leza. Não havia como recusar o oferecimento sem ser grossei¬ro. "De mais a mais, qual é o problema de levar o cara lá?", ponderou ele.
— Vamos lá, meu amigo. Estou pronto — disse Zé Ge¬raldo, colocando sua caixa de ferramentas na boleia da ca¬mioneta.
No acampamento, Zé Geraldo conduziu-se, como era de seu feitio, com a maior discrição. Silvério levou-o diretamen-te para o local do poço, ele avaliou o que era preciso ser feito e se pôs a trabalhar com afinco e habilidade.
— Quem é esse cara, Silvério? Você tá maluco, negão? Trazer um estranho aqui, isso vai dar merda — falou Banto em voz baixa, enquanto tomava um café na barraca do rancho.
— Que vai dar merda porra nenhuma, Banto. Deixe de ser cagão, porra. O que que tem pra ver aqui? Um punhado de barracas, um helicóptero e dois L-19 estacionados no pá¬tio, o quê mais? Na barraca de operações, ele não vai passar nem perto — falou Silvério.
— Não vai haver problema, não, Banto. Também conhe¬ço o Zé Geraldo. O cara é gente fina. Fique frio — disse Tiago.
— Vocês são mais antigos, vocês é que sabem. Se der mer¬da, tou fora — e deu de ombros.
O serviço ficou perfeito. Quando eles ligaram a bomba, a água jorrou forte na caixa que fora colocada a uns cinco metros do solo.
— O homem é bom de hidráulica — comentou o Gauchão, que ficara encarregado de acompanhar o trabalho.
— Parabéns, Zé Geraldo. Agora, diga aí quanto é que estamos lhe devendo — falou Silvério, contente.
— Que devendo nada, Silvério. Meu negócio é mecâni¬ca de motores. Esses servicinhos de encanador, faço de curio¬so. Não é nada não. Foi só pelo prazer de servir ao amigo.
— Que é isso, Zé. Então, você vem lá da cidade, perde o seu tempo e não ganha nada? Assim não posso aceitar. Te¬nho que lhe pagar alguma coisa.
— Já lhe disse, Silvério, vim para servir ao amigo. Não me ofenda com essa história de pagamento.
— Porra, Zé Geraldo, você assim nos deixa sem graça.
— Você quer me pagar? Então, me deixe entrar na cabine de um avião desses aí. É o meu sonho. Quando eu era me¬nino, lá em Caruaru, vivia pensando que um dia poderia ser piloto. Mas sabe como é, família muito pobre, o sonho aca¬bou cedo.
Silvério se comoveu com a simplicidade do homem.
— Tudo bem, vamos lá — disse ele num impulso e, virando-se para Gauchão, falou: — Avise pró Dr. Tiago que estou indo mostrar um Paquera pró Zé Geraldo.
Sentado no assento do piloto, o mecânico se maravilha¬va com as explicações que Silvério ia lhe dando.
— E este reloginho aqui, pra que é que serve?
— Este é o climb, instrumento que indica se o avião está subindo ou descendo.
— Que coisa linda! Ah, se um dia eu pudesse voar num bicho deste! E isto aqui? É o rádio?
— É um dos rádios. Este é um transreceptor FM auxi¬liar, o do lado esquerdo é um VHF, e ali embaixo está o HF...
— Pode parar, Silvério. Esse monte de nome eu não en¬tendo. Agá éfe, vê agá éfe, isso é grego pra mim. Pra que ser¬ve tanto rádio assim?
— Desculpa, Zé. Fui falando sem perceber que você não é do ramo. O FM, este aqui, significa frequência modulada, serve para comunicação a curta distância, e nós usamos para falar com o nosso pessoal que tá na mata. Este outro, o VHF, quer dizer frequência muito alta. É usado para médias distân¬cias, por exemplo, pra falar daqui com Marabá. E o HF, alta frequência, é para grandes distâncias. Com este pode-se falar com Belém, com Brasília e até com o exterior. Aí está, tudo explicado.
— Que belezura! — exclamou Zé Geraldo. — Bem, mas está na hora de ir andando — disse ele, descendo da aeronave.
— Vou mandar alguém lhe levar pra cidade. Muito obri¬gado, mais uma vez, Zé Geraldo — falou Silvério.
— Vamo chamá o homem pra um churrasquinho, qual¬quer dia desses aí, né Dr. Silvério? — disse Gauchão, que es¬tava perto observando.
— Claro. Vamos sim.
— Pois, então! Sempre a gente assa uma carninha aqui. Aparece aí pra comer com nós. Churrasco bom, barbaridade!
— Será um prazer — disse Zé Geraldo, despedindo-se. Quando a camioneta se afastou em direção a Xambioá, Silvério comentou:
— Sujeito boa gente é esse Zé Geraldo, sô!
— Mas bota boa gente nisso! E o serviço dele, doutor? Trabalho limpo, barbaridade!
No caminho para a cidade, Zé Geraldo ia pensando: "En¬tão, é isso. Eles usam um transreceptor FM, operando numa frequência acima de cento e dez megahertz, fora, portanto, da faixa normal das rádios comerciais. Tá bom! Tá bom não, tá ótimo."


Às dez e trinta da manhã, um Sapão pousava no pátio da Casa Azul, regressando após resgatar a patrulha especial Rouxinol. Oran, Gil e os demais aguardavam.
— E aí, Zeca, como foi a missão? — perguntou Oran.
— Foi muito melhor do que podíamos esperar, Dr. Oran. Olha só como é que está o Sapão — disse ele, apontando para o helicóptero, que, com as portas traseiras abertas, mostrava o salão carregado, até o teto, com vários recipientes de, mais ou menos, vinte litros cada um. — Deve ter aí umas trinta cai¬xas de metal e de plástico. A maioria estava no depósito de alimentos. As outras, umas doze, no de remédios. Abri uma de cada para ver o que continham. O senhor não vai acredi-tar. Uma delas contém material cirúrgico que muito hospital por aí não tem. A de alimentos, que foi aberta, tem leite em pó, carne liofilizada, sal e rapadura, tudo bem embalado e pro¬tegido.
Vários agentes estavam descarregando o Sapão e trans¬portando os recipientes.
— Ô, Tomé, coordene a arrumação desse material no galpão e diga ao pessoal para não abrir nada por enquanto. De¬pois que tudo estiver arrumado, vou designar o pessoal que vai abrir e verificar os recipientes, contando e catalogando tu¬do. Quero uma estimativa de quanto tempo de suprimento exis¬te em cada caixa dessa — disse Oran, sempre metódico e organizado.
— E os prisioneiros? — perguntou João Pedro a Tarquínio, em voz baixa, num local mais afastado dos demais.
— Que prisioneiros? — redarguiu o outro.
— Você sabe, não se faça de idiota comigo, porra.
— Ah, cê tá falando daqueles dois que você viu lá no gal¬pão, aquele dia? Eles viajaram — disse Tarquínio com cara de parvo.
— Viajaram pra onde?
— Viajaram pra Brasília, ou pra São Paulo. Sei lá! Cê tá querendo saber demais, Joãozinho. Pára de encher o saco. Fica na sua, não se meta nisso. É assunto compartimentado. Estou lhe dando um conselho de amigo.
João Pedro achou melhor ficar calado. "Assassino, fi¬lho da puta!", pensou ele, olhando na direção de Zeca.
— Pessoal — disse Oran — tão logo tenhamos um le¬vantamento completo do material apreendido, o que espero que aconteça até o final da tarde, quero uma reunião com os chefes de setor. Creio que, diante da amostra, algumas reso-luções importantes terão que ser tomadas. Assim, em princí¬pio, a reunião do pôr-do-sol de hoje fica marcada para as nove da noite.
— Posso pegar a programação aérea para amanhã um pouco mais cedo, tio Oran? — perguntou João Pedro.
— Claro, Joãozinho. Faça contato direto com o Gil. Sei que você precisa transmitir as ordens de missão para Xambioá, organizar as escalas de vôo e tomar outras providências. Se você ficar dependendo do término da reunião, fica muito tarde. Não é isso? E, afinal, meus aviadores têm que dormir cedo para estar bem-dispostos no dia seguinte, é ou não é? — concordou Oran, sorrindo amigavelmente para João Pedro.
— Obrigado pela consideração. De qualquer forma, es¬tarei presente à reunião de logo mais à noite — disse o avia¬dor, retirando-se a seguir.


Passava um pouco das dez quando a reunião começou na Casa Azul. Após a apresentação do quadro de situação, ocasião em que Gil explicou o remanejamento das patrulhas de acordo com os informes mais recentes, Oran assumiu a pla¬taforma.
— Meus senhores, peço-lhes desculpas pelo atraso. Ti¬vemos hoje um dia de muito trabalho. Como os senhores sa¬bem, a descoberta da existência desses depósitos é um fato novo que irá modificar sensivelmente os nossos planos de manobra. Só depois que abrimos os recipientes, verificando cuidadosa¬mente o conteúdo de cada um, nos demos conta da extensão e consequências do achado. O material apreendido represen¬ta apenas quatro depósitos, dois de alimentos e dois de medi¬camentos. No entanto, temos razões suficientes para supor que os guerrilheiros possuem inúmeros outros esconderijos dessa natureza. Para que os senhores tenham uma idéia, cada reci¬piente de alimento contém suprimento de boca para susten¬tar, aproximadamente, quatro pessoas durante vinte dias. Os de medicamentos foram de difícil avaliação. Na parte de re-médios, existe uma quantidade muito grande de antibióticos e analgésicos de amplo espectro, comprimidos de Aralen con¬tra a malária e diversas outras drogas. Há também uma enor¬me quantidade de material cirúrgico para suturas e pequenas cirurgias, como agulhas, fios, bisturis, seringas, fórceps, pin¬ças, curetas, boticões e um sem-número de outras coisas. Além, é claro, de soro fisiológico, mercurocromo, esparadrapos, gazes e bandagens de diversos tipos.
"Quer dizer, por essa amostra, podemos supor que eles estão preparados para resistir por um longo período de tem¬po. O que significa que, se não tomarmos medidas corretas, essa guerra vai durar uma eternidade — disse Oran, fazendo uma pequena pausa.
"Ora, meus amigos, nós somos velhos soldados! Temos, portanto, que usar os nossos conhecimentos sobre a matéria, ou seja, procurar negar ao inimigo o acesso às suas fontes de suprimento, cortando a linha, o que não é o caso, ou destruindo a própria fonte.
"Mas como destruir as fontes, se não sabemos onde elas se encontram? Esta é a questão que nos levou a modificar o plano de manobra, como nos referimos inicialmente. De ago¬ra em diante, assume importância fundamental, não a simples eliminação dos subversivos, mas, sim, fazermos o maior nú¬mero possível de prisioneiros. Estes nos darão o 'caminho das pedras' para estourarmos os depósitos e, assim, negarmos ao inimigo acesso ao suprimento.
"As patrulhas deverão ser orientadas neste sentido, bem como vamos dar início à montagem de uma operação de guerra psicológica. Conversei com o Dr. João Pedro, aqui presente, e com o nosso pessoal de comunicações. Vamos instalar po¬tentes alto-falantes sob as asas de um Paquera e, através de¬les, enviar mensagens de exortação para que os subversivos se entreguem. Os detalhes técnicos muitos de vocês conhecem e o sistema já foi usado com êxito em outros conflitos. Penso que, até meados de janeiro, estaremos em condição de desen-cadear essa operação psicológica.
"Era isso que eu tinha a lhes dizer. Peço, novamente, des¬culpas pelo adiantado da hora. Boa noite para todos — con¬cluiu o comandante da Casa Azul.


— Puxa vida! O Zé Geraldo desapareceu do mapa. Vo¬cê tem notícias dele, Val? — perguntou Silvério.
— Ih! Aquele é assim mesmo. De vez em quando toma um chá de sumiço. Mas desta vez me avisou que ia passar o ano-novo em Imperatriz, na casa de uns amigos dele — res¬pondeu Valquíria.
— Amigo deve de ser conversa-fiada. O Zé tem é algu¬ma muler por lá. Ele é igual mineiro, come queto, né Silvé¬rio? — disse Maria Preta, dando uma piscadela para o rapaz.
— Se for isso, faz ele muito bem, porque aqui ele já co¬meu todas, né Maria? — gargalhou Valquíria ruidosamente, provocando a outra.
— Vamos, benzinho? — convidou Doralice, saindo da casa para a calçada. — Tchau, tchau, Val. Até mais tarde.
Os dois saíram de mãos dadas, em direção ao Quentão.
— E você, muler, como é que está se arrumando com o piloto? Minha parte eu já fiz — falou Val para Maria Preta, em voz baixa.
— Só fiquei com ele uma vez, quando o Valdemar foi a Araguaína resolver uns negócios de trigo para a padaria. O bichinho é bom de cama que é danado. Mas é também sem-vergonha que só ele.
— Sem-vergonha como? — quis saber Valquíria.
— Vixe! Ficou doidinho pra comer a minha bunda, Val!
— E ocê deixou, né!?
— Que é isso, Val, sou lá muler dessas coisas! — "Pois, sim...", pensou a Baleia. "Então, o danado gos¬ta de um rabo? É bom saber disso... Ah, se não é!"
Naquela noite, Valquíria ia ter uma conversa com Dora. Uma conversa cuidadosa, para não assustar a garota, mas era preciso abrir o caminho para descobrir mais coisas sobre a mineradora e a agropecuária.

Capítulo XII

Estava uma tarde ensolarada. Na ravina onde o grupo se encontrava, o ar era úmido e o calor quase insuportável. O suor de seus corpos atraía uma quantidade absurda de mos¬quitos, mas eles não se importavam mais com os incómodos insetos. A fadiga lhes aquebrantava o ânimo menos que as questões levantadas pelo infortúnio.
— Camaradas, tenho procurado, até agora, manter o nos¬so grupo unido, pois entendo que, se nos dividirmos, ficare¬mos mais fracos. Entretanto, percebo que alguns estão insatisfeitos, e não lhes tiro a razão. Perdemos, lamentavel¬mente, cinco bravos militantes, e, agora, tivemos nossas re¬servas diminuídas quando quatro de nossos depósitos foram saqueados pelas forças da repressão. Pessoalmente, creio que é, ainda, melhor permanecermos juntos. Contudo, minha opi¬nião pode ser contestada. Esta é a questão que submeto a vo¬cês: nos dividirmos ou continuarmos num só grupo? — disse Zenóbio.
— Sou a favor de permanecermos juntos. Pelas minhas contas, temos, ainda, alimentos para resistir por muito tem¬po. Esses milicos de merda vão acabar desistindo, se formos capazes de enganá-los, evitando os enfrentamentos. Acho que não é mais o caso de pensarmos em armar emboscadas. Eles são em número muito superior a nós e podem ser substituídos ene vezes, o que não acontece conosco. Agora, se eles fica¬rem nos procurando sem nos encontrar, vão acabar desistin¬do, achando que abandonamos a área — opinou Alfredo.
— Existe lógica na sua proposição, e eu concordo em par¬te com você. A pergunta que faço é, por que, então, não tentar efetivamente sair da área, retornando quando eles de¬sistirem? — falou Darci.
— Já pensei sobre isso, Darci. Acho que essa solução seria muito boa, se não houvesse sérios obstáculos. Se tentássemos cruzar o Araguaia, é praticamente certo que seríamos apanha¬dos antes de chegarmos à margem do lado de cá do rio. A ro¬ta menos provável de sermos detidos seria em direção ao Xingu. Mas esta eu não me arrisco sequer a sugerir. Seria uma cami¬nhada de muitos dias, por uma região totalmente desconheci¬da, com inúmeros perigos, e fatalmente não resistiríamos. Em resumo, é um caminho sem volta. Penso que não vale o risco. — ponderou Zenóbio, acrescentando: — De mais a mais, acho que é muito cedo para abandonarmos um projeto que esta¬mos construindo há tantos anos. Eles tentaram nos destruir de outras vezes e não conseguiram. Não conseguirão agora também, camaradas!
— Essa é, igualmente, a minha opinião, Zenóbio. No en¬tanto, nos afastamos da questão que foi colocada inicialmen¬te: dividir o grupo ou não? — interferiu Elias.
— Acho que não devemos nos precipitar. Como temos feito até aqui, vamos nos separar em duplas, em torno deste local, para passar a noite. Cada um pense sobre o assunto. Amanhã cedo nos reunimos novamente aqui e tomamos uma decisão — falou Zenóbio.
O grupo dos Caianos vinha adotando este esquema há al¬gum tempo. Por esse motivo, as duas vezes em que eles fo¬ram surpreendidos pelas tropas, as frações desbaratadas eram de dois, ou três, elementos, como no caso da queda de Ernani e Walter, e da prisão de Victor e Áurea, quando caiu, tam¬bém, Fábio, ao tentar fugir.
Separaram-se, pois. Cada dupla tomou uma direção, con¬forme um plano preestabelecido. Lúcia e Marlene, as duas mu¬lheres restantes do grupo, instalaram-se num terreno mais elevado, a cerca e cento e cinquenta metros da ravina.
— O que você acha de nos dividirmos? — perguntou Marlene a Lúcia.
— Você sabe da minha situação — disse a outra. — Vou completar cinco meses de gravidez, e não há mais como es¬conder isso. Eles já estão começando a desconfiar. — Ela es¬tava com as feições mais finas, porém com o ventre visivelmente intumescido, embora tentasse escondê-lo, usan¬do uma blusa larga sobre as calças compridas.
— Mas em que sua gravidez interfere com a decisão de dividir ou não o grupo?
— Não é isso que me preocupa, Marlene. Não posso con¬tinuar assim. Vou ter um filho, e preciso pensar nele. Não posso ficar perambulando por esta selva indefinidamente.
— O que você quer dizer com isso?
— Quero dizer que tenho que arranjar um jeito de sair daqui. Não sei como, mas tenho que ir para algum lugar on¬de possa ter assistência médica e ter o meu filho em condições de razoável conforto — disse Lúcia em tom de desespero.
— Mas como, mulher?
— Não sei. Ainda não sei. Às vezes penso que seria me¬lhor me entregar.
— Isto seria loucura, Lúcia. Aqueles torturadores filhos da puta a matariam. Você não pode fazer isso!
— Eles não seriam tão desumanos e covardes com uma grávida, você não acha?
— Eles são capazes de tudo, Lúcia.
— Mesmo se eu dissesse que o pai da criança é um deles?
— Você não tem certeza disso. O Simplício desapareceu. Não se sabe como. Pode ter se acidentado na mata, ter sido atacado por algum animal. Mil coisas podem ter acontecido.
— Algo lá dentro de mim me diz que ele fugiu, que era um espião, um traidor! — disse Lúcia com amargura.
— Não se desespere, minha amiga. Vamos encontrar uma solução. Estou do seu lado — falou Marlene, consolando a companheira.
— Você pensa mesmo que há alguma possibilidade de que o Simplício não fosse um espião? — perguntou Lúcia. A dú¬vida estava sempre a lhe assaltar o espírito. Ela queria tanto acreditar que isso pudesse ser verdade, que ela não se entregara a um infame agente da repressão. No fundo de seu cora¬ção, ainda alimentava amor por aquele homem, pelo pai da¬quele pequenino ser que crescia em suas entranhas.
— Claro que sim, Lúcia. As verificações que fizemos não nos deram motivos para suspeitar dele. Já discutimos isso tan¬tas vezes! O próprio Zenóbio disse que não acreditava que ele fosse um traidor.
— Eu gostaria tanto que você tivesse razão, Marlene... Ah, como gostaria!



— Até que enfim voltaste, hein, Zé Geraldo? — disse Valquíria ao mecânico que acabava de chegar à calçada da Ba¬leia.
— Nem foi tantos dias assim, Val. Você sentiu a minha falta? — perguntou ele.
— Eu não, mas teve gente aí que estava se roendo de sau¬dade, né, Bartira? Vá logo buscar um refresco pró seu xodó, sua sirigaita — falou Val, explodindo numa de suas gostosas gargalhadas.
Bartira saiu rebolando o traseiro para buscar o refresco, enquanto Zé Geraldo pôs-se numa atitude que era um misto de vergonha e felicidade.
— Não faça isso, não, Val. A menina o que é que vai pensar de mim?
— Mas se foi você mesmo que me disse que tava enrabichado por ela! Não fique vexado, não. Isso vai ficar só entre nós, meu nego. Agora me diga, como foram as coisas lá em Imperatriz?
— Tudo arranjado. Quando eu tiver os primeiros resul¬tados, lhe comunico — falou ele, voltando à sua maneira co¬medida de ser.
— Silvério andou perguntando por você. Daqui a pouco ele deve estar chegando. Quem sabe aparece mais alguma no¬vidade?
— É, pode ser — disse ele, pegando o copo que a moça lhe trouxera. — Obrigado, Bartira. Tenho um presentinho pra você, apareça lá em casa mais tarde.
— Oh, que bom, Zé Geraldo, mais tarde, se dona Val deixar, vou lá.
— Por mim, você pode ir aonde quiser. Agora, vá lá pra dentro arrumar a cozinha, sua espevitada — falou Val, rindo alto.
Dez minutos depois, Silvério chegava.
— Olá, Zé Geraldo. Como é que foi de viagem de ano-novo?
— Comigo ocê nem fala mais, né, Silvério? — disse Vai.
— Oh, Val desculpe. É que eu estava distraído. Boa noi¬te, tudo bem? — falou o aviador fazendo uma pantomima.
— A Val me disse que você queria falar comigo — disse o mecânico.
— É verdade. Queria saber se você conhece alguém na¬quela madeireira lá de São Geraldo. Estamos precisando de algumas tábuas, moirões e sarrafos para um serviço no acam¬pamento.
— Conheço o Tonho, filho da dona Etinha, aqui no Xambioá. Mas ele não deve ter muita influência lá. Se você quiser, podemos ir juntos a São Geraldo, no meu barco, ama¬nhã. De vez em quando, faço uns serviços pró pessoal da ma¬deireira. Quem sabe, a gente resolve isso indo lá?!
— Uai, então está bem. A que horas amanhã?
— A hora que você quiser. É só aparecer na oficina.
— Então, tá combinado. Lá pelas nove horas.



João Pedro executou um pouso suave com o Paquera na pista de Bacaba. Taxiou a aeronave para uma das laterais e estacionou. Uma abreviatura veio recebê-lo.
— Como é, doutor? Bom vôo? — disse o motorista.
— Tranqüilo, sem problemas. Vim buscar o Dr. Zeca. Você sabe se ele já está pronto?
— Ele me mandou apanhar o senhor. Disse que é pró se¬nhor ir lá pró outro lado. Parece que ele ainda vai demorar.
— Okei, vamos lá.
Quando João Pedro chegou ao pátio da casa, ouviu tiros vindos dos fundos.
— Porra, negão, o que é isso? — exclamou ele.
— Não é nada, não, doutor. Não se assuste. Pode ir lá prós fundos ver — disse o motorista.
O aviador caminhou para a direção indicada pelo baru¬lho dos disparos. Num tronco de árvore caído, a uns vinte e cinco, ou trinta metros de distância, várias garrafas estavam alinhadas. Zeca andava de um lado para o outro, braços ao longo do corpo, passos lentos. João Pedro ficou observando.
De vez em quando, o agente fazia uma meia parada, sa¬cava a arma do coldre de axila, ou do coldre de cintura, numa rapidez nunca vista, e atirava sem fazer, aparentemente, qualquer pontaria. A cada disparo, uma garrafa voava em cacos.
"Meus Deus, que destreza! O cara é um matador, mas que puta matador! Nunca vi nada igual, nem em filme de bangue-bangue italiano", pensou o aviador.
— Olá, Joãozinho. Como vão as coisas? — cumprimen¬tou o Dr. Haroldo, encarregado do destacamento de Bacaba, saindo da casa e vindo se juntar a João Pedro. — O homem é bom pra caralho de tiro, hein?
— Porra, se é!
Os dois ficaram assistindo. Pouco depois, Zeca terminou o treinamento e veio na direção deles.
— Por hoje, está bom. Na hora que você quiser, estou pronto pra partir, Joãozinho.
— Parabéns, excelente performance — disse João Pedro.
— Tenho que me cuidar, se não eles me queimam primeiro.
Quinze minutos depois, eles decolavam no rumo de Ma¬rabá, onde uma novidade aguardava João Pedro.
— Porra, Jotapê, passei o Natal e o ano-novo com a fa¬mília, mas tava era doido pra voltar pra cá — disse Jorjão para Joãozinho quando este chegou ao ninho. — Como é que está a situação na área, negão?
— Tá tudo bem, Jorjão. Quais são as ordens? — falou o outro, na expectativa das mudanças que, certamente ocor¬reriam com a chegada do chefe de operações do 1° EMRA.
— Porra, porra, até amanhã, você me passa o serviço e me bota por dentro de tudo que está acontecendo, né!? Depois, quero que você vá pra Xambioá. É preciso alguém mais antigo lá, porra. Essa garotada tá muito solta lá, né? Você fica no comando de Xambica, e eu no daqui. De vez em quan¬do, a gente troca. Eu vou pra lá, você vem pra cá, né? Porque ficar aqui diretão é um pé no saco, né? — disse Jorge, que gostava mais de ficar em Xambioá do que em Marabá, embo¬ra seus deveres funcionais o obrigassem a permanecer junto à Casa Azul.
— Certo, Jorjão. A passagem do serviço aqui é coisa rápida. Logo mais à noite, nós vamos à reunião na Casa Azul, e você toma conhecimento do restante da situação na área. A principal novidade é que estamos preparando um Paquera para ser lançado numa operação de guerra psicoló¬gica.
— Porra, porra, já tava sabendo disso. Vi o pessoal na pista, instalando duas "bocas de ferro" no avião, quando de¬sembarquei.
O trabalho de preparação do Paquera estava bem adian¬tado. Dentro de alguns dias seriam feitos os testes, e a opera¬ção psicológica começaria na segunda semana de janeiro. Jorge estava ciente do assunto porque alguns dias antes de sair de Belém ele próprio havia recebido e despachado o pedido de mais um L-19 para operar em Marabá.


— Paquera para Jabuti Três. Câmbio.
— Jabuti Três, Jabuti Três, uno, dós, três, quatro, qua¬tro, três, dós, uno. Paquera chamando Jabuti Três. Câmbio e cambiei.
— Ciente, Jabuti Três. Aguarde o Sapão na pista do Abó¬bora. Comunicarei à Casa Azul sobre o chafurdo. Câmbio final.
"Que merda, só consigo escutar a transmissão do tal de Paquera! Chafurdo... O que será que significa isso?", pen¬sou Zé Geraldo, retirando os fones de ouvido.
O rádio que ele conseguira adquirir em Imperatriz rece¬bia até cento e vinte megahertz. Fora fácil captar os sinais do avião, mas as respostas das tropas, na mata, não era possível receber. "De qualquer forma, já é alguma coisa", pensou ele, guardando o equipamento nos fundos de um armário, no seu quarto, contígüo à oficina.


— Pessoal, missão imediata! A Jabuti Três fez dois pri¬sioneiros. Está nos aguardando na pista do Abóbora. Re¬cebi o pedido de missão agora, direto do Paquera, por so¬licitação da Casa Azul — disse João Pedro, que assumira o comando da mineradora no dia anterior e já estava em franca atividade.
— Okei, João. Vamos ter apenas que aguardar a che¬gada de um Sapão. Os dois estão em missão, desovando e resgatando patrulhas, mas não devem demorar — disse Tia¬go.
— A tripulação de sobreaviso hoje é você mesmo e o japonês — comunicou Silvério, consultando o quadro de escalas na nova sala de operações, ainda em fase de aca¬bamento, construída com a madeira conseguida por ele em São Geraldo.
— O Jorjão está se deslocando pra cá num Paquera. Vem trazendo o Zeca para identificação e interrogatório dos pri¬sioneiros. O Elesbão já foi avisado aí na agropecuária — dis¬se João Pedro.
Vinte minutos depois, um Sapão regressava de missão. Após reabastecer, Joãozinho e o nipônico decolaram para a região do Abóbora. Em rota, avistaram um Paquera voando em sentido contrário ao deles.
— Paquera, Sapão Um. Câmbio — falou Tiago na fre¬quência tática VHF. O japonês adorava um papo-rádio.
— Sapão, Paquera na sua escuta, prossiga. Câmbio — respondeu Jorge.
— Estamos nos deslocando para o Abóbora, para efetuar o resgate. Sapão Um, câmbio.
— Ciente, porra. Boa missão. Aguardo vocês em acam¬pamento. Câmbio e desligo.
Quando eles chegaram de volta, os prisioneiros foram de¬sembarcados e levados para o acampamento da agropecuária.
— Quem são os dois? — perguntou Silvério a Jorjão e a João Pedro, pois ambos estavam mais familiarizados com a "ordem de batalha" dos paulistas.
— Porra, sei lá. Depois a gente pergunta pro Zeca. Ele não vai fazer mistério, né? — disse Jorge.
— Acho que é o Álvaro e o Antenor, do destacamento C — falou Joãozinho, sem acrescentar outro comentário. Ele estava aprendendo a ficar mais calado. Oran o prevenira de que o pessoal da "comunidade" estava de olho nele.
— O senhor vai voltar pra Marabá ainda hoje? — per¬guntou Tiago a Jorge.
— Porra, porra, claro que não, né japonês? O Zeca vai pernoitar aqui. Vou ficar também e, amanhã, levo ele de vol¬ta. Quero ir ao Quentão hoje, porra. Ver se pinta um povo, comer gente, né?
— Acho que vou dar uma saída hoje também. Ainda não conheço Xambioá — falou João Pedro.
— Ih, isso aqui é bom pra caralho. Você sai, dá uma pa¬querada e tira um sarro nas moças, lá no forró do Quentão. Se não der mais nada, porra, cê acaba a noite lá no Vietinam. Tem cada putinha boa naquela zona, né japonês? O nipônico, porra, é o dono das putas lá, é ou não é? — disse Jorjão gozando a cara de Tiago.
— Quê isso, major! Vou acabar ficando encabulado.
— Porra, porra, pára com essa merda de me chamar de major, porra. Aqui, eu sou o Jorjão das candongas, por¬ra.
— Que tal o acampamento? Já deu pra perceber as mo¬dificações? — perguntou Silvério para Jorge.
— Tá bom pra cacete. Vamos dar uma volta por aí pra você me mostrar as melhorias. O Tenório já me havia falado do que vocês estão fazendo aqui.
Os dois, Silvério e Jorge, saíram para ver o acampamento. Realmente, grandes transformações estavam sendo feitas. As barracas de lona, quentes e pesadas, tinham se de¬teriorado com o sol, a chuva, a umidade e as altas tempe¬raturas. Gradualmente elas estavam sendo substituídas por construções simples de madeira, cobertas de palha, muito mais frescas e apropriadas à região. Este, além de outros, era mais um ensinamento a respeito do modus operandi na Amazônica. Não obstante, este, como os outros, se perde¬ram. Não muito tempo depois, um luminar da Diretoria do Material adquiria para o 1º EMRA uma "unidade celular de intendência", com lindas barracas de náilon, tão quen¬tes que, durante o dia, não se podia entrar nelas. Grande piada! O cara devia ter cérebro de protozoário. Mas isso é outra história...


Eles haviam decidido que o melhor era permanecerem jun¬tos, deslocarem-se em duplas separadas umas das outras de cem a duzentos metros e reunirem-se apenas para dormir, em pontos predeterminados da mata.
— Marlene, vamos parar um pouco. Nossa! Eu estou muito cansada — disse Lúcia.
— Falta pouco para chegarmos à clareira do Quatipuru, Lúcia. Mais uma hora e você vai poder descansar à vontade.
— Meia hora de descanso não vai alterar nada.
— Tá bem, mas vamos nos atrasar e os outros podem ficar preocupados conosco.
— Que se danem eles. Esta barriga está me incomodan¬do muito. Não dá para prosseguir sem um pequeno repouso. Tenha paciência.
Elas interromperam a marcha e sentaram no chão. De¬pois de alguns minutos, Marlene fez sinal de silêncio e falou baixinho:
— Ei, está ouvindo!?
As duas apuraram o ouvido, atentas. De repente escuta¬ram bem nítido, acima do ruído do avião:

"Meus amigos, irmãos brasileiros, é inútil continuar esta luta.
Entreguem-se em paz... ...vocês serão tratados com respeito,
terão alimentos, conforto e carinho..."

— Você ouviu?! Eles estão falando em respeito, comi¬da, conforto... — disse Lúcia.
— Filhos da puta! Pelegos da ditadura! — falou Marlene entre dentes.
— Porqueira, era tudo o que eu queria! Respeito, comi¬da decente e conforto, para mim e meu filho — lamentou-se Lúcia.
— Não vai me dizer que você está acreditando naqueles putos. Era só o que faltava!
— Porra, Marlene, os caras podem estar bem-intencionados.
— Não acredito neles de jeito nenhum. Isso é um engo¬do, Lúcia. Será que você não está vendo?
A outra não respondeu. Contudo, a idéia de se entregar, agora, ficava mais forte. Lúcia precisava acreditar em algu¬ma coisa que lhe desse uma esperança de sobrevivência para si e para seu filho. No entanto, ela não podia fugir sozinha. De alguma forma, tinha que convencer Marlene a acom¬panhá-la.
O avião passou outra vez, próximo ao local onde elas estavam. "... paz e fraternidade..." A floresta e a distân¬cia não permitiram que elas captassem toda a mensagem. No entanto, aquelas eram as palavras-chaves: "Paz e fraterni¬dade."
— Você escutou?! Eles estão propondo paz e fraterni¬dade, Marlene. Afinal, somos todos brasileiros. Vamos nos entregar! Fuja comigo, Marlene. Por favor, enquanto ainda há tempo. Não há mais sentido em continuar essa luta. Va¬mos, responda.
A outra a observava calada. "É possível que ela tenha razão. Também me sinto extenuada. Ah, como seria bom uma cama limpa, uma refeição simples, mas substancial, um ba¬nho com sabonete e roupas limpas", pensava Marlene. "Além disso, o que tenho eu a perder? De que adianta continuar a bancar a durona?"
— Vamos, o que é que você diz? — insistiu Lúcia.
— Vou pensar sobre o assunto, minha amiga. Depois con¬versamos. Vamos seguir em frente e nos juntar aos outros ca¬maradas.
Até a hora em que elas ainda estavam acordadas, Lúcia sutilmente foi enchendo a cabeça de Marlene para que elas fu¬gissem e se entregassem.
— Amanhã... lhe dou uma... resposta... — disse sua com¬panheira, bamba de sono, adormecendo em seguida.


— E aí, João Pedro, o que você achou da Joaninha? — perguntou Tiago, erguendo um copo de cerveja no botequim da Janoca, em plena zona do Vietinam.
— Porra, negão, que garota porreta. Já estou apaixona¬do. Ela é doce, meiga, e tem um jeitinho gostoso de falar que me conquistou na hora. Nunca pensei que fosse encontrar uma moça do tipo dela por aqui.
— Quando eu a vi pela primeira vez, também fiquei im¬pressionado. Mas, conversa vai, conversa vem, acabei fican¬do com a Dulcilene, que é a melhor amiga da Joaninha. Agora, vocês dois vão dar certo, João e Joana, Joãozinho e Joani¬nha. Só pode dar certo — falou Tiago. Os dois colegas, após terem deixado as moças em casa, estavam ali, molhando a pa¬lavra com cerveja e comendo pacu frito com pimenta. A noi¬te estava muito quente. Era preciso esperar esfriar um pouco antes de irem dormir. Além disso, ambos eram boêmios por natureza, putanheiros de primeira linha, tendo, um com o ou¬tro, grande afinidade.
— Mas, ô japonês, notei que você está também arriado pela Dulcilene. Tá ou não tá?
— Que nada, João. Meu amor é amor vagabundo. Hoje aqui, amanhã ali, vou levando a vida... Ô Janoca, coloca na vitrola aquela música do Roberto Carlos que fala de amor va¬gabundo — gritou ele para a dona do boteco.
Quando a música começou a tocar, João Pedro pediu mais uma cerveja e falou em voz baixa para Tiago:
— E os prisioneiros, japonês?
— Porra, sumiram com eles, na maior. Depois que eles deram o serviço dos dois depósitos, "viajaram".
— Cara, não sei o que você pensa, mas eu não concordo com isso. Eles estão sendo assassinados friamente, negão!
— Joãozinho, estou tão puto quanto você. O que esses zecas da vida estão fazendo é a maior sacanagem do mundo. Eles dizem que é ordem de Brasília. Não é pra deixar ninguém sair vivo, porra. Mas isso não está certo, caralho!
— E o pior é que a gente não pode fazer nada. Temos que ser coniventes com esses crimes todos e ficar de bico calado.
— Eu não sou conivente porra nenhuma! Se der merda, se eu for chamado a depor, entrego todos eles.
— É, mas de que adiantaria isso, depois dos caras enter¬rados... Vamos mudar de assunto que o Beto e o Fábio vêm aí.
— É né? Fazendo a ronda na putaria? — disse Tiago aos dois recém-chegados.
— Só viemos ver se a cerveja de vocês está gelada — fa¬lou Roberto pegando o copo do japonês, enquanto Fábio da¬va uma bicada no de João Pedro.
— Ô Janoca, traz mais duas cervejas e dois copos — gri¬tou Tiago. O papo rolou até mais tarde, antes que eles fossem dormir. O pacu frito estava uma delícia.
"Entretanto, enquanto estamos aqui", pensava Joãozi¬nho, "o Gil, lá na Casa Azul, já deve ter acrescentado dois X vermelhos ao quadro, Custódio Sardinha, o Álvaro, e José Maurício Portugal, o Antenor. Que valores cristãos são esses que eles vivem apregoando? Seriam esses os valores que o Cris¬to defendia?"
"Não gosto de comunista, mas não posso pactuar com as injustiças que estão sendo feitas aqui. Será que a democra¬cia, para ser preservada, precisa matar assim, a sangue-frio, jovens brasileiros politicamente equivocados?!", ruminava Tia¬go do outro lado da mesa, acrescentando em voz alta:
— Olha aqui.... vou falar pra vocês, este botequim e es¬ta zona... não são tão sórdidos quanto essa merda de guerra que nós estamos lutando! E tenho dito, pronto, tá acabado!
— Cacete, o japonês tá bêbado. Vamos embora pessoal — disse Fábio.
— Olha qui, bêbado é o caralho, porra. Tô falando a verdade...
Fábio, aliás o saudoso tenente Neuman, era alto e forte. Pegou o japonês com vigor e levou-o para a abreviatura.
— Obrigado, Fábio, tou meio bêbado mesmo, mas sou educado — falou o japonês com voz pastosa. E lá se foram eles para a mineradora.

Capítulo XIII

Estava amanhecendo, embora ainda estivesse bastante es¬curo na floresta. Uma camada fina de névoa úmida pairava na altura da copa das árvores, o conhecido aru da Amazônia. Chovera muito durante a noite. Ainda que eles tivessem impro-visado abrigos com folhas e palmas, suas vestimentas estavam molhadas. Alguns possuíam uma muda de roupa, mesmo que fosse uma simples camiseta, outros nem isso.
— Vamos fazer um fogo para secar estas roupas. Não podemos continuar assim deste jeito — disse Tonho.
— Não! Nem pensar. Seria muito arriscado — falou Zenóbio.
— O que é que se faz, então? — perguntou Miguel.
— Vamos nos pôr a caminho novamente. Andando, a roupa logo vai secar. O esquema é o mesmo de ontem. Daqui a umas três, ou quatro, horas de marcha existe um sítio onde po¬demos nos abrigar. Se o Tião Jacutinga não quiser nos rece¬ber, desta vez vamos dar uma prensa nele.
— Você quer dizer, adotar a mesma tática dos pelegos!?
— E por que não? Temos que sobreviver, camarada!
Desde que Lúcia e Marlene, juntamente com Márcio e Fer¬nando, haviam desaparecido há uma semana, eles estavam sem provisão de alimentos. “A má sorte do nosso grupo está de¬mais. Justamente aqueles quatro é que tinham conhecimento da localização dos depósitos de mantimentos", pensou o chefe.
— Concordo com Zenóbio. Não podemos tentar chegar ao igarapé dos Perdidos sem comer. Se for preciso assaltar os sítios e dar porrada para conseguir comida, nós vamos fa¬zer isso.
Estavam se deslocando para o sul. A ideia era tentar fa¬zer contato e se juntar ao grupamento do Velho. Os oito re¬manescentes dos Caianos sabiam, entretanto, que a distância era de mais de cinqüenta quilômetros, e que eles não podiam seguir em linha reta para não denunciarem o plano. As tro¬pas, seguramente, traçariam o rumo deles, seguindo-lhes os rastros.
— Vamos em frente, então, camaradas — disse Zenó¬bio, iniciando a caminhada. "Aqueles quatro filhos da puta devem ter fugido para se entregar. Covardes! Foram seduzi¬dos pela mensagem mentirosa do avião", ia raciocinando ele. "Tenho, porém, que convencer os outros de que eles caíram lutando, para não lhes despertar desejo semelhante."


— Acho que isso não é rastro deles, não sinhô, seu Armindo. Tá paricendo mais é rastro de coureiro, ou de argum outro caçador — disse o mateiro Jerônimo.
— Mas por que você acha isso? — perguntou o chefe da Pato Bravo Três.
— Tem muito gaio quebrado. Quando é os paulista, ês procura disfarçá pra nóis num segui eles.
— É, você tem razão, mas, na falta de outro rastro, va¬mos seguir esse mesmo.
— O sinhô é que sabe.
— Vamos, pessoal, antes do anoitecer temos que chegar perto da clareira do Pitanguá, que é o melhor lugar para o nosso resgate amanhã — disse Armindo.
A patrulha caminhou por mais umas duas horas. Os ras¬tros iam ficando cada vez mais nítidos.
— Parece que eles querem mesmo ser seguidos, ou en¬tão estão demarcando o caminho de volta — falou Zé Fala-fina.
— Ei, cêis tão escuitando? — perguntou Jerônimo. Eles pararam e ficaram atentos. Parecia uma voz de mu¬lher cantando.
— Diabos! Não é posssível! — exclamou Armindo, fa¬zendo sinal de avançar para os outros.
A Pato Bravo Três abriu em cunha e foi se aproximando do local de onde vinha aquele estranho som. Era mesmo uma mulher cantando.
"Peguei um ita no norte, Pra vir pro Rio morar. Adeus meu pai, minha mãe, Adeus Belém do Pará..."
Quando eles chegaram mais perto, por detrás de uma ár¬vore surgiu um galho com um lenço branco amarrado na ponta, agitado pela mão de uma pessoa.
— Queremos paz! Queremos nos entregar! Não atirem! — gritou uma voz de homem. O canto havia cessado.
— Apareçam com as mãos na cabeça! — gritou Armindo. Um a um, eles foram aparecendo. Primeiro o homem com o lenço branco em sinal de paz. Depois uma mulher, depois outra e, finalmente, outro homem. A Pato Bravo Três fizera quatro prisioneiros sem disparar um só tiro. Lúcia, Marlene, Márcio e Fernando estavam se entregando.
— Puta que pariu! Grande, grande, graaande garoto! — comemorava Gil a notícia da prisão dos quatro elementos do grupamento B dos Caianos. — A operação psicológica está dando certo, Dr. Oran. Precisamos intensificar os voos do "boca-de-ferro".
— Realmente, foi uma grande vitória. Não esperava tanto em tão pouco tempo.
— O Paquera informou que eles, agora, estão se deslo¬cando para o ponto de resgate da patrulha. Amanhã, o Sa¬pão vai trazê-los direto para cá — disse Zeca.
— Vê se você e o seu pessoal pegam mais leve com esses quatro, não é, Zeca? Afinal, eles se entregaram de livre e es¬pontânea vontade — falou Oran.
— Tudo vai depender deles mesmos, doutor. Se eles abri¬rem o bico logo, menos porrada. O senhor sabe, mais do que eu, quais são as ordens de Brasília.
— Infelizmente, sei. Mas não é preciso fazê-los sofrer tan¬to antes de viajarem.
— Está certo. Vou entregá-los para o Gordo, que é mais maneiro. O Mustafá só entra em cena se eles não quiserem falar.
O Gordo voltara há alguns dias, para substituir Tarquínio. "O Mustafá é que não vai gostar de perder essa", pen¬sou Zeca.


Tiago e João Pedro estacionaram a abreviatura num canto da rua e se dirigiram para a casa de dona Mundinha, mãe de Dulcilene. Era uma casa modesta, de pau-a-pique e adobe, sem reboco e sem forro. Era, porém, acolhedora na sua simpli¬cidade.
— Os minino chegaram, Joaninha e Dulcilene — gritou Mundinha da janela para dentro da casa. — Vão entrando, Tiago e Joãozinho. As minina tão lá no fundo, fuxicando co¬mo sempre — disse ela para os dois rapazes, com um sorriso.
— Boa noite, dona Mundinha. Como tem passado a se¬nhora? — cumprimentou o japonês, entrando porta adentro, acompanhado pelo outro.
— Minino, hoje tou feliz. Meu veio chegou da mata. Vou ter uma custela pra me esquentar por uns dias. Cêis vão co¬nhecer ele, o meu Jerônimo. Ô Jerônimo, chega aqui pra co¬nhecer os minino da mineradora — gritou ela para um quarto ao lado da sala.
Não era propriamente uma sala. Era um cômodo grande com uma mesa e quatro cadeiras rústicas, um banco compri¬do de madeira encostado na parede e, no fundo, um fogão a lenha que havia enegrecido a parede com a fuligem dos anos de uso. Sobre ele crepitava uma chaleira para o café que Mun¬dinha sempre oferecia aos dois. Para esta sala davam dois quartos e, na parede detrás, havia uma porta que se abria para uma puxada, ou espécie de varanda. Depois vinha o quintal e, nos fundos deste, a "casinha", ou banheiro. O chão era de barro batido, mas tudo muito limpo e cuidado.
— Banoite, seus doutores — disse Jerônimo meio tími¬do, saindo do quarto.
— Olá, Jerônimo. Como vai você? Acho que já o conhe¬ço lá do acampamento — falou João Pedro.
— Tombém já vi o sinhô e o doutô Tiago. Pois num foi ôceis que resgataro nóis, hoje lá na mata!
— Ah, quer dizer que você estava lá quando eles pren¬deram aqueles quatro? — perguntou Tiago.
— Tava sim, sinhô.
— Ué, então, você vai contar pra nós como foi aquilo, não vai — disse João Pedro.
— Si ocêis qué qui eu conti, eu conto...
Joaninha e Dulcilene se chegaram aos seus respectivos na¬morados, e eles ficaram ali, ouvindo Jerônimo relatar a aven¬tura da Pato Bravo Três. Naquela noite não haveria arrasta-pé no Quentão, pelo menos para eles.
— E tem uma guerrilheira que está grávida, japonês — comentou Joãozinho depois, quando eles pararam no bote¬quim da Janoca para tomar uma cerveja, antes de seguirem para a mineradora.
Lúcia chorava baixinho, sentada numa cadeira da sala de interrogatório, no galpão da Casa Azul. A cabeça inclinada para a frente, o queixo tocando-lhe o peito fazia com que seus cabelos castanhos lhe encobrissem o rosto.
— Tenha calma, Lúcia — disse o Gordo, colocando a mão no ombro dela. — Você, agora, está entre amigos. Va¬mos conversar com tranquilidade, sem pressa. Está bem as¬sim? — o interrogador tentara conversar antes com ela, mas a moça não respondera quase nada. Zeca quis chamar Mustafá, mas o Gordo pediu-lhe mais um pouco de tempo. O in¬terrogatório estava recomeçando agora.
Ela levantou a cabeça e fez um sinal de assentimento.
"Meu Deus, aquele lugar horrível que eles me colocaram. Não quero voltar para aquele cubículo nunca mais", pensava ela, sem conseguir conter as lágrimas que lhe escorriam pela face.
— Eu estou aqui para ajudá-la, mas é preciso que você também colabore comigo. Podemos começar?
— Primeiro me diga o que vocês vão fazer comigo.
— Depois que você me disser o que desejo saber, você será muito bem-tratada. Fique calma, não é necessário chorar.
— Mas vocês não compreendem, estou grávida e vocês me colocaram naquele cubículo horroroso... — soluçou ela, co¬brindo o rosto com as mãos.
— Você não voltará mais para lá. Vamos lhe dar uma cama limpa para dormir. Agora, vai ser diferente, prometo.
— Está bem, pergunte o que você quiser. Mas, antes, me diga só mais uma coisa. Você conhece um sujeito chamado Simplício, João Simplício de Arruda? — disse ela, engolindo um soluço.
— Não, Lúcia, não conheço ninguém com esse nome — respondeu o Gordo calmamente, acrescentando: — Eu deve¬ria conhecê-lo?
— Ele é o pai do meu filho, e eu penso que ele poderia ser um de vocês.
— Não, não temos ninguém com esse nome. Que tal eu lhe fazer algumas perguntinhas agora?
— Está bem, pode perguntar.
— Qual é o seu nome verdadeiro? — Esta era uma per¬gunta inócua, cuja resposta ele já sabia. Entretanto, a boa téc¬nica dizia que não se devia ir com muita sede ao pote. Era preciso começar com questões inocentes, para não espantar a caça.
— Jana, me chamo Jana Maria de Barros.
— Você está grávida de quantos meses?
— Completei cinco, estou entrando no sexto mês. Você não conhece mesmo o Simplício? — Voltou ela ao assunto do pai da criança.
— Não, Jana, não conheço, e já lhe disse isso.
— Desculpa... Por favor, não se irrite por isso, mas é que saber dele é tão importante pra mim...
O Gordo observou-a calado por alguns momentos. "Era isso, então, que o Gabriel estava escondendo!", pensava ele.
— Quantos depósitos você conhece? — perguntou ele de chofre.
— Que depósitos?
— Você sabe do que estou falando. Seus amigos já fala¬ram. Vamos, quantos?
— Conheço apenas dois — disse ela, convencida de que era inútil esconder.
— Você me mostraria onde eles ficam?
— Sim, mostraria...
O interrogatório continuou por mais algum tempo. Quan¬do o Gordo saiu da sala, mandou que dessem roupas limpas para ela, lhe permitissem um banho e providenciassem uma refeição quente. Além disso, pediu que o médico da Casa Azul a examinasse.
Procurou, a seguir, o chefe da segunda seção.
— Zeca, puta que me pariu, nem te conto!
— Que porra é essa, Gordo, conta logo.
— Cara, a Lúcia tá grávida, não tá?
— Tá, e daí?
— E daí que o pai da criança é o Gabriel, porra.
— Que Gabriel, cacete? O anjo? — riu Zeca.
— Fora de brincadeira, é verdade, o Gabriel, aquele agen¬te que nós infiltramos nos Caianos, na fase da operação de inteligência, tá lembrado?
— Você tá brincando! Não pode ser, porra.
— Não pode ser, mas é. Foi por isso que ele deu aquele monte de alteração aqui, quando voltou da mata. Queria dar porrada em todo mundo. O filho da puta tava lá, comendo a subversiva, e acabou fazendo um filho nela, porra.
— Ih, cacete! Vai dar merda se não tomarmos providên¬cias urgentes. Ele está para voltar para cá a qualquer momen¬to. Brasília me comunicou isso ontem. Disse que vai fazer várias substituições aqui, e o nome do Gabriel estava rela¬cionado.
— Cacetada! Temos que sustar a vinda dele pra cá.
— Vou mandar uma mensagem urgente pra corte, ago¬ra. Deixa comigo!


— Arre égua, Silvério! Como é o nome desse doutor no¬vo de vocês que chegou esses dias? — perguntou Valquíria.
— Qual, o careca ou o outro?
— E são dois? Pensava que era só o moreno de cabelo um pouquinho grisalho.
— Esse é o João Pedro. O outro é o Tenório, que estava em Marabá e agora está aqui.
— Traz eles pra gente conhecer, Silvério. O moreno é até bonitão, mas tem uma cara de sério, vixe!
— Todos dois são boa gente. Qualquer hora dessas eu os trago aqui pra você conhecê-los. Pode deixar comigo!
— A Maria Preta foi que ficou toda ouriçada quando viu esse tal de João Pedro passar aqui na frente — gargalhou Val.
— Não estou nem aí. Meu papo com ela já acabou. Ela ficou de frescura, tirando uma de gostosa, dançou! — disse Silvério. Estavam ele e Val conversando na sala de almoço, enquanto Dora se aprontava.
— Também, né, Silvério, diz que você tava a fim de co¬mer o rabo dela?
— Quê que é isso, Val? Porra, fala baixo. Quem lhe con¬tou?
— Ih, meu nego, eu sei das coisas, né? Muito mais do que você tá pensando, Silvério. Quando é pra saber de cha¬furdo, é comigo mesmo. Por falar nisso, me diga, vocês quan¬do falam em chafurdo tão querendo dizer o quê?
— Uai, chafurdo é chafurdo, sacanagem, sujeira.
— Isso eu sei. Mas vocês falam isso com outro significa¬do. O Fábio mesmo outro dia teve aqui com o Beto e falou chafurdo de maneira diferente.
A Baleia era terrível. Não adiantava embromar.
— A gente fala "chafurdo", na gíria, quando o nosso pessoal encontra os paulistas na mata. Só isso — disse ele, en¬cerrando a conversa, pois Dora já estava pronta para eles saírem.
— Traz o careca aqui, pra chafurdar comigo, Silvério — gritou ela, quando os dois pombinhos iam saindo pela porta da rua. Silvério só ouviu a gargalhada dela.


— Ali na frente, do lado esquerdo da PA-70, tem uma clareira... Tá vendo, Jorjão? — falou Zeca, usando o inter¬fone do artilheiro, a bordo do Sapão.
— Positivo, Zeca, estou vendo. É ali que você quer ser desovado? — respondeu o piloto.
— Afirmativo. O resgate vai ser, também, naquele mes¬mo lugar. Eu aviso pro Paquera, quando chegar a hora.
O Sapão fez uma aproximação para área restrita.
— Cauda para a direita dois graus. Mantenha proa, po¬de ir baixando devagar — disse o controlador de cauda. — Esqui quase tocando... devagar, tem um toco à nossa esquer¬da, mas tá tranquilo.
— Ciente. No solo. Orienta o pessoal da Rouxinol pra desembarcar pela porta da direita, ô Gauchão! O terreno na esquerda está um pouco irregular, a porra do esqui pode es¬corregar. Vai, porra, tou segurando — falou Jorjão, manten¬do a rotação e segurando o helicóptero no coletivo.
Quando o pessoal acabou de desembarcar e se afastou uns vinte metros, o Sapão fez uma decolagem vertical e tomou o rumo de volta para Marabá.
Zeca, três outros agentes, Lúcia e Fernando ficaram ob¬servando, ao abrigo das árvores.
— Vamos! A caminho que a jornada vai ser longa — co¬mandou Zeca.
Durante todo aquele dia eles caminharam na mata. Fernan¬do indicou a localização de um depósito. Era meio-dia quando eles terminaram de desenterrar oito recipientes de alimentos.
— Tem um outro depósito perto daqui — disse Lúcia. Ela estava mais animada. Há vários dias eles a vinham tra¬tando bem. Boa comida, uma cama confortável, banhos de sol no pátio da Casa Azul tinham lhe restaurado as energias e levantado o seu espírito. "Além disso, o médico foi tão gentil. Aquelas vitaminas estão me fazendo muito bem", pensava ela.
— A quanto tempo daqui você calcula, Lucinha? — per¬guntou Zeca.
— Acho que duas ou três horas de caminhada — respon¬deu ela.
— Pessoal, vamos nos apressar então — falou Zeca, de¬pois de terem destruído o material daquele depósito.
Eram quase quatro da tarde quando concluíram o servi¬ço no local indicado por Lúcia.
— Vamos acampar e dormir aqui mesmo. Gerson, pode preparar o fogo, estou morto de fome — disse Zeca alegre¬mente.
— Se vocês quiserem, posso ajudar a preparar o enso¬pado — falou Lúcia, quase sorrindo.
— Ora, claro. Será ótimo. Afinal, um toque feminino na bóia é sempre bem-vindo.
Depois que eles comeram, ficaram ainda ali, ao pé do fo¬go, conversando amenidades.
— ... Ah, bons tempos aqueles de criança, lá na minha terra — comentou Fernando. A noite já estendera o seu man¬to por toda a floresta.
— Pessoal, o papo está bom, mas tá na hora de dormir — falou Zeca, acrescentando: — Fernando e Lúcia, vocês não vão ficar aborrecidos conosco, mas é que, por questão de se¬gurança, temos que algemar vocês.
— Tudo bem, nós compreendemos — disseram os dois.
O dia seguinte foi semelhante ao anterior. Eles apenas ter¬minaram mais cedo, por volta de duas da tarde. Quatro de¬pósitos ao todo haviam sido estourados.
Quando o último recipiente foi destruído, Zeca deu uma risada de satisfação.
— Até que enfim! — E fez um sinal para os outros três agentes.
O que atendia pelo nome de Gerson agarrou Lúcia pelo braço. Os outros dois seguraram Fernando.
— Mas o que é isso, pelo amor de Deus!? — gritou, Lú¬cia em desespero.
— Você já vai ver o que é isso, Lucinha, sua vaca filha da puta!
— Não acredito que vocês possam fazer isso conosco, de¬pois de tudo, da nossa colaboração!? — explodiu Fernando, lutando para se desvencilhar de seus algozes. Ele foi algema¬do ao galho de uma árvore.
— Eu estou grávida! Tenham piedade de mim, por favor — gritou ela em lágrimas, sendo algemada da mesma for¬ma que o outro.
— Tá grávida, né, sua putinha sem-vergonha! Quer di¬zer que o Gabriel enfiou o cacete nessa sua boceta fedorenta, né, sua cagona! É isso mesmo, o Gabriel, ou Simplício, como você queira, sua vaca subversiva!
"Meu Deus, não pode ser! Estes caras não são seres hu¬manos, são animais!", pensou Lúcia.
— O Gabriel, quem diria?!... — Zeca continuava a insultá-la, mas ela já não ouvia mais nada. Tudo tinha desa¬bado, seu cérebro entrou num torvelinho...
Não ouviu sequer o estampido do tiro que estourou os miolos de Fernando, a poucos metros dela.
A seguir, o silêncio, a escuridão, a imensidade do espa¬ço. Estava tudo terminado nesta infeliz existência.
— Enterrem os dois filhos da puta e marquem o lugar com pedras, como de costume — disse Zeca, fazendo umas anotações em sua caderneta de apontamentos.
Momentos depois, ele respondia lacónico à chamada do Paquera:
— Paquera, aqui Rouxinol. Houve chafurdo. Resgate amanhã, no local combinado. Câmbio final.

Capítulo XIV
— Esse grupamento dos Perdidos está foda, porra. Até agora, só caíram dois de lá — disse Gil, acabando de marcar no quadro mais dois X em vermelho, sobre as fotos de Eliza Viana, a Marlene, e de Orlando Moreira, o Márcio. Na sema¬na anterior ele fizera o mesmo em relação a Rosalindo da Sil¬va, o Fernando, e a Jana Maria de Barros, a Lúcia.
— O negócio é a gente lançar mais patrulhas nos Perdi¬dos. Podemos tirar uma dos Caianos, o quê que tu achas? — perguntou Tomé.
— Parece que é uma boa ideia. Além disso, veja, tudo in¬dica que os oito restantes dos Caianos estão se deslocando pa¬ra o sul. Eles já assaltaram dois sítios nesta direção — disse Gil, mostrando com a ponta do dedo indicador o local no mapa.
— Eles devem estar no desespero, depois que estouramos os depósitos de boca deles, tchê. Os caras agora vão fazer qual¬quer coisa para sobreviver. Guerra é guerra.
— Porra, a merda é que a operação psicológica, que ti¬nha começado tão bem, parou de dar resultados.
— Mas, se em um mês, quatro se entregaram, acho que devemos continuar insistindo com o "boca-de-ferro", tchê.
— Porra, Tomé, onde você andava ontem à noite, hein?
— Ué, por que estás perguntando isso, tchê? Fui dar umas voltas, estive lá nas pombas.
— Ah, então está explicado. Você não ouviu o noticiá¬rio da Tirana ontem. A porra da rádio noticiou que "as for¬ças da repressão" estão eliminando os guerrilheiros que se entregaram. Depois exortaram os "bravos guerrilheiros do Araguaia" a não caírem no canto da sereia. Filhos da puta! Só queria saber como eles estão obtendo as informações dos acontecimentos daqui.
— Porra, tchê, logo, logo os subversivos vão ficar sabendo disso e, aí, podemos aposentar o "boca-de-ferro", mano velho.
— O pior é que é verdade! E esse babaca do Clementino não descobre a fonte que está enviando informação para a Albânia. A portadora de Brasília também não está resolven¬do nada. É só você sintonizar bem que a Tirana entra ra¬chando.
— E o tal Clementino, todo pilchado de entendido, não entende de nada! Bá, tchê, que merda!


A patrulha Capivara Um se posicionou na borda nordes¬te do sítio da Jipioca. As ordens que Pedro Pinga recebera eram para ficar ali aguardando.
— A Pato Bravo Três está no rastro de um grupo que está se deslocando nesta direção — explicara o Dr. Elesbão, mostrando o mapa. — Tudo indica que os subversivos estão se dirigindo para o sítio da Jipioca. Vocês vão ficar lá na es-pera. Quando eles chegarem ao sítio, vocês não devem fazer nada. E só esperar com calma, pois a Pato Bravo está umas duas horas atrás deles. Apenas, quando a outra patrulha che¬gar, vindo mais ou menos de sudoeste, vocês, em conjunto, vão atacar, fechando o cerco nos subversivos, certo? O sinal convencionado para o ataque é um tiro para cima, que vai ser dado pela Pato Bravo quando ela entrar em posição. Ela está ciente do posicionamento de vocês, mas é bom tomar cuida-do com o fogo cruzado, certo, Pedro Pinga?
— Certo, doutor — respondera ele, o chefe da Capivara Um.
Agora, estavam ali, na espreita. Ao lado direito dele, o mateiro e guia Chicão, Diabo Louro e Gervásio. Do lado esquerdo, Bonca e Trindade. Lá no tapiri, eles não tinham vis¬to ninguém ainda, mas devia haver gente, pois saía uma fu¬maça do fogo atrás da casa. "O doutor falou que era pra ter paciência, diacho!", pensou Pedro Pinga.
— Óia lá, só Pedro, tá vindo gente ali — cochichou Chi¬cão, cutucando o outro.
Pedro Pinga fez sinal de silêncio, e eles ficaram obser¬vando por entre o arvoredo. Os paulistas foram chegando de¬vagar, saindo da mata e indo para os fundos da palhoça.
De onde eles estavam, escutou-se o vozerio.
— Aqui não! Cêis pode pega o caminho de vorta — gri¬tou uma voz de homem.
— Que voltar coisa nenhuma, seu velho besta. Queremos comida, e você vai dar mantimento pra nós, por bem ou por mal, seu cabra.
— Que é isso, seu Zenóbio! Num to lhe cunhecendo não!
— Agora a história é outra, seu Raimundo!
O velho correu para o pátio e pegou uma foice que esta¬va sobre um jirau. De sua posição, Pedro Pinga espreitava a cena.
— Não faça isso, Raimundo! — gritou uma voz de mu¬lher.
— Cêis vão simbora daqui, seus paulista, qui eu num que¬ro cumplicação cum as tropa... — O velho não acabou de fa¬lar. Um tiro de chumbo de caça arrebentou-lhe o peito, e ele caiu para trás, com uma golfada de sangue.
— Valha-me Deus! — gritou a mulher, correndo e se ati¬rando ao chão ao lado do velho, chorando desesperada.
Dois guerrilheiros se aproximaram do velho e, de cóco¬ras, examinaram a vítima.
— Está morto — disse um deles.
— Vamos abrir uma cova, enterrar o velho e pegar o que pudermos. Depois vamos voltar para a mata. Não estou gos¬tando deste lugar — disse o que atendia pelo nome de Zenóbio.
Eles começaram a cavar a cova. Á mulher estava pros¬trada num canto do terreiro, chorando baixo e se lamentan¬do. A Capivara Um observava.
De súbito, um deles gritou:
— Tem gente vindo aí!
Os paulistas correram. Ouviu-se um tiro, e depois foi um pandemônio. Gritos e fuzilaria por todos os lados.
Quando houve uma meia trégua, alguém berrou alto:
— Cerquem a casa, ainda tem gente lá dentro.
As duas patrulhas saíram de suas posições e fecharam o cerco ao redor da palhoça.
— Quem estiver na casa que saia com as mãos na cabe¬ça, se não quiser morrer — esbravejou Matias, o chefe da Pa¬to Bravo Três, fazendo sinal para Pedro Pinga avançar mais com seus homens.
Diabo Louro deu uma rajada com seu fuzil-metralhadora na janela da casa. Um pano branco foi agitado na ponta de um cabo de enxada.
— Saiam com as mãos na cabeça! — repetiu Matias. Três paulistas saíram do tapiri com as mãos para cima.
— Amarrem os três! Socó e Marinaldo, vasculhem a ca¬sa pra ver se tem mais alguém. Cuidado! — recomendou o chefe da Pato Bravo.
Cinco cadáveres jaziam no terreiro do sítio da Jipioca. O velho Raimundo, morto pelos guerrilheiros. Três paulistas. E a mulher, atingida por uma bala perdida. Dos oito rema¬nescentes do grupo, dois tinham escapado, fugindo mata aden¬tro.
Estava próxima a hora do contato com o Paquera. Era quase duas horas da tarde.
Às três e quarenta, um Sapão pousava no Jipioca. A bordo vinha o Gordo para fazer a identificação dos guerrilheiros mortos.


— Porra, doutor, eu vou dizer pro senhor, eu criei ódio des¬ses caras — dizia Diabo Louro para João Pedro, Tiago e Fábio, no pátio de estacionamento de aeronaves da mineradora. A pa¬trulha Capivara Um acabara de desembarcar de um Sapão. Um cheiro nauseabundo exalava de seus corpos. Era suor, sujeira, mato, terra, tudo misturado. — Quando atirei e vi o desgraça¬do subir no ar e cair mortinho, trespassado pela bala do meu fuzil, eu vou dizer, tive um orgasmo, por Deus do céu que tive!
"Este cara está desvairado, está virando um animal, por¬ra. Ele tem que ser retirado da área com urgência. Precisa de um tratamento psiquiátrico, não é possível!", pensava João Pedro.
Logo depois chegava outro Sapão com a Pato Bravo Três. A cena foi semelhante, apenas mudou um pouco porque Tia¬go arrastou o Gordo para a sala de operações da minera¬dora e mandou vir uma água gelada para o companheiro de farda.
— Quem são os mortos e os prisioneiros? — perguntou o japonês.
— Os mortos, deixe-me ver — falou o Gordo consultan¬do sua caderneta de anotações: — são António Cambraia, o Tonho, Guilherme Ribeiro, o Alfredo, e Elmo Coqueiro, o Elias. Os prisioneiros são Hélio Marquez, o Luís, Nelson Prata, o Miguel, e Tobias Padilha, o Leopoldo.
— Porra, que carnificina hoje, hein? — falou Fábio.
— Hoje foi foda. O Gil é que deve estar vibrando lá na Casa Azul, embora a ideia de fechar o cerco com duas patru¬lhas tenha sido do Tomé — comentou o Gordo.
— Porra, porra, caralho, quê que vocês tão fofocando aí? — disse Jorjão entrando na sala. — Quero toalha, sabo¬nete cheiroso e duas camas, pra mim e pro Gordo? Não trou¬xemos nada, só a roupa do corpo, porra,
— Pode deixar, Dr. Jorge, já estamos providenciando tu¬do — falou Vitrôncio.
— Hoje não é dia de Quentão? Então, nós vamos pro Vietinam tomar cerveja. O Gordo não, vai trabalhar, né Gor¬ducho? Tou falando com você, porra, responde!
— Oh, desculpe, Jorjão, estava distraído. Realmente, vo¬cês vão pra putaria e eu vou trabalhar na agropecuária, pra fazer os passarinhos abrirem o bico. Enquanto vocês fazem as sacanagens de vocês lá, eu faço as minhas aqui — disse, rindo.


— Os filhos da puta do Zenóbio e do Darci conseguiram escapar, cacete! — disse Gil para Oran, na Casa Azul.
— Pegamos seis numa porrada só, e você ainda está re¬clamando, Gil?
— Não, doutor, não estou reclamando. Estou até satis¬feito, mas esse tal de Zenóbio tinha que ter caído. De qual¬quer forma, está pra lá de bom. Desbaratamos quase todo o grupamento B dos Caianos. Quer dizer, estamos em março, com cinco meses de operação de combate, caíram vinte e dois subversivos, quase a metade. Nessa toada, com mais uns seis meses a gente liquida a fatura.
— Acho bom não ser tão otimista assim, pra depois não se decepcionar e ficar dando chilique aí, feito uma mu¬lher que eu tinha — falou Oran, rindo e gozando da cara do outro. Ele também estava satisfeito com os resultados da missão.


— Porra, porra e porra! Que boca, hein, doutor? Pare¬ce que o senhor estava adivinhando — disse Gil. O mês de mar¬ço terminara, abril estava quase no fim e não caíra mais nenhum paulista.
— Não falei? Vamos ter calma. Temos que repensar os nossos planos táticos — falou Oran com o cenho fran¬zido.
— Temos que arranjar um jeito de desentocar os sub¬versivos. As patrulhas estão mais perdidas do que cego em ti¬roteio, porra. Acham um rastro, a gente se anima, depois vem a notícia de que o rastro foi perdido. Tá danado! — dis¬se Gil.
— Falaste uma coisa interessante aí, tchê. Tiroteio! É isso, tchê!
— É isso o quê, Tomé? Desembucha logo, fala, cacete! — disse Gil, ansioso. Ele sabia que o gaúcho sempre tinha uma boa idéia.
— Pode falar, Tomé, estamos escutando — reforçou Oran.
— Vejam, sabemos, mais ou menos, onde os subversi¬vos se encontram. Quero dizer, olhando para o mapa, temos uma ideia das áreas prováveis. É claro que na prática, para as patrulhas, é como procurar agulha em palheiro. O Gil fa¬lou em tiroteio, daí me surgiu uma idéia. E se nós batermos essas áreas com granadas lançadas do Sapão?!
— Não dá pra fazer isso — precipitou-se em dizer o che¬fe de operações. — Se você sair lançando granada na mata, pode matar subversivo, mas vai matar também uma porrada de animais e, provavelmente, vai acertar gente inocente, coIhedores de castanha, caçadores e outras pessoas.
— Gil, não estou falando de granada de combate. Não! Estou falando de granada de efeito moral, sem o invólucro de ferro, só com a capa de plástico...
— Pode parar, já entendi, porra. Afinal, sou de artilha¬ria e sei do que você está falando — disse Gil, irritando-se ao perceber que o outro estava tentando lhe dar aula sobre gra¬nadas. — Mas aí do que adiantariam as granadas de efeito moral? Não vai matar nem passarinho, porra.
— Mas se foi você mesmo que disse que temos de arran¬jar um jeito de desentocar os subversivos — interferiu Oran. — O Tomé tem razão. A ideia é boa e pode funcionar. Você não percebe?
Gil desconfiou que estava fazendo papel de idiota e ten¬tou remediar:
— Mas, é claro, doutor. Com a barulheira das granadas explodindo por todos os lados, eles vão sair correndo e, aí, nós os pegamos de jeito.
— É mais ou menos isso. Ao saírem correndo, eles não vão poder pensar em esconder os rastros. Logo a seguir, nós colocamos as patrulhas nos calcanhares deles — complemen¬tou Tomé.
— Então, está acertado, não é, Dr. Oran? Podemos pro¬gramar para lançar esta operação granada logo, amanhã — disse Gil.
— Creio que ainda não. Vou ter que solicitar a Brasília o material. O Elesbão, em Xambioá, tem algumas granadas de efeito moral, mas não em quantidade suficiente. Ele tem muitas de combate, mas estas não têm servido pra nada. Os chefes de patrulha levam sempre algumas, mas nunca as usa¬ram.


— Égua do macho! Que história é essa que ocê tá con¬tando, aí, Armandino? — perguntou Valquíria.
— É a notícia que tá correndo. Diz que os avião, esses que ês chama de Sapão, vai passando por riba das árvores, na mata, jogando bomba a torto e a dereito, e elas papocando pra todo lado, os bicho gritando, macaco, maritaca, tudo. A maior zueira. Cê pricisava de vê os pessoal que viero da mata contando, dona Val.
— Arre égua! Quer dizer que agora eles estão jogando bomba? Minino, isso é lá coisa que se faça? Intempo d'ua bom¬ba dessa matá coureiro ou outro quarqué trabaiadô, Deus me defenda! — comentou Paulo Boto.
— E os bicho!? Cêis num acha que já deve de tê uma ruma de bicho morto lá? Esses home devia de tê pena ao meno dos bichinho! Ês qué caçá paulista, tá certo. Mais mata os bichinho!? Isso é mardade deles.
Zé Geraldo estava só escutando a conversa. Logo depois, levantou-se discretamente e foi embora. "Hoje, vou sair para pescar", pensava ele.
Nem bem Zé Geraldo havia virado a esquina, a camione¬ta da mineradora parou próximo da calçada da Baleia. Dela desceram Silvério e Beto, uma vez que o último estava de na¬morico com Dagmar.
— Nossa, mas que cara de enterro é essa, pessoal? — disse Silvério, notando as fisionomias carregadas dos frequentado¬res da porta da Baleia.
— Tá todo mundo comentando que vocês estão jogan¬do bomba na mata. Que história é essa, ô Silvério? — disse Val que não estava séria, mas também não estava sorrindo, como era de seu feitio.
— Que bomba nada, quem falou isso?
— Tá todo o pessoal que veio da mata falando. Diz que já morreu bicho a valer e que pode tá morrendo até gente com as bomba.
— Ah, meu Deus do céu! Esse pessoal inventa cada uma. Que bomba coisa nenhuma, Val. Nós jogamos foram uns tra¬ques, mais fracos do que bombinha de São João, só. São umas granadas de plástico, só pra assustar o povo da mata — disse Silvério. Todavia, o estrago já estava feito. Ia levar algum tem¬po para o dito ficar pelo não-dito.
A plateia olhou para os dois aviadores desconfiada. Be¬to deu de ombros, e eles entraram para falar com Dora e Dag.


— Porra, porra, Gil, tá pegando mal. As informações que recebi do meu pessoal, em Xambioá, dizem que a popu¬lação está revoltada com a operação granada, porra — disse Jorjão.
Oran, que ia entrando na sala, perguntou:
— Como é o negócio, Jorge? Só peguei o fim da conver¬sa. Dá pra repetir?
Jorjão contou, então, tudo que ficara sabendo a respeito da repercussão do lançamento das granadas.
— Foda-se o que essa gente está pensando — disse Gií.
— Não, companheiro, não é bem assim, não. A infor¬mação do Jorge é importante. Não podemos correr o risco de ter a população novamente contra nós. Vamos suspender ime¬diatamente a operação granada. É uma ordem, e não se fala mais nisso — determinou Oran.
— Certo, chefe. Ordem dá quem pode e cumpre quem tem cabeça — disse Gil, citando o velho e conhecido chavão da caserna.
— De qualquer forma, tivemos alguns resultados. Várias patrulhas, nos Perdidos e no Saranzal, estão seguindo rastros frescos — comentou Tomé.
— Tá na hora de ouvir a Tirana. Vamos lá, Gil, não de¬sanime — disse Oran.
O rádio foi ligado.
"... e numa atitude covarde as forças da repressão estão lançando potentes bombas, indiscriminadamente, nas selvas do Araguaia. Inúmeros animais estão sendo mortos, bem co¬mo humildes trabalhadores que tiram o seu sustento da flo-resta. Brasileiros, uni-vos contra esse governo de vândalos e corruptos..."
— Puta que me pariu! Não é possível! Essa merda de rá¬dio é foda. Como é que pode!?
— Não adianta esbravejar, Gil. Já estava esperando por isso. A Tirana não perde nada do que acontece aqui. O jeito é ir convivendo com isso e torcer para descobrir quem é o in¬formante.


Eram três e pouco da tarde. A patrulha Jabuti Dois esta¬va no rastro de um grupo que, segundo o mateiro, devia ser de, pelo menos, quatro elementos. Eles pararam às margens de um igarapé, enquanto Nonato analisava os sinais da pas-sagem dos paulistas.
— Me esperem aqui, estou louco pra dar uma cagada — disse Tião, o chefe da Jabuti Dois, dirigindo-se para trás de uma touceira de bambu nativo.
Ele abaixou as calças e ficou de cócoras, fazendo as suas necessidades. De repente, notou algo que rebrilhava, no meio do mato rasteiro à sua frente. "Diabos! O que será aquilo?", perguntou-se. Quando acabou o que fora fazer, foi ver o objeto que lhe chamara a atenção. Era uma tampa de lata, des¬sas de leite em pó. Tião olhou em volta e descobriu, então, para seu espanto, que, logo ali, havia uma escavação no ter¬reno feita recentemente, pois a terra ainda estava solta na bei¬rada do buraco. "Isto deve ser um dos tais depósitos", pensou ele, e voltou para onde estavam os outros.
— ...logo ali, perto daquele bambuzal — contou Tião para os seus homens.
— Vamos escavar em volta do local, quem sabe a gente descobre mais coisa!? — falou Batista.
— Tá legal, não custa nada tentar. Depois, tá quase na hora de parar pra acampar. A gente fica mesmo por aqui.
Começaram a escavar com suas ferramentas de sapa. Não demorou muito e descobriram um recipiente, depois outro e mais outro, até que todo o lote apareceu. Era realmente um depósito de alimentos.
— E agora, o que a gente faz com isso tudo? Levar não dá, é peso demais — disse Bapu, um soldado alto e forte, com os olhos um tanto arregalados.
— Amanhã, fazemos contato com o Paquera e pedimos instruções a respeito — decidiu Tião.
A partir daí, vários outros depósitos passaram a ser des¬cobertos pelas próprias patrulhas de forma semelhante. An¬tes elas não estavam alertadas sobre o assunto. A Jabuti Dois foi a pioneira.
Mais um ensinamento da experiência prática.

Capítulo XV

— Pois é, doutô Tiago, tá se vendo que o sinhô é home de respeito, e esse seu namoro cum minha fia Dulcilene, faço gosto! — disse Jerônimo.
— Ô Jerônimo, pare com isso, cê vai deixá o Tiago sem jeito, home — falou Mundinha. — Num tá vendo que o mo¬ço tá ficando sem graça!?
— Tudo bem, seu Jerônimo, foi bom o senhor falar nis¬so. Já falei pra Dulcilene, e agora falo pro senhor. Tenho o maior respeito por sua filha, mas, por favor, ainda é muito cedo para se pensar em coisas mais sérias. O senhor sabe que tanto eu como todo o pessoal da mineradora estamos aqui ape¬nas passando uma chuva.
— Tá certo, gente, tou compreendendo. Mais já pensou, Mundinha, nóis tê uns netinho dos oinho puxado, ah, ah, ah, ah... — riu Jerônimo. Ele, agora, sentia-se mais à vontade com Tiago e João Pedro. Sempre que voltava da mata para gozar seus dois ou três dias de folga, os doutores iam para a casa dele saber das novidades, e eles ficavam até altas horas con¬versando.
— Esse Jerônimo... — disse Mundinha, balançando a ca¬beça em sinal de desaprovação. — Num tá vendo, home, que os minino tão só pricisado de um carinho de famia — com¬pletou ela com sabedoria.
— Mas, seu Jerônimo, mudando de assunto, como foi a história daquele soldado que chegou ontem amarrado? Ele era da sua patrulha, não era? — perguntou João Pedro, pe¬gando a mão de Joaninha.
— Vixe Maria, aquilo foi muito feio, seus doutô! Vou contá pra ocêis, tintim por tintim. Espera só nóis tomá o café da Mundinha, sinão nóis garra a cunversá, o café esfria e adispois ela briga cumigo, né Mundinha?
— É isso mesmo, tem que tê inducação. Premero os mi¬nino tem que tomá o café deles quentinho, dispois cêis pode cunversá quanto quisé — respondeu ela risonha.
Depois do café, Jerônimo acendeu um cigarro, no que foi acompanhado por Tiago e João Pedro, e começou:
— Nóis tava tudo escondido no mato, na tocaia duns pau¬lista que o Ferreira, o chefe da patruia, disse que ia passá ali. E nóis tão lá, esperando, esperando e nada. Esperemo pra mais de duas hora, quetinho, e nada. Quando é di repente um tar de sordado Bapu, ês trata ele assim, num sabe, alevantou do mato com os zóio arregalado e danou de dá tiro pra todo la¬do. Nóis se abaixemo cum medo de arguma bala acertá ni nóis, morrendo de medo. E foi aquele deus-nos-acuda! Aí, o Ferrera gritou, "esse fio da puta vai acaba matando um de nóis". Um outro sordado, um tar de Pirata, falou, "intão, vou dá um tiro nesse fio du'a égua!" O Ferrera ficou brabo e gritou traveis, "ninguém atira nele, quem atira morre tombem!"
"Aí, um sordado piquitinho, chamado de Rineu, oh bi¬chinho valente! Os doutô pricisava de vê! O Rineu foi raste¬jando por ditrais do tar de Bapu e, quando nóis demo fé, ele sartô no cangote do Bapu! E deu uma porrada no escuitadô de carimbó do outro, qui o tar tontiou. Aí, o Rineu tomou a arma dele. Foi a sarvação, seus doutô!
"O Ferreira mais os otro correro, garraro o tar e marraro ele. Agora, cêis pricisava de vê, o Bapu tava qui fazia pe¬na, variando, doido, doido — finalizou Jerônimo.
— Tombém, és pega esses minino novo, sem apreparo, e bota ês de sordado! Os pobre num tem cabeça pra isso, é tudo de miolo mole, cêis num acha? -- falou Mundinha.
De fato, o rapaz tinha sofrido um colapso nervoso agudo, devido à tensão e à fadiga. Foi encaminhado de volta a Manaus, para o hospital e ficou sob cuidado psiquiátrico por um longo período de tempo, até se reajustar novamente.
De volta para a mineradora, Tiago comentou com João Pedro:
— Já pensou que merda se o tal soldado mata um com¬panheiro?
— Ou se o cara resolve aloprar dentro do helicóptero?
— Porra, vira essa boca pra lá, Joãozinho!


O caminhão vinha devagar pela estrada esburacada. Es¬tava pesado, com duas enormes toras de mogno. Poeira mui¬ta por todos os lados, o caminhoneiro, um mulato forte, de seus vinte e poucos anos, ia guiando tranqüilo. Não adianta¬va ter pressa. Ele chegaria ao entroncamento com a Transamazônica quando Deus quisesse.
De longe avistou as duas figuras caminhando sob o sol quente, no meio daquela poeirada. Quando chegou mais per¬to, viu que era um casal de camponeses. O homem virou o rosto para trás, e o motorista observou que o sujeito era en¬trado em anos; a barba grande e o chapéu de palha não per¬mitiam que avaliasse com precisão. O indivíduo era baixo, e a mulher parecia mais alta que o homem.
Sem que eles fizessem qualquer sinal, o jovem parou o caminhão.
— Querem uma carona?
A mulher fez um sinal afirmativo com a cabeça. O ho¬mem não demonstrou qualquer sentimento. A mulher entrou na boleia, e o homem a seguiu.
— Vocês estão indo pra onde? — perguntou o rapaz.
— Pra Altamira — respondeu a mulher.
— Vou só até Marabá.
— Pra nós está bom — disse ela.
— O senhor aí é seu marido? — perguntou o rapaz, que já estava arrependido por ter dado a carona. "Pois se eu que¬ria companhia para conversar, dancei. O sujeito, até agora, não disse uma palavra. A mulher só responde a saca-rolha. Que fria!", pensou.
— É, é meu marido sim.
— Diz aí pra ele que um bate-papo não faz mal não, dona.
— Ele é mudo. E surdo também — disse ela.
— Oh, me perdoe, eu não percebi, dona.
— Não se apoquente.
Daí para a frente a viagem transcorreu sem qualquer ou¬tro evento digno de consideração. Na travessia da balsa para cruzar o rio Itacaiúnas, o motorista perguntou:
— Vocês não querem descer pra esticar as pernas?
— Não, obrigada, preferimos ficar aqui mesmo — disse a mulher.
Eles acabaram de atravessar, o caminhoneiro acionou no¬vamente o motor, e o caminhão subiu rangendo a rampa na barranca do rio. Em Marabá, o casal desceu.
— Muito obrigada pela carona, você foi muito gentil — falou a mulher.
— Não tem de quê, dona. Té logo — disse o jovem. "Que mulher mais esquisita! Parece matuta, mas tem uma fala di¬ferente. É capaz de ser da cidade, quem sabe até de São Pau¬lo", pensou, dando de ombros.


— Ah, ah, ah, ah, ah, ah. Grande piada, ô Gordo! — falou Gil, rindo a bandeiras despregadas. Ele estava feliz.
— Vamos ao trabalho, agora — disse Oran. — Temos que conferir esses dados para mostrar pra essa merda de co¬mitiva que está vindo de Brasília. Esses caras só vêm aqui pra encher o saco.
— Desculpe, doutor, mas hoje estou rindo à toa. Recebi a notícia de que vou ser promovido no mês que vem. E, ainda por cima, esse informe, que não foi confirmado ainda, de que a Jabuti Três fez dois prisioneiros no Saranzal. Tá bom demais!
— Estou vendo. Estes dois últimos meses, maio e junho, foram ótimos. Olha só o quadro do Gil cheio de cruzinhas — falou o Gordo, examinando a ordem de batalha dos guer¬rilheiros. — Dez em dois meses, se for confirmada a prisão desses dois de hoje.
— Deve ser isso mesmo. Vamos conferir, eu vou lendo a minha relação, e você verifica se bate com o quadro — disse Gil. — Maio, grupamento A dos Perdidos, Carlos e Tânia, respectivamente, Guilherme Lemos e Luiza Garcia, que fo¬ram presos e já viajaram. No grupo C do Saranzal, Teodoro da Costa, o Sampaio, Dinaelsa da Silva Palmeira, a Iracema, e Lúcio Pequeno, o Celso. Confere?
— Correto. Cante agora o mês de junho.
— Deixe-me ver... nos Perdidos, Demerval de Souza, o Demétrio, Adriano Facini, o Gilberto, e Libero Boderoni, o Juliano. Certo?
— É isso aí. Esses oito mais os dois de hoje que o Paque¬ra não conseguiu copiar direito, dá um total de dez. Média cin¬co, você passou raspando, mas passou — brincou o Gordo.
— Isso, mais um total de quarenta e um depósitos estou¬rados, sendo dezenove de alimentos que são os principais, de¬monstra que a operação está indo muito-bem-obrigado — disse Gil.
— Olá, Jorjão! — Oran saudou o aviador que adentra¬va a sala. — Como é que foi aquela história do Paquera, no Saranzal? Você já apurou?
— Porra, porra, foi só uma falha de comunicação. O pi¬loto disse que estava falando com a patrulha e, de repente, ouviu uns gritos. Logo depois, a transmissão da Jabuti Três sumiu. Ele chamou várias vezes, mas não conseguiu mais contato. O resto vocês já sabem, né? — falou Jorge.
— Coloquei na programação aérea de amanhã um Sa¬pão para sair daqui com o Mustafá, resgatar a Jabuti Três com os possíveis prisioneiros, levar os subversivos para Bacaba, e verificar o que, de fato, aconteceu — disse Gil.
— Tudo bem, amanhã vai ficar tudo esclarecido — fa¬lou Oran.
No dia seguinte, através do rádio do Sapão, Mustafá in¬formou que havia um prisioneiro e um morto como resultado do chafurdo da Jabuti Três, acrescentando que ambos, o pri¬sioneiro e o cadáver, seriam transportados para Bacaba. Dis¬se ainda que os demais detalhes ele daria pessoalmente quando retornasse da missão. O operador de rádio da Casa Azul, na¬turalmente, não questionou o Dr. Mustafá.
— Porra, esse Mustafá é sempre assim, cheio de misté¬rios. Em vez de falar logo, ele fica amoitando a informação para criar expectativa. É um tabacudo! — disse Tarquínio, que chegara dois dias antes para substituir o Gordo.
Às duas da tarde, um Sapão pilotado por João Pedro e Silvério chegava de volta à Casa Azul, trazendo o Dr. Mustafá.
— Porra, Mustafá, que mistério é esse, conta logo o que foi que houve — disse Gil.
— Cacete, os caras da Jabuti Três fizeram os dois pri¬sioneiros. Amarraram os dois e ficaram aguardando, na cla¬reira, o horário de contato com o Paquera. Quando o chefe da patrulha estava falando no rádio, o quê que acontece? Os babacas não tinham amarrado um deles direito, uma mulher, e ela conseguiu se desvencilhar das cordas e correr. O chefe gritou, largou o rádio, e um soldado atirou. Resultado, ma¬tou a mulher, mas, quando eles tentaram falar de novo com o Paquera, o rádio estava danificado.
— Que merda. E aí, quem são eles, o prisioneiro e a mu¬lher que eles esfriaram?
— O preso é o Olavo, e a mulher é a Sueli. Depois de identificada, mandei enterrá-la no mato, do outro lado da pista de pouso de Bacaba.
— Porra, tem alguma merda errada nisso, a Sueli é do grupamento dos Perdidos. Como é que ela foi encontrada no Saranzal? — perguntou Gil.
— Sei lá, cacete. Mas era ela.
O chefe de operações da Casa Azul dirigiu-se para o qua¬dro e conferiu.
— Olavo, ou Gualberto de Miranda... Sueli, ou Walquíria Correia... Isto não tá batendo bem, porra. Ô Mustafá, você não vai me levar a mal, mas tem algo errado nisso. Acho me¬lhor mandar outra pessoa a Bacaba pra conferir de novo a identidade dessa subversiva.
— Cacete, tenho certeza. E a mulher já tá debaixo de se¬te palmos.
— Não tem importância, vamos mandar desenterrar o presunto e ter certeza da identidade. Vou falar com o Jorjão pra mandar um Sapão a Bacaba agora.
— O Jorjão não está aí. Foi pra Xambioá passar uns dias. Quem tá aí é o João Pedro, chegou hoje — disse Mustafá, meio sem graça.
Uma hora depois o Sapão pousava na pista de Bacaba, com Tarquínio e uma equipe de agentes. Eles se dirigiram pa¬ra o local onde a mulher fora enterrada. Alguns membros da tripulação os acompanharam. Ela havia levado um tiro que entrara abaixo da axila direita e saíra na altura do seio esquer¬do. Fora enterrada nua. Tarquínio examinou o cadáver, co¬lheu impressões digitais e mandou que fosse enterrado novamente.
"Que barbaridade!", pensou João Pedro.
De volta à Casa Azul, Tarquínio disse para Gil:
— Porra, o Mustafá se enganou. Não é a Sueli. Para di¬rimir qualquer dúvida, eu trouxe as impressões digitais do pre¬sunto. É a Célia da Costa, a Vera.
Sueli, juntamente com Alberto, ambos no grupamento A dos Perdidos, caiu prisioneira realmente, mas só no mês se¬guinte, julho de 1974.


— Seu filho da puta, comigo você fala é na marra! — disse Mustafá, desferindo uma porrada com a palmatória na mão do prisioneiro. Alberto já levara uns vinte bolos daquele em cada palma. Elas estavam vermelhas, inchadas e cheias de bolhas. O preso era obrigado a ficar com a mão aberta em frente ao rosto. Caso ele a retirasse, a pancada vinha do mes¬mo jeito, e atingiria a cara do indivíduo, fazendo obviamente muito mais estrago. Alberto estava quase desfalecido.
— Coloquem a maquininha nos colhões dele. Quero ver se este puto vai continuar de bico fechado — disse Mustafá.
Uma espécie de quebra-nozes foi posto em seus testículos.
— Por favor... favor... não, não façam isso... — supli¬cou ele, reunindo suas últimas forças. O agente começou a apertar. Alberto desmaiou.
— Levem o filho da puta prô cubículo — comandou Mustafá.
O paulista só iria voltar a si horas depois, o corpo ba¬nhado em suor. Um ruído ensurdecedor fazia doer seus tímpanos. Uma lufada de ar gelado começava a inundar o am¬biente.
E assim por horas, dias, ele não sabia quanto. Num cer¬to momento o rapaz teve consciência de que estava tudo em silêncio. Tentou articular os dedos da mão. Primeiro a direi¬ta. Uma dor dilacerante obrigou-o a interromper a tentativa.
De súbito, o ambiente inundou-se de luz. A porta fora aberta.
— Coloquem-no embaixo do chuveiro — disse uma voz que não era a do que se chamava Mustafá. Dois sujeitos o le¬vantaram do chão e o levaram para um banheiro. Uma água tépida começou a cair sobre o seu corpo. Depois um jato de ducha fria, bem fria. Alberto despertou de seu estupor.
"Meu Deus, onde estou?" Foi o seu primeiro pensamen¬to lúcido, ou quase lúcido. A seguir, foi se lembrando de tu¬do. A água parou de cair. Alguém deu-lhe uma toalha. Ajudaram-no, inclusive, a se enxugar e a se vestir. "Será que vão parar com as sessões de tortura?", pensou Alberto. "Mais uma daquelas, não resistirei. Mas, afinal, de que adianta vi¬ver? Melhor morrer com dignidade a me submeter à vontade daqueles carrascos."
— Podem levá-lo — disse Tarquínio.
Alberto foi colocado numa sala onde havia apenas uma mesa e duas cadeiras. Sentou-se. Deram lhe uma caneca com café quente. Ele bebeu devagar. O líquido cálido reanimou-o. Ficou à espera do que viria a seguir. Vinte ou trinta minutos depois, ou seja lá que tempo foi, pouco importava, um sujeito entrou na sala e sentou na outra cadeira à sua frente. Eles se observaram por algum tempo. O outro sorriu. "Esse não tem, ou parece que não tem, cara de torturador", pensou Alberto.
— Como é, está melhor? — disse Tarquínio, iniciando a aproximação para o interrogatório.
— ....
— Estou aqui como amigo. Mas, se você não quiser fa¬lar, vou embora. Os outros virão me substituir. Você é quem decide. Será como você achar melhor.
— ....
— Que tal um cigarro? — falou Tarquínio, oferecendo ao prisioneiro o maço.
— Não fumo — respondeu Alberto finalmente. Estava quebrada a barreira, e Tarquínio sabia disso.
Aos poucos, o preso foi ficando mais loquaz e cordato. Após uns quarenta minutos de interrogatório, Tarquínio to¬cou no assunto dos depósitos.
— Os depósitos que conheço são de remédios e material cirúrgico — falou Alberto.
A Casa Azul não estava mais dando tanto valor a esse tipo de depósito. Outro prisioneiro, anteriormente, é que alertara para a inutilidade dos remédios e dos instrumentos, que se destinavam, principalmente, à conquista da popula¬ção local. Como os guerrilheiros haviam perdido, há mui¬to, o apoio dos nativos, tal material perdera quase toda a fi¬nalidade.
Mas havia algo mais que Tarquínio desejava saber.
— Quais as notícias que você tem do Paulo Paraná?
— Não sei nada sobre ele.
Tarquínio percebeu o leve rebrilhar dos olhos do outro à menção do nome do chefe guerrilheiro. "Ele tá mentindo", pensou.
— Pois vou lhe dizer, enquanto você estava aqui ele foi morto nos Perdidos.
— Impossível! — disse Alberto, caindo na armadilha.
— Por que isso é impossível?
— ....
— Vamos, responda. Ou talvez você queira falar disso com o Mustafá, hein?
Alberto também percebeu que caíra na armadilha. Ago¬ra, ou ele contava, ou a tortura iria recomeçar.
— Impossível porque ele abandonou a região.
— Como?
— Ele e Olga saíram disfarçados de camponeses, pela PA-70. O Velho se fazendo passar por mudo e ela por uma matuta, papel que a Velha tinha dificuldade para interpretar. É só o que sei. Não tive mais notícias deles — disse Alberto ou Paulo Rocha.
Pouco depois, Tarquínio encerrava o interrogatório. Vários agentes foram colocados em campo, e, após in¬vestigações cuidadosas, descobriu-se o motorista que dera carona para o casal de falsos camponeses. Ao mesmo tem¬po, reforçou-se a vigilância na PA-70 e na Transamazônica.


— Porra, agora está ficando difícil achar os putos. Res¬tam apenas treze subversivos na área. Sete do grupamento dos Perdidos, dois dos Caianos, sendo que um destes dois é im¬portante pra caralho, o Zenóbio. E mais quatro do Saranzal — disse Gil para Tomé.
— É verdade. Mas agora é a hora de não desanimar. Se estes poucos ficarem, dentro de mais um tempo eles organi¬zam outra guerrilha.
— Porra, sei disso. Vamos recomendar cada vez mais em¬penho às patrulhas. Vamos pegar todos eles, não tenho dúvi¬da — disse, todo imbuído de responsabilidades, o novo tenente-coronel.
Neste momento entrou na sala o Dr. Oran.
— Pessoal, temos novidade!
Gil e os demais olharam expectantes para o chefe da Ca¬sa Azul.
— Estamos ouvindo, tio Oran — disse o Gordo.
— Ganhei um comando, e o Gil foi designado para ou¬tra comissão — falou Oran, não demonstrando se estava sa¬tisfeito ou aborrecido.
— Porra, como é que o senhor soube disso? — pergun¬tou Gil.
— Chegou uma mensagem, agorinha, de Brasília. Vamos aguardar apenas a chegada dos substitutos.
— Fui designado pra onde, chefe, posso saber?
— Você vai para Campinas, para o Grupo de Artilharia Antiaérea.
— Porra, quer dizer que o final da missão aqui vai ser conduzido por gente nova, ou seja, demos um duro desgraça¬do e os louros do encerramento vão ficar com outros.
— Que louros coisa nenhuma, Gil. É uma substituição normal, como outra qualquer.
— E quando é que os outros vão chegar?
— Ainda não sei, mas creio que não devem demorar. Pro¬vavelmente mais uns quinze dias e eles estão chegando. No máximo, lá para o fim de agosto estaremos, nós dois, fora daqui.

Capítulo XVI

— Não adianta ficar dando volta feito peru bêbado, pes¬soal. Aqui perto, mais ou menos a uma meia hora de mar¬cha, existe um sítio que é uma beleza para a gente descansar — disse o chefe da Jabuti Um, abrindo o seu cantil e toman¬do um generoso gole de água. Eles estavam na mata há três dias, procurando, sem resultados, rastros de um grupo que, segundo os informes fornecidos por moradores das redonde¬zas, indicavam ser dos quatro últimos remanescentes do Saranzal.
— O senhor é que sabe, doutor. Por mim acho que uma parada até amanhã ia ser ótima. Depois que o Paquera infor¬mou que o nosso resgate vai ser adiado por um dia, perdi o ânimo — falou um dos membros da patrulha.
— Então, vamos lá. Quem sabe a gente até fila um fei¬jão do Valdomiro? Você conhece o sujeito, né, Tião?
— Cunheço, sim sor. O sítio dele é um dos mais mió da¬qui. Tem de um tudo lá, inté mio verde é capaz de nóis en¬contrá — respondeu o guia.
Eles foram chegando despreocupadamente ao sítio de Val¬domiro, saindo da mata e atravessando pelo milharal em direção à casa. Antes de atingirem o terreiro, porém, um homem saiu correndo em desabalada carreira pelo lado oposto.
— Tem paulista aí! Cerquem a casa! Marinaldo e Tião, corram atrás daquele que fugiu por ali! Depressa! — gritou Vargas, o chefe da Jabuti Um.
Eles cercaram a casa, enquanto os outros dois saíam em perseguição do fugitivo.
— Quem estiver aí dentro saia com as mãos na cabeça, se não quiser morrer! — berrou Vargas, maldizendo-se inti¬mamente por sua negligência na chegada.
Uma mulher madura, de seus quarenta anos, saiu da pa¬lhoça com as mãos na cabeça.
— Tem mais alguém aí dentro!? — perguntou aos ber¬ros o chefe da patrulha.
— Tem não sinhô... — respondeu ela.
— Quem era aquele sujeito que saiu correndo daqui?
— Ele falô que o nome dele era Zenobi.
— O que ele estava fazendo aqui?
— Pidiu um prato de fejão, dei, ele cumeu e disse qui ia simbora, quando ocêis chegaro.
— Você não sabe que é proibido dar guarida pra esse po¬vo da mata?
— Sei sim sinhô, mais num sabia que o tar era paulista, nunca tinha visto ele aqui.
— E seu marido, onde ele está?
— Valdo tá na mata, mais os minino coiendo castanha.
Marinaldo e Tião chegaram de volta.
— Nada, chefe. O cabra entrou por dentro de um ba¬nhado que tem aculá e sumiu nas brenhas — disse o soldado.
Vargas mandou que a casa fosse revistada e depois disse a seus homens.
— Adeus descanso. Vamos tentar achar o rastro do sub¬versivo. Esse é peixe grande.


— Porra, no Saranzal!? — exclamou em dúvida Gil.
— É isso mesmo, no Saranzal! Também fiquei surpre¬so, mas o chefe da patrulha e a mulher foram interrogados e confirmaram. Era o Zenóbio mesmo. O nome e a descrição batem com os nossos dados.
— Ele deve estar tentando contato com o grupamento C, ou então está tentando fugir, buscando atingir e cruzar o Araguaia. O que é que você acha, Zeca? — perguntou Gil.
— Acho mais provável que ele esteja tentando fugir. Mas a chance dele por essa rota é mínima. Vamos pegar o puto, não tenha dúvida. É questão de mais dia menos dia.
— Vai observando como as coisas funcionam aqui, Vio¬la. Tá tudo calmo. De repente, chega uma informação dessas que faz agitar todo mundo.
— Estou vendo, e já deu para perceber que as coisas são muito dinâmicas na área, exigindo mudanças de tática a toda hora — disse o novo chefe de operações, recém-chegado à Casa Azul.
— Mais alguns dias e você vai ficar por dentro de tudo — falou Gil.
— Neste caso agora, o que deve ser feito? — perguntou Viola.
— Acho que vou programar o lançamento de mais pa¬trulhas no Saranzal para fazer um pente-fino naquela área. O Zenóbio já escapou várias vezes do nosso cerco. Desta vez, temos que pegá-lo.
— O filho da puta parece um genuíno gato de sete vi¬das, mas a sorte dele está no fim — comentou Zeca.


— ... de maneira que é essa a situação na região. Guerri¬lha propriamente não existe. Na verdade, estamos aqui con¬duzindo uma tremenda caçada. Não há qualquer tipo de oposição por parte deles. Os caras se instalaram na área para uma missão para a qual estavam completamente despreparados. A liquidação dos poucos que ainda restam, no entanto, é de suma importância para não ficar nenhuma semente da subversão, num local cujo caldo de problemas sociais é tão amplo que, se ficar um, este um fará germinar novamente a guerrilha — dizia Oran a Nilo, o novo comandante da Casa Azul.
Nilo ouvia mais do que falava. Era um velho coronel, aguardando uma promoção a general que nem ele próprio acre¬ditava que viesse. Aquela, talvez, seria a sua última missão na ativa. Nilo era calmo, observador e, principalmente, reser¬vado. Poucos privavam de sua intimidade. Um desses poucos era, justamente, Viola, o chefe de operações que ele trouxe¬ra. Este era mais dinâmico sem ser agitado, inteligente sem ser brilhante, e batalhador sem ser obstinado.
— Por tudo que você me disse, creio que já estou quase pronto para assumir. Além disso, o pessoal que continua na missão será capaz de tirar dúvidas que eu venha a ter quando você partir.
Conversavam num canto reservado da sala. Alguém abriu a porta e disse: — Dá licença, doutor?
— Pode entrar, Marcondes. Alguma novidade? — per¬guntou Oran.
— O Paquera acabou de informar que a Capivara Dois chafurdou três nos Perdidos — disse o operador de rádio.
— Ciente, Marcondes, obrigado. Pode se retirar. Vamos tomar as providências de rotina — falou Oran. Não havia mais as emoções e os alvoroços dos primeiros meses. — Ô Gil, vo¬cê escutou o que o Marcondes me comunicou?
— Não, doutor, estava aqui conversando com o Viola, não prestei atenção.
— A Capivara Dois chafurdou nos Perdidos. Parece que há três presuntos ou prisioneiros lá.
— Vou tomar as providências.
Uma hora depois decolava um Sapão.


Estava fazendo uma bela manhã de sol em Xambioá. A garça, um velho DC-3 da Força Aérea, entrou na reta final para pouso. No pequeno pátio de manobras e estacionamen¬to, membros de ambas as empresas, a agropecuária e a mine-radora, aguardavam a chegada de mais uma comitiva que vinha de Brasília visitar o acampamento.
O avião pousou, rolou até a cabeceira oposta e fez cento e oitenta graus de curva, iniciando o táxi para o estacio¬namento.
— O general disse que quer visitar primeiro o acampamento de vocês, João Pedro. A fama das melhorias que vo¬cês estão incrementando já chegou na corte — disse Elesbão com uma ponta de ciúme.
— Eu já estava sabendo. O Jorjão enviou-me uma men¬sagem de Marabá, dizendo isso. Mandei preparar um refres¬co para recebê-los, e, se eles quiserem almoçar na mineradora, não há problema — falou o aviador.
O velho Douglas estacionou, a porta foi aberta e o gene¬ral e sua comitiva começaram a desembarcar. Cumprimentos, apertos de mão, sorrisos.
— Que beleza de lugar! — disse um oficial superior.
— Você quem é? — perguntou um coronel do verde-oliva.
— Sou o Dr. João Pedro, chefe da mineradora.
— Chefe da mineradora!? Ah, sim, da mineradora... ago¬ra entendi. Você, então, é da FAB? Qual o seu posto?
— Sou o doutor João Pedro, chefe da mineradora.
— Ah, ah, ah, ah, então vocês levam mesmo a sério a camuflagem, hein? E aí, vocês estão acompanhando direitinho as trilhas dos guerrilheiros e a progressão das tropas no terreno?
João Pedro olhou surpreso para o coronel. "Esse cara não pode estar falando sério. Ele deve estar me gozando", pensou.
— Como é o panorama do campo de batalha visto lá de cima? Os choques entre as patrulhas e os subversivos? — in¬sistiu o coronel.
"O sujeito não está brincando, meu Deus! É realmente um perfeito idiota! Não sabe de nada!", pensou João Pe¬dro, não se dando o trabalho de responder. Apenas olhou a tarjeta de identificação do oficial: "Cel. Maranhão", leu Joãozinho, virou as costas e se dirigiu calmamente ao ge¬neral:
— Excelência, vamos para a sombra da mineradora. Te¬mos um refresco gelado para os senhores. Tenha a bondade, por aqui, por favor.
O acampamento estava um brinco.
— Que coisa mais fantástica vocês montaram aqui — dis¬se o general, elogiando e admirando tudo. — Olha isso! Até um bar, ao estilo do western norte-americano, com porta de saloon, mesa redonda de feltro verde!! A FAB é rica, pode se dar estes luxos, não é?
— Tudo isso, meu general, foi feito com nossos próprios recursos, com a contribuição de cada um, aos poucos, para propiciar mais conforto às tripulações que aqui permanecem, por dias e dias, longe dos familiares. De certa forma, isso tu¬do que o senhor está vendo é fator importante da segurança de voo. Conforto e bem-estar não são luxos, meu general... — explicou o aviador ao velho troupier, mostrando que em quase um ano de operação, não havia ocorrido nenhum aci-dente. "É possível que ele não tenha entendido. Afinal, a psi¬cologia do combatente terrestre é muito diferente daquela de quem tem por teatro a imensidão do espaço", pensou João Pedro mais tarde, depois que a comitiva foi embora.


— Porra, cara, não é possível! Você tá de brincadeira! — disse Tiago, sem acreditar no que Joãozinho lhe contara.
— É verdade, eu estava perto e ouvi tudo — confirmou Rafael, aliás, tenente Parise.
— Cacetada, esse tal de coronel Maranhão deve ser mes¬mo um completo imbecil!
Eles estavam no bar da Janoca. O cardápio de sempre, cerveja gelada e pacu frito com pimenta.
— Pessoal, vocês não sabem da maior! — disse Silvério, entrando no botequin e surpreendendo a todos, uma vez que não era habitual sua ida ao Vietinam.
— Porra, que milagre você aparecer aqui. Vai, no míni¬mo, chover hoje — falou o japonês.
— Qual é a novidade!? — perguntou João Pedro.
— A novidade é que o Tenório ficou lá na casa da Ba¬leia, porra!
— Grandes merdas! Você tá cansado de ficar e, até, dor¬mir lá. Ele também é filho de Deus, porra — disse Rafael.
— Uai, vocês é que não estão entendendo. O Tenório tá dormindo com a Baleia! Amanhã, vai ser a maior gozação quando ele chegar ao acampamento. Ah, ah, ah, ah...
A risadaria foi geral.
— Cacetada, hoje é o dia das piadas, porra — falou o nipônico, quase arrebentando de rir.
— Puta que pariu, será que não tinha coisa melhor pra ele comer? É perigoso, ele se afogar no meio de tanta banha — disse João Pedro, rindo alto também.
— Nesta Xambioá acontece cada uma... — comentou Ra¬fael, quando os ânimos serenaram.
— Sabe o que eu descobri outro dia? Aqui tem um tal de casamento por contrato — falou Tiago.
— Ih, eu já sabia disso há muito tempo — disse Silvério.
— E como é essa história de casamento por contrato? — quis saber Joãozinho.
— O sujeito se engraça com uma mulher, aí propõe ca¬sar por contrato. Eles negociam o tempo do casamento e a indenização que deve ser paga à mulher ao final do prazo. Quando está tudo acertado, o contrato é redigido e registra¬do no cartório. Pronto — explicou o japonês.
— Mas esse contrato não tem valor jurídico algum! — disse Rafael.
— Claro que tem, todos são livres para contratar o que quiserem, uai — opinou Silvério.
— As pessoas são livres para contratar, e o contrato faz lei entre as partes, desde que não seja ferida a lei do país. Isso é o que sei. Portanto, acho também que esse contrato não tem validade — comentou João Pedro.
— Pessoal, não adianta ficarmos discutindo se é válido ou não. O fato é que a coisa funciona assim em toda a região. A Baleia me deu um monte de exemplos. Aqui é desse jeito, o cartório aceita e as partes cumprem o que foi contratado. Fim — disse Silvério.
— Eta povinho miserável, esse daqui! — falou Tiago.
— É justamente o que acontece quando as leis, as insti¬tuições e as autoridades não se fazem presentes. O povo pas¬sa a criar suas próprias leis — deitou sapiência Rafael.
— Ô Janoca, traz mais cerveja e peixinho frito pra nós! — gritou o japonês.
— Vocês querem ver uma coisa? Tá vendo aquela putinha que está atravessando a rua ali? — apontou Silvério. — Ela é uma menina nova, com no máximo dezoito anos, e já está aqui desde os dezesseis. Agora, o que é pior, é filha de um fazendeiro de Araguaína cheio da grana. Dá pra acreditar?
— Como é que você sabe disso? Cê vem tão pouco ao Vietinam — perguntou Tiago.
— A Baleia me contou. Ela sabe de tudo que acontece aqui e me fala muita coisa. Essa tal aí, Isadora, perdeu a vir¬gindade, o pai não pensou duas vezes, expulsou-a de casa. É a lei deles.
— Isso é sacanagem! — disse Rafael.
— Pessoal, em vez de ficar só caçando guerrilheiro, nós devíamos fazer alguma coisa para diminuir a miséria e o so¬frimento desse povo. Isso é uma obrigação nossa. Afinal, o paisano diz que somos o governo. Vamos assumir, vamos to¬mar alguma providência — sugeriu Tiago.
— Quem sabe podemos montar algumas missões de Aciso — Ação Cívico-Social — com a colaboração da agropecuária e de pessoas da própria cidade? — falou João Pedro.
— Acho uma boa ideia. Vamos pensar sobre isso com carinho. O fato é que o japonês tem razão, temos que fazer algo. Agora, convenhamos que o papo está, hoje, muito sé¬rio. Vamos tomar nossa cerveja e deixar o assunto para o acam-pamento — disse Silvério.
A conversa tomou outros rumos, e o tema sugerido só veio a ser discutido dias depois.


— Estou fechando a minha estada aqui com chave de ou¬ro, hein, Viola? — disse Gil, fazendo uso pela última vez, na Casa Azul, do pincel vermelho que marcava os X sobre as fo¬tos dos paulistas postos fora de ação.
— Realmente, espero poder dar continuidade ao seu trabalho à altura — disse Viola.
A Capivara Dois fizera três mortos. O agente designado para fazer a identificação ficara em dúvida com relação a um dos cadáveres. Somente dias depois se confirmou pela datiloscópica que se tratava de Daniel Cantagalo, o Darci.
— Veja só, quem diria, o Darci escapou várias vezes nos Caianos e foi cair nos Perdidos — comentou Gil, olhando o quadro. Os dois outros mortos ele marcara no dia anterior: Antó¬nio de Paula Castro, o Hélcio, e Humberto Brasil, o Tadeu.
— Restam cinco nos Perdidos e quatro no Saranzal. Sem contar o Zenóbio, que é uma incógnita. Depois que cheguei aqui, volta e meia aparece um informe de que ele está num determinado lugar. As patrulhas vasculham o local e não en-contram nada. No entanto, esse tem que ser encontrado — disse Viola.
— Estou gostando de ver. Você já está por dentro de tu¬do. Parto amanhã, tranqüilo. A operação está em boas mãos.


— Bom dia, seu Valdemar — disse Jairo, um dos capa¬tazes da agropecuária, como fazia sempre, todas as manhãs, ao buscar a cota de pão da empresa.
— Seu Jairo, o sinhô não me leve a mal, mas é que tou em difirculdade — iniciou Valdemar a conversa que vinha en¬saiando há vários dias.
— Pode falar, seu Valdemar. Tou ouvindo, qual é o problema?
— O problema, sô Jairo, é que não tô tendo condição de continuá o furnicimento de pão pra ocêis por esse preço. Tá tudo na maior caristia, a farinha de trigo armentou, o fer¬mento tombém, até o disgramado que puxa as carrada de le¬nha do forno armentou o preço do carreto. O sinhô explica lá pro doutô, seu chefe, que hoje é o úrtimo dia cum esse pre¬ço. Amanhã, vai sê um cadinho mais caro.
— O senhor falou, tá falado. Vou comunicar pro Dr. Cosme, mas se prepare porque ele não vai gostar da notícia não — disse Jairo, pegando o saco de pães e transportando-o para a abreviatura.
Valdemar deu de ombros.
— Se ele num gosta, paciença. Não pode é fica do jeito que tá — falou ele para a mulher, a Maria Preta.
— Valdemar, Valdemar, esses home da federal vão criá causo com nóis. Inda se fosse os da mineradora, não tinha pobrema. Nóis aumentemo o preço, ês pagaro e num falaro nada. Mais esses otro, vixe, Deus me defenda!


Estava uma manhã chuvosa. As tripulações e os demais membros da mineradora estavam nos alojamentos, ou na bar¬raca do rancho, aguardando que o tempo abrisse para iniciar a programação aérea.
— Se continuar assim, hoje vamos ser obrigados a ficar aqui, coçando o saco — comentou Beto.
— Você podia aproveitar a folga e ir lá na agropecuária convidar o Elesbão e os outros para a reunião que vamos fa¬zer sobre a operação Aciso. O quê que você acha, João Pe¬dro? — sugeriu Silvério.
— Boa ideia, não estou fazendo nada mesmo. Vou lá vi¬sitar os irmãos de armas — disse João.
Na noite anterior, eles haviam discutido o assunto da ope¬ração Aciso, levando a ideia aos demais companheiros.
— Espetacular! — disse Amâncio com entusiasmo. — Podemos providenciar para que esse povo seja identificado, tire carteira de trabalho, seja examinado pelo médico, receba os remédios de que estão precisando, e mil outras coisas... — Acertou-se que, na semana seguinte, haveria outra reunião para definir o plano completo, com a presença do pessoal da agro¬pecuária e, se possível, alguém da Casa Azul.
— João Pedro, acho a iniciativa de vocês muito louvá¬vel e de grande valor, inclusive para a própria operação de combate. Entretanto, companheiro, não tenho disponibilida¬de de recursos para me engajar nisso. Nem material nem pes-soal. Posso, no máximo, ceder o nosso médico para participar. Mais do que isso, impossível. A não ser que venham ordens e recursos da Casa Azul — falou Elesbão, depois que o chefe da mineradora expôs a idéia.
Os dois estavam conversando no galpão de madeira co¬berto de palha, construído para servir como escritório da agro¬pecuária. De repente, o Dr. Cosme, encarregado do serviço de aprovisionamento, entrou no recinto.
— Como é, Cosme, resolveu o problema da padaria? — perguntou Elesbão.
— Porra, se resolvi! Desculpe, bom dia, Dr. João Pe¬dro — disse Cosme, agitado. — Esses matutos de merda pensam que nós somos otários. Mandei buscar o tal de Valdemar e uns choquinhos com o "brinco-da-princesa" resolveram o problema. Ele me disse os custos de produção, fiz as contas, acrescentei dez por cento de lucro e cheguei ao preço final de quanto deve ser vendido o pão. O filho da puta estava querendo nos explorar. Depois, esses paisanos de merda ficam dizendo que nós é que somos os exploradores do povo. Man¬dei fixar na porta da padaria uma tabela com os preços. Esses caras estão pensando o quê? — esbravejou Cosme, gesticu¬lando, enquanto contava as providências tomadas em relação ao aumento do preço do pão.
— Lei da oferta e da procura pra você, então, é letra de samba!? — arriscou-se a dizer João Pedro.
— Porra, doutor, me desculpe, mas qual é a sua!? Co¬migo não tem essa lei que o senhor falou aí, não. A lei aqui somos nós! Os caras têm que vender pelo preço justo!
— É, você deve ter razão... — disse João, com um sor¬riso de mofa que o outro não percebeu.
— E tem mais: agora vou começar a dar duro nos ou¬tros comerciantes da cidade. Vou tabelar tudo. É assim que tem que ser, o povo vai ficar satisfeito. Quer melhor Aciso do que esse? — completou Cosme, que já ouvira o zunzum da operação que os aviadores estavam planejando.
"Pobre coitado! Não adianta discutir com um sujeito des¬ses. Pura perda de tempo", pensou João Pedro, despedindo-se e voltando para a mineradora.

Capítulo XVII

A tarde estava caindo. Numa curva do igarapé Paraí¬so, um local pedregoso dominado por uma enorme coariúva, além de outras árvores menores, os cinco elementos restantes do grupo estavam ralando coco-bacaba. Há muito eles não tinham alimento, a não ser frutas silvestres e coco. Este, po¬rém, absorvia grande parte do tempo deles, para torná-lo digerível.
— Não tem jeito, camaradas, se quisermos sobreviver, temos que nos alimentar de coco pra não cairmos em balanço protêico negativo — ensinara Olavo, quintanista de medici¬na, antes de cair prisioneiro.
— Como será que tá minha muié e meus fio, minha Vi¬ge Maria? — lamentava-se Viriato, o ex-soldado de polícia que desertara para se unir aos paulistas.
— Pára com isso, Viriato, você se juntou a nós porque quis. Porra meu, aguenta firme ou se manda! — disse Eraldo.
— Se eu for simbora, ês vão me prendê na certa. Tenho mesmo é que ficá com ocêis. Tumei o bonde errado, agora o jeito que tem é güentá esse sufrimento.
— Psiu! Silêncio, parece que ouvi alguma coisa — falou Rosa baixinho. Eles pararam de ralar o coco e prestaram aten¬ção. Nada. Parecia que estava tudo normal.
Eraldo fez sinal para que eles se afastassem de onde estavam. Pegou uma pedra, jogou na direção apontada por Rosa e correu.


A patrulha Jabuti Quatro estava se aproximando bem de¬vagar, com cuidado para surpreender o grupo guerrilheiro. O mateiro ouvira o barulho do coco sendo ralado e alertara o chefe.
— Ês deve de tá no pedregal, ralando coco.
Quando o chefe da patrulha fez sinal para seus homens abrirem a formação e envolverem o inimigo, um soldado precipitou-se e, afobado, escorregou e caiu no chão, provo¬cando o barulho que a guerrilheira Rosa ouvira.
— Atrás deles! — gritou Fulgêncio, o chefe da Jabuti Quatro, quando a pedra atirada por Eraldo caiu ao seu lado, assustando-o. Os soldados correram atrás do inimigo, atiran¬do no que viam e no que não viam.
— Puta que pariu! Nós íamos pegá-los todos de calça na mão. O Bosco, esse bicho enrolado, tinha que escorregar bem na hora!
— Chafurdamos dois, pelos menos, seu Fulgêncio — fa¬lou Biguá.
— Mas, se tivéssemos pegado os outros, esta guerra ter¬minaria mais cedo.
— Desculpa, né, pessoal, não foi por querer — disse o soldado Fernandel Bosco encabulado.
— Tudo bem, está desculpado. Vou tentar, agora, contato com o Paquera — falou Fulgêncio.


— Arre égua, e esse tal de doutor Cosme tá pensando o quê, que é o dono da cidade!? — disse Valquíria. O comen¬tário na calçada era sobre o tabelamento dos preços que esta¬va sendo implantado.
— Meus peixe, vendo por quanto os pessoal me pagá! — falou Paulo Boto.
— E eu vou lá me incomodá com isso. No Tesoura Dourada, o preço do corte é um só. Se esse dotozinho vié botá preço no meu sirviço, cobro um por fora dos fregueis e pron¬to — desdenhou Armandino, o barbeiro.
— É que ocêis não levaro choque e porrada que nem o pobre do Valdemar. Deixa ês pegá um dôceis. Vai tudo se ca¬gá todo — disse um outro.
— E você, Silvério, não diz nada — provocou Val.
— Uai, falar o quê? Não tenho nada a ver com isso, gen¬te! Isso é coisa da agropecuária. Pertenço à mineradora.
Como sempre e em todo lugar, havia os aproveitadores.
— Quanto é o açuca, seu Raimundo?
— É dez o quilo, seu Mendes.
— Ah, é, mas a tabela não está dizendo que é oito?
— O senhor sabe como é, por oito tomo prejuízo. Com¬pro por sete, tem mais o frete de Araguaína pra cá, o senhor compreende, né?
— Pois quero cinco quilo, a oito. Se o senhor não quisé vendê, vou dá uma palavrinha com o doutô Cosme.


— Porra, a situação é esta. O sujeito é maluco. Ele se arvo¬rou de intendente-mor. Pra ele não tem lei, não tem concorrên¬cia, não tem nada. Ele é a lei, porra — relatou Jorge ao coman¬dante da Casa Azul as informações que recebera de Xambioá.
Nilo ouviu em silêncio.
— Quem foi que deu autoridade ao Cosme para fazer is¬so? — perguntou ele a Viola.
— Bem, ô Dr. Nilo, se ele está exorbitando, ele não é culpado sozinho. Existe um comandante na agropecuária, o Elesbão, e este deve ser igualmente responsabilizado — opi¬nou Viola.
— Obrigado, Jorge, pela informação. Vamos tomar as providências que o caso requer. Viola, quero que você vá a Xambioá amanhã e apure essa história direitinho — disse Ni¬lo sem mais delongas e se retirou para seus aposentos.
— Pelo que conheço do chefe, vai dar merda. Tanto o Cosme como o Elesbão que preparem o rabo que vem truta grossa por aí — falou Viola.
— Porra, porra, eu tinha que comunicar, né? Não po¬dia esconder a informação, né? — disse Jorjão se desculpando.
— Claro, Jorge, não se preocupe. Você cumpriu sua obri¬gação. — E, virando-se para Tomé, determinou: — Você fica na chefia de operações enquanto eu estiver fora, certo, Tomé?
— Pode deixar comigo. Era assim no tempo do Gil. Quando ele viajava, eu segurava o pincel.
— Por falar em pincel, o Zeca deu notícias do chafurdo da Jabuti Quatro?
— Ele ainda não chegou, mas não deve demorar. Por coincidência, Zeca entrou na sala naquele momen¬to. Vinha suado e esbaforido.
— Porra, perdi um tempo filha da puta para identificar os presuntos. Um deles foi fácil. É o Demerval, ou Uiranjê Alves Belo. Agora, o outro nem eu nem ninguém sabia quem era. Até que, pelas tantas, o mateiro da patrulha disse que o sujeito era parecido com um soldado da PM do Pará, que de¬sertou o ano passado, quando servia em São Raimundo. Pe¬guei os dados dele, inclusive a ficha datiloscópica. Tudo confere. Acho que devemos comunicar ao comando da PM do Pará — disse ele, terminando seu relatório.


Um Paquera procedente de Marabá pousou e taxiou. A bordo vinham Jorge e Viola.
— Belo vôo! Há muito tempo eu não voava num avião pequeno. Achei o Paquera espetacular — disse Viola, quan¬do eles desceram da aeronave, no pátio de estacionamento, em Xambioá.
— Porra, também com um pilotaço assim como eu, né? — falou Jorjão, satisfeito por ter um dia livre na minera¬dora.
— Bom dia, Elesbão, bom dia para todos. Até mais tar¬de, Jorge — cumprimentou Viola, afastando-se com Elesbão em direção à agropecuária.
— Foi bom você ter vindo, Jorjão. Temos umas coisas importantes para tratar com você. Vamos para a sala de ope¬rações — disse João Pedro, sem maiores preâmbulos.
— É sim, vamos lá, Dr. Jorge — reforçaram Tiago e Silvério.
— Porra, porra, não posso nem tomar um cafezinho an¬tes, caralhos? — perguntou ele risonho.
— Porra, claro que pode. Desculpe pela falta de lembran¬ça em lhe oferecer o café, mas é que estamos ansiosos para lhe contar sobre umas idéias que tivemos.
Depois de tomar seu café, Jorge foi levado para a sala de operações, onde os rapazes o colocaram a par dos planos da operação Aciso.
— Porra, porra, ideia do caralho! Topei, negão. Depois que o Viola terminar de investigar as babaquices que o tal de Cosme andou aprontando, vou trazê-lo aqui pra gente mos¬trar os planos. O apoio da Casa Azul é muito importante pa¬ra uma operação desse tipo. Se o Viola ficar convencido de que a idéia é boa, ele mesmo faz a cabeça do Nilo.
Viola também aderiu de imediato.
— Muito bom. Vou falar com o Dr. Nilo e convencê-lo de que devemos todos nos engajar no projeto. Só uma perguntinha: em que local, ou locais, seria feita a operação?
— Inicialmente, pretendíamos formar quatro equipes e realizar a operação em Santa Isabel do Araguaia, Palestina, São Raimundo e São Domingos — falou Silvério, mostrando no mapa as localidades. — Agora, se a Casa Azul aderir, dá pra formar duas equipes em Marabá e lançá-las em São João do Araguaia e Apinagés. O Sapão de lá faria o transporte do pessoal e do material para estas duas localidades. Os dois Sa¬pões daqui se encarregariam das outras quatro.
— E vocês já têm uma idéia de quando seria a operação?
— Bem, Dr. Viola, o senhor sabe, estamos no fim de se¬tembro. Uma data adequada seria 23 de outubro, Dia do Avia¬dor — disse Tiago, um pouco desajeitado, temendo provocar o ciúme do representante da Força Terrestre.
No entanto, Viola era um homem afável, cordato, e não tinha os vícios da mesquinhez.
— Grande data, muito bem escolhida. Assim, a gente ca¬racteriza a ação cívico-social num dia de grande significado nacional — disse, com entusiasmo.


— Já fiquei sabendo, hein, Silvério? — disse Valquíria com um sorriso.
— Sabendo de quê, uai? — respondeu o aviador, puxan¬do uma cadeira e sentando. — Bartirinha, querida, me arru¬ma um refresco? Estou louco de sede.
— Arrumo e é já já. Tem de graviola e de açaí. Qual é o que você prefere, Silvério?
— Prefiro de graviola.
— Vá logo, sua sirigaita, buscar o refresco de Silvério — gargalhou Val.
— Mas, você está sabendo de quê, Val? — perguntou o rapaz, depois que Bartira entrou para buscar o refresco.
— Você sabe que, sentada aqui na calçada, fico saben¬do de tudo, né? Pois então vocês estão fazendo essa movimen¬tação toda dessa tal de Aciso, e o Tiago mais o João Pedro já convidaram a Dulcilene e a Joaninha pra andar no Sapão. Quero é saber se você não vai chamar Dora e Dagmar pra es¬se passeio! — disse Valquíria, se roendo de ciúmes.
— Mas oh terrinha de muro baixo! Val, em primeiro lu¬gar, isso que você chama de "tal de Aciso" não é nenhum pas¬seio. É um trabalho, trabalho muito sério. Em segundo lugar, fique sabendo que a Dora e a Dag já foram relacionadas para trabalhar numa das equipes. Estou aqui, hoje, para falar com elas, sua linguaruda.
— Ainda bem! Se Dora e Dag não estivessem nessa tal de Aciso, o quê que o povo ia dizer!? Pois se até aquela nega boazuda que trabalha no posto de saúde, a Nena, passou re¬bolando a bunda por aqui e disse que ia passear de Sapão com o cacho dela, um tal de Pauro Piroto.
— Porra, Val, você é foda! As pessoas que estão sendo chamadas para colaborar é porque têm com quê contribuir. Não é pelo tamanho da bunda! A Egmar, que vocês chamam de Nena, é enfermeira. Ela vai trabalhar pra cacete na opera¬ção Aciso.
— Ih, minino, fiquei sabendo também que o tal de Cos¬me mais o Elesbão foram mandados embora. Como foi isso, me conte!? — disse Val, mudando de assunto.
— Uai, depois das merdas que o Cosme fez, você queria o quê? Os substitutos já chegaram...


— Os formulários da Secretaria de Segurança Pública do Pará devem chegar ainda hoje. Vem também um funcionário deles pra ensinar o nosso pessoal a preenchê-los. Consegui¬mos também seis máquinas de plastificação portáteis. Só não vai tirar carteira de identidade quem não quiser — dizia Viola para Nilo.
— E o pessoal da Delegacia Regional do Trabalho, eles responderam à nossa solicitação? — perguntou Nilo, sereno, mas completamente imbuído de suas responsabilidades na ope¬ração Aciso. A Casa Azul mergulhara de cabeça no projeto, chamando a si a coordenadoria de todas as ações necessárias ao êxito do empreendimento.
— Eles chegam depois de amanhã, trazendo todo o ma¬terial para fornecimento das carteiras de trabalho. Dois vão ficar aqui e quatro vão para Xambioá. Eles vêm no C-47 se¬manal da FAB — falou Viola.
— Brasília informou que está vindo uma carga pra cá com mais de quinhentos quilos de medicamentos. O pes¬soal do Ministério da Saúde está dando todo o apoio — disse Nilo.
— Consegui três médicos civis do hospital de Marabá que vão colaborar no atendimento. As pombas estão também vi¬brando em participar da operação — informou Tomé.
— Eu estava tentando conseguir uma porrada de paco¬tes de bala para distribuir para as crianças, mas o dentista do Incra vetou. Disse que bala dá cárie. Porra, mas umas balinhas para os curumins ia ser uma festa, hein? — disse o Gordo.
Quase todos estavam envolvidos nos preparativos da ope¬ração Aciso, que se realizaria três dias depois. As patrulhas, entretanto, continuavam na mata à caça dos paulistas.


Era mais uma manhã ensolarada de outubro. Um bando barulhento de maritacas passou voando por sobre a mataria. Dois tucanos pousaram num galho alto do arvoredo. Embai¬xo, corriam límpidas as águas gorgolejantes do igarapé, ser-penteando por entre as pedras, antes de se lançar no Água Forte.
— Ei, Alexandre, olha isto aqui! — falou a Japonesa, apoiando um joelho no chão e apontando para algo que lhe pareceu, inicialmente, uma pedra.
— É um carumbé — disse o companheiro, abaixando-se e pegando o quelônio com ambas as mãos. — Não, é uma jabota, a fêmea — corrigiu-se ele ao examinar a face ventral do animal. Alexandre colocou a jabota no chão com a carapaça apoiada no solo.
— Se a deixarmos assim, ela vai morrer porque não con¬seguirá se desvirar — falou a Japonesa, observando o animal distender o pescoço e as patas, até então escondidas dentro da carapaça.
— Ela vai morrer de qualquer modo. Temos que comer proteínas, e esta jabota caiu do céu. Vamos chamar os outros e decidir como prepará-la.
Os outros três, Lauro, Augusto e Paulo, se reuniram aos dois, em torno da jabota.
— Ela é bem grande. Deve ter uns cinquenta centímetros de casco. A carne é muito gostosa. Comi dela certa vez, pre¬parada por um colhedor de castanhas — disse Lauro.
— Estamos mesmo precisando. Estou morrendo de fo¬me, e não aguentava mais comer coco — falou Augusto.
— Como é que se prepara este bicho? — perguntou Paulo.
— Aí é que está o problema. Vamos ter que fazer um fogo e colocar a jabota apoiada num jirau baixo, com o cas¬co em contato com o calor — explicou Lauro.
— Você diz cozinhar o animal vivo!? — exclamou a Ja¬ponesa, fazendo uma expressão de horror.
— Sim, foi dessa maneira que vi um jabuti ser cozido, como falei há pouco.
— Fazer um fogo agora é querer ser descoberto pelas tro¬pas. É muito arriscado — opinou Paulo.
— Temos duas, ou melhor, três opções. Fazemos o fogo já e corremos o risco, transportamos a jabota o resto do dia para prepará-la à noite, ou permanecemos aqui até o anoite¬cer. Temos que decidir — disse Lauro.
— Ficar aqui aguardando o anoitecer é quase tão arris¬cado quanto acender o fogo agora. Os milicos da repressão devem estar no nosso rastro, pela quantidade de barulho de helicópteros que temos ouvido — falou Augusto.
— Sobra, então, a opção de carregar o bicho até o anoi¬tecer. A jabota é pesada, nossas forças estão debilitadas e a fome é grande. Eis o dilema — opinou Alexandre.
— Dê uma quarta opção nem se cogita, não é? — disse a Japonesa.
— Qual seria esta quarta opção? — perguntou Lauro.
— Desistirmos da idéia de sacrificar o animal — disse ela, nem tanto pelo bicho em si, mas pela imagem em sua mente de vê-lo morrer queimado vivo, e depois comer daquela carne.
— Qual é, Japonesa? Os nipônicos comem peixe cru, você está com frescura em relação à jabota cozida? Quem sabe a gente arranja um pouco de shoiu pra você!? — dis¬se Paulo rindo para não chorar da situação em que eles se en-contravam.
— Engraçadinho! — respondeu ela à piada de mau gos¬to do companheiro de infortúnio.
— Tenho uma sugestão que pode dar certo. Fazemos o fogo na margem do igarapé e colocamos a jabota para cozi¬nhar. A seguir, nos afastamos para um terreno mais alto e fi¬camos observando escondidos no mato. Se até o cozimento terminar não acontecer nada, um de nós vem aqui, apaga a fogueira e leva a jabota para o nosso esconderijo. O que vo¬cês pensam desse plano? O máximo que pode acontecer é a tropa descobrir o fogo. Se isso ocorrer, nos afastamos de mansinho, e eles que façam proveito da comida e tenham uma indiges¬tão — falou Augusto.
A sugestão foi aceita, e eles assim procederam. Entretanto, um deles lembrou:
— O casco da jabota vai estar pelando de quente, e ela é um bocado pesada. Dois de nós devem descer para buscá-Ia, quando ela estiver pronta, levando dois galhos para serem atravessados sob a carapaça. Cada um segura, com as duas mãos, um em cada ponta, e levanta nosso banquete, sem o perigo de queimar as mãos.


A manhã de 23 de outubro foi radiosa. O acampamento da mineradora estava em festa. Pilotos, mecânicos, pessoal de apoio e os civis que participariam da operação Aciso, to¬dos estavam sorridentes e se congratulavam.
Às sete horas, decolava o primeiro Sapão com uma equi¬pe e seu respectivo material: medicamentos, caixas de leite em pó, vacinas, uma plastificadora, uma máquina de escrever, for¬mulários e demais objetos necessários à missão. A equipe era composta de médico, dentista, enfermeiro, encarregado de identificação, representante da delegacia do trabalho para emis¬são das carteiras e três auxiliares de serviços diversos. A ale¬gria animava a todos.
O segundo Sapão decolou em seguida. Tiago e Fábio eram os pilotos, Gauchão e Pauro Piroto como controlador de cauda e artilheiro. Dr. Calixto, o médico, Dr. Morais, o dentista, Nena, a enfermeira, Antônio, o homem credenciado para emi¬tir as carteiras de identidade, Diva, das carteiras de trabalho, Jairo, Dulcilene e Joaninha, os auxiliares. Risos, apreensão das moças que voavam pela primeira vez.
E assim sucessivamente. Cada Sapão faria duas viagens para levar o pessoal e duas para resgate, no final da tarde.
Em Marabá, a mesma euforia. As pombas alegres, vibran¬do pela experiência inédita. Todos, afinal, contentes.
— Que Dia do Aviador! Como é bom se sentir útil! — comentou Rafael, após o regresso do último transporte de equi¬pe para São Domingos.
— Hoje vamos comemorar, no Quentão primeiro e, de¬pois, no botequim da Janoca — disse Tiago.
— Você, japonês, levou a sua e a minha namorada para Santa Isabel. No resgate, quero buscar a Joaninha. Feito? — disse João Pedro.
— Claro, Joãozinho. Você tem duplo direito. A namo¬rada é sua e você é o comandante, cacete! — respondeu o nipônico, feliz.
Em Santa Isabel do Araguaia, como também nas de¬mais localidades, a população estava igualmente alegre e sa¬tisfeita.
— Seu minino, nunca se viu por aqui uma coisa dessa. O gunverno agora se alembrou de nóis... — dizia um.
— Arre égua! Entonces, virei gente! Qui antes era mes¬mo que bicho. Caderneta de trabaio e essa mais piquitita pra prová que me chamo Raimundo da Conceição Silva. Sim sinhô!! — falou outro, saindo do posto montado na pra¬ça.
— Não vai doer nadinha, meu querido — acalmava Joa¬ninha um garotinho de cinco anos, no colo da mãe, apavora¬do com a agulha de aplicação da vacina tríplice.
— É pouco, mais já é arguma coisa, né? — falou a ca¬bocla Lindaura, carregando o filho mais novo, no braço di¬reito, e duas latas de leite em pó, no esquerdo. — Deus que ajude ocêis todo!
— O disgramado do doutô me arrancô treis dente. Mais ô menos, agora, os fio du'a égua num vai mais duê. Vixe Ma¬ria, foi Deus qui mandô esses cabras aqui!
E assim por diante, cada um feliz à sua maneira.
Às cinco e trinta da tarde, o Sapão pilotado por João Pe¬dro e Rafael pousava em Santa Isabel para resgatar a equipe. Joaninha mandou ao comandante da aeronave um beijo com a ponta dos dedos, antes de embarcar. Um sorriso radiante nos lábios.
— Foi o dia mais feliz da minha vida! — disse ela, sen¬tando e ajustando o cinto de segurança.
— Tá emocionada, guria, de voar aí com o doutor João Pedro, seu xodó? — disse Gauchão, folgado como ele só, no ouvido dela.
— Ele é o homem mais lindo e o melhor piloto do mun¬do — gritou ela, suplantando o ruído da aceleração do rotor.
— Bá, tchê, isso é que é amor! Mais firme do que catarro em parede. Barbaridade — falou o gaúcho, não perceben¬do que o seu interfone estava aberto.
O Sapão decolou. Após ter atingido a velocidade de sus¬tentação, fora do efeito de solo, o piloto fez uma curva suave e entrou rasante pela calha do rio Araguaia, rumando de vol¬ta para Xambioá.

Capítulo XVIII
— Psiu... cêis num tá sintindo o chero? — falou o ma¬teiro Zeferino, fazendo sinal de parada e colocando o dedo na boca, indicando silêncio.
— Cheiro de quê, Zé? — perguntou baixinho Léo, o chefe da Capivara Um.
— Chero de fumaça, de lenha queimando, sô Léo — disse ele, apontando na direção de onde vinha o odor captado por seu olfato apurado, em relação às coisas da floresta.
Léo aspirou fundo, mas não percebeu nada.
— Tem gente fazendo fogo aqui perto. Deve de tá a uma meia hora daqui.
Léo reuniu a patrulha e recomendou:
— Vamos chegar devagar. Sem precipitação e sem fazer barulho. Pode ser algum caçador ou colhedor de castanha. Prestem atenção aos meus sinais e aos do Zé.
Reiniciaram a caminhada com todo o cuidado. Dez ou quinze minutos depois, todos eles estavam sentindo o cheiro da fumaça. Redobraram a cautela.
Zeferino fez sinal de parada. Todos ficaram estáticos. Ele apontou na direção do igarapé, e Léo foi rastejando lentamen¬te. Do outro lado do pequeno curso d'água, ele viu a foguei¬ra, o jirau e um jabuti com os costados para o fogo. Fez sinal para os outros se aproximarem devagar.
— Não tem ninguém — cochichou Léo.
— Ês tem que tá por perto. Aquele jirau é de paulista — falou Zé no mesmo tom.
— Vamos ficar espreitando daqui — sussurrou o chefe, fazendo um movimento com a mão para indicar calma.
Eles ficaram ali observando, atentos, em absoluto silên¬cio. A hora de o Paquera chamar passou, e Léo não se arris¬cou a ligar o rádio.
Mais de uma hora depois, quando eles menos esperavam, dois guerrilheiros desceram do terreno alto da outra margem. Cada um carregava um galho não muito grosso de madeira lisa e reta. Chegaram à margem do igarapé, apagaram o fogo e passaram os varais por baixo do jirau.
Quando levantaram a trapizonga com o jabuti em cima, Léo fez um sinal e a patrulha fechou de um salto qualquer possibilidade de fuga.
— Fiquem onde estão! Parados! Quem se mexer morre! — gritou o chefe da Capivara Um.
Paulo e Alexandre ficaram petrificados. "É o nosso fim! Não é só o peixe que morre pela boca...", pensou Paulo, num segundo momento.
Um ruído de passos se afastando apressados foi ouvido. Léo hesitou, mas rapidamente decidiu:
— Amarrem os dois! — gritou ele, mantendo-os sob a mira de seu fuzil. — Depois, acharemos os rastros dos que estão fugindo.
Naquele entardecer, a Capivara Um banqueteou-se com a saborosa carne de jabota assada no próprio casco.


— Porra, porra, foi do caralho, né!?
— Foi excelente, Jorge. Vocês todos estão de parabéns . Melhor dizendo, todos nós estamos de parabéns. Tudo funcionou como planejado — disse Nilo.
— As pessoas que trabalharam diretamente, com as quais pude conversar, voltaram cansadas, mas disseram que se sentiam recompensadas pela alegria que proporcionaram a esse povo humilde. Eles se contentam com com tão pouco, e mesmo esse pouco o governo lhes tem negado. Pena que só foi um dia — falou Viola, referindo-se ao sucesso da operação Aciso.
— Porra, as pombas adoraram. Aliás, elas nos convida¬ram para tomar um licor, logo mais, lá no pombal. Essa não perco, né!?
— Eu e o Viola vamos também. É uma forma de agra¬decer a colaboração delas — disse Nilo, que raramente ia à casa das pombas.
— Mudando de assunto, você entregou o relatório do Pa¬quera ao Tomé? — perguntou Viola a Jorge.
— Porra, porra, já entreguei. O piloto não conseguiu contato com uma patrulha. Parece que foi a Capivara Um — res¬pondeu o outro.
— Amanhã temos que verificar isso. Localizar a patru¬lha e saber o que houve — disse Viola.


A tarde estava quente e abafada, naquele início de no¬vembro. Tiago e Amâncio, na barraca do rancho da mineradora, conversavam amenidades. O cozinheiro serviu-lhes um refresco de cupuaçu.
— Boa tarde, Amâncio e Tiago — falou alto Dr. Pinho, o chefe da agropecuária que substituíra Elesbão, entrando no recinto acompanhado de dois desconhecidos e de um funcio¬nário de menor graduação. Este último portava um fuzil que trazia cruzado ao peito. — Trouxe uma visita para vocês. O João Pedro está no acampamento?
— Só estamos eu e o Amâncio. Joãozinho e os demais estão voando. Quem são estes dois aí? — perguntou Tiago, já desconfiando de quem se tratavam e estranhando a presen¬ça deles ali.
— São dois amigos nossos que estão passando uma tem¬porada no acampamento da agropecuária. Alexandre e Pau¬lo. Eles estão cooperando conosco, são de paz, e demonstraram interesse em conhecer a mineradora, antes de viajarem — res¬pondeu Pinho.
— Alô, como vão vocês? Fiquem à vontade. Podem sentar — falou Tiago. — Ô Batista, traz um refresco aqui pró pessoal.
— Ô Pirata, pode tomar o seu refresco e, depois, ficar esperando lá fora, tá? — disse Pinho para o soldado que por¬tava o fuzil.
Sentaram-se nos bancos de madeira do refeitório. Os pri¬sioneiros estavam um pouco ressabiados, olhando com curio¬sidade o ambiente.
— Vocês são estudantes? — perguntou Amâncio, na falta do que dizer e para quebrar o clima de certo constrangimento que pairava no ar.
— Somos. Eu estudava biologia na USP — respondeu Alexandre.
— E você? — perguntou Tiago, dirigindo-se a Paulo.
— Prestei vestibular para o ITA, passei, mas depois me envolvi com o movimento estudantil e acabei desistindo. Gosto de aviação. Foi por isso que pedi para vir aqui — respondeu Paulo, com uma voz tranquila, as palavras bem articuladas.
Eles ficaram conversando. Os jovens tomaram o refres¬co e agradeceram ao cozinheiro Batista. Depois, deram uma volta pelo acampamento, fizeram algumas perguntas e foram conduzidos de volta à agropecuária.


— Há vários dias estamos sem informes a respeito do Zenóbio. O último foi a semana passada, dizendo que ele teria sido visto perto de Oito Barracas. Lancei na área quatro pa¬trulhas e, até agora, nada — falava Viola para Tomé.
— Temos que insistir, tchê. Convidar o cavalo nas puas, com essas patrulhas, tchê! O Zenóbio é esperto, mas é um só.
— Estão faltando sete, para acabar essa guerrinha. Pa¬rece até conta de mentiroso. Três nos Perdidos, três no Saranzal, e o Zenóbio, que não sabemos onde anda. Que ele está na região, não tenho dúvida. Com o esquema que montamos, ele não consegue escapar da área — considerou Viola.
— O negócio é sentar na presilha, tchê, não desistindo enquanto não comer o peito da franga, como dizem os mi¬neiros.
— O Levindo Azeitona acaba de perder o emprego — disse o Gordo, entrando na sala. — Chegou uma mensagem de Brasília, mandando fechar a farmácia, na Palestina.
— Isso é sintomático. Vou conversar com o Nilo sobre isso. O general pode estar querendo encerrar as operações, mas acho que ainda não chegou a hora. Sete subversivos fazem ou¬tro melê aqui se abandonarmos a região agora — falou Vio-la, levantando-se de sua cadeira e saindo para procurar o Dr. Nilo.


— Ô Janoca, traz mais cerveja gelada e peixinho frito! — gritou o japonês para a bodegueira.
— O quê que você está me dizendo!! Foi bom eu não es¬tar lá, falo demais, ia acabar soltando os cachorros pra cima do Pinho. E, afinal, ele não é culpado dessa situação — disse João Pedro.
— Porra, cara, você precisava ver. Todos dois tranqui¬los, conformados, pensando que vão realmente viajar pra São Paulo. Disseram calmamente, pra mim e pro Amâncio, que queriam ser julgados, cumprir a pena que lhes dessem e, de¬pois, recomeçar vida nova, retomar os estudos. Cacete, fiquei ali feito babaca! Sem poder fazer nada — relatou Tiago.
— E Zeca & companhia chegaram quase no pôr-do-sol. Amanhã, a Patrulha Rouxinol vai agir novamente. Filhos da puta!!
— Porra, Joãozinho, não tenho vergonha de dizer. De¬pois que o Pinho levou os dois embora, fui pró alojamento e chorei. Sem sacanagem, chorei mesmo! É muita putaria o que esses caras da comunidade estão fazendo.
— Se algum dia contarmos isso para alguém, não vão acreditar, japonês! É sacanagem e covardia demais — lamen¬tou João.
— Porra, vamos mudar de assunto! Falar de mulher, co¬mer pacu frito até amanhecer e tomar um porre...


Na tarde do dia seguinte, a oito mil pés de altitude, os fones do piloto do Paquera recebiam:
— Paquera, aqui Rouxinol. Houve chafurdo. Resgate amanhã, no local combinado. Câmbio final.


Era uma casa branca, o telhado arqueado em forma de sela com telhas coloniais, toda avarandada. O curral ficava ao fundo e, espalhadas sem critério, aqui e ali, as choupanas mais humildes dos peões e outros empregados.
Pelo caminho que levava à casa-grande, vinha trôpego e maltrapilho um caminhante, surgido ninguém sabia de on¬de. Ele parou na porteira, apoiou o braço num moirão e des¬cansou a cabeça, colocando a testa sobre o braço.
— Égua, seu minino! Quem é aquele cabra aculá na por¬teira? — disse um peão, parando no meio do pátio e apon¬tando a direção para os outros.
— Sei não. Num tá paricendo gente daqui, não. Tá bão de nóis i lá vê que arrumação é essa. Vamo lá, gente! — falou mais alto o que parecia ser o líder, talvez o capataz.
— Simbora! — disseram outros dois, e seguiram atrás do primeiro.
Ao chegar à porteira, um dos peões falou:
— Quem é ocê e o quê é qui quê aqui!?
O sujeito levantou a cabeça, a barba crescida e desgre¬nhada, sujo, o olhar perdido.
— ...água ...qualquer resto de comida...
— Quem é ocê, cabra?
— Num sou ninguém... e sou Jesus... de Deus...
— Vixe Maria, o homem tá paricendo qui tá variando.
— Vamo levá ele pra casa da fazenda e dá uma água e um cumê pro pobre, gente — disse o capataz.
O sujeito comeu e bebeu com sofreguidão.
— É capaiz qui esse cabra seje daqueles paulista qui as tropa anda percurando na mata, Neco.
— Será capaiz qui ocê teje certo. É mio nois mandá avi¬sá no Xambioá, pra invitá cumpricação pra nóis dispois.
— E adonde qui nóis vamo prende ele?
— Nóis prende ele na tuia, tá vazio lá que o sô Noleto num mandô os saco de mio ainda. Tem só um tiquim de fejão lá.


— Que guerra ingrata! Um mês inteiro sem conseguir¬mos nenhum resultado. Os dois últimos X que fizemos no qua¬dro foi no início de novembro, Cilon Baeta, o Alexandre, e Renê dos Santos, o Paulo — disse Viola para Tomé.
— A Jabuti Quatro informou hoje de manhã que está seguindo rastros frescos de três. Vamos rezar para que eles peguem os que faltam do Saranzal, Eraldo, Ananias e Rosa. Nos Perdidos as patrulhas continuam sem pista, tchê.
— O Zenóbio, esse então, parece que se escafedeu — fa¬lou Viola, com o cenho carregado.
— É só falar no diabo que o tinhoso aparece, pessoal — disse Zeca, entrando na sala a tempo de ouvir a última frase de Viola.
— O que foi, tchê? Algum informe? — perguntou Tomé.
— Recebemos um informe quentíssimo, agora há pou¬co. Os empregados da Fazenda Noleto prenderam um sujeito que estava perambulando por lá. Pela descrição, tem muita possibilidade de ser o Zenóbio.
— E o que estamos esperando? Vamos mandar logo um Sapão lá, buscar o bicho, tchê! — exclamou Tomé, ansioso.
— Você já olhou a hora, Tomé? São quase cinco da tar¬de. Não há mais tempo hoje. Amanhã pela manhã, o Sapão vai lá, com uma equipe, e traz o cara direto pra cá — disse o chefe de operações da Casa Azul.
Às sete e trinta da manhã, um Sapão, cujo comandante era o Dr. Filomeno e o segundo-piloto o Dr. Ricardo, decolou de Xambioá para a Fazenda Noleto. A bordo ia uma equipe de doutores da agropecuária, todos excitados com a possibili¬dade da prisão do tão caçado guerrilheiro Zenóbio.
A aeronave pousou num dos pastos da fazenda, próxi¬mo à casa-grande. A equipe de quatro elementos desceu e se dirigiu para a sede. O Sapão ficou aguardando, com o motor girando em marcha lenta.
— Esses caras da agropecuária parecem bichos. Todos mal-encarados — comentou Ricardo no interfone. Louro de olhos azuis, ele era o capitão Marigny.
No outro posto de pilotagem, Filomeno, ou o também capitão Miguel Lima, fez um movimento de cabeça e perguntou:
— Você conhece algum deles?
— Não, não sei quem são, nem quais as patentes — res¬pondeu Ricardo.
A espera não foi demorada. Logo depois, a equipe veio em direção ao helicóptero, arrastando um homem algemado, dando-lhe socos e pontapés. Quando eles chegaram mais pró¬ximo, Filomeno observou:
— Esse pobre coitado não tem cara nem jeito de guerri¬lheiro.
— Também concordo. O sujeito, preste atenção, tem um olhar parado, parece mais um débil mental — falou Ricardo.
O indivíduo foi empurrado para dentro da aeronave aos sopapos e bofetões.
— Seu subversivo filho da puta! — gritou um membro da equipe, tomado de ira.
Filomeno tirou calmamente seu capacete de voo, virou-se para trás e berrou:
— Atenção, tripulantes e passageiros! Todos ficaram estáticos.
— O Código Brasileiro do Ar é muito claro. O coman¬dante da aeronave é a maior autoridade a bordo, independente do posto dos passageiros. Portanto, aqui dentro, ninguém vai dar porrada neste infeliz. É uma ordem!! — determinou o va-loroso oficial-aviador, colocando novamente o capacete.
Havia pelo menos um oficial mais antigo do que Filome¬no, mas ninguém ousou desrespeitar sua ordem.
O Sapão pousou no pátio da Casa Azul. Nem bem ha¬viam desembarcado, o prisioneiro foi conduzido para o gal¬pão sob socos, safanões e pontapés.
— Isso que vocês estão fazendo é sacanagem! O cara não tem característica nenhuma de guerrilheiro e, mesmo que fos¬se, está algemado, indefeso. Vocês são uns covardes... — dis¬se Filomeno, ao descer da aeronave, para Tarquínio, que estava perto.
— Que é isso, Filomeno! Você está nervoso sem motivo. Deixa o pessoal se divertir um pouco. Urnas porradas não fazem tanto mal assim — replicou Tarquínio com um sorriso sarcástico.
"Seu filho da puta, você chama isso 'se divertir'!!", pen¬sou Filomeno, balançando a cabeça em sinal de desaprovação.


Três dias depois, Nilo mandou reunir todo o pessoal da segunda seção, inclusive os da equipe que trouxera o pri¬sioneiro.
— Que papelão! O sujeito não é o Zenóbio, nem guer¬rilheiro de espécie alguma. É um pobre ermitão, doente men¬tal, incapaz de fazer mal a uma mosca. Vocês deram porrada num inocente! Resultado, fizemos papel de idiotas, e, o que é pior, teve oficial do meu exército sendo repreendido pelo pes¬soal da FAB, e, diga-se de passagem, com toda a razão. Um vexame! Uma vergonha! — falou com energia o chefe da Ca¬sa Azul.
Os outros abaixaram a cabeça, sem dizer nada. Não ha¬via o que dizer. Contudo, vergonha eles também não sentiam. Aquela gente era incapaz de qualquer sentimento.

Capítulo XIX

Eles atravessaram o igarapé, posicionaram-se na beirada da clareira e ficaram observando a casa.
— Parece que está tudo normal. De qualquer forma, te¬mos que ter cautela para não acontecer conosco o mesmo que ocorreu com a Jabuti Um, ir chegando displicente e ver um guerrilheiro escapar nas barbas da patrulha. Vamos cercar a casa. Depois, eu vou entrar no terreiro. Vocês ficam por trás, me dando cobertura — instruiu o chefe da Jabuti Dois.
Os soldados distribuíram-se conforme as ordens, em si¬lêncio, bloqueando todas as possibilidades de fuga, caso hou¬vesse algum paulista acoitado no sítio.
Zé Euler, um valente e disciplinado tenente de infanta¬ria, aproximou-se do pátio, o tronco curvado, o fuzil em riste.
— Se houver alguém aí dentro, que saia com as mãos na cabeça! — gritou ele.
— Égua do macho! Que alvoroço é esse!? — exclamou em voz alta Chico Boiuçu, saindo pela porta da frente da choupana.
— Tem mais alguém aí? — perguntou Zé Euler, relaxan¬do a postura.
— Tem não sinhô, e houvera de tê!? Só tô eu mais a mulé Se achegue, moço — disse Chico, com seu sorriso desdentado.
O chefe da patrulha fez sinal para seus homens se aproximarem.
— Tem aparecido paulista por aqui, seu...?
— Francisco, mais ês me chama de Chico Boiuçu. Dos paulista, escuitei falá que uns treis deles tivero rondando o sí¬tio do cumpadre Tonho, na sumana passada. Tá interando hoje oito dia.
— Tá bão, Boiuçu? — disse o guia da Jabuti Dois, que conhecia o outro, ao chegar com os demais.
— Bão, Vicente, e ocê? Pode i entrando gente, o sol tá quente.
Eles entraram. A casa era espaçosa, com quatro cómo¬dos grandes. Uma mulher cozinhava no fogão a lenha.
— Pode se ispaiá por aí. Agora mesmo vai tê fejão pronto e carne de cutia que Chico caço — disse ela.
— Como foi essa história dos paulistas que você falou, Chico? — perguntou Zé Euler.
— O cumpadre disse que era dois home e uma muié. Vi¬cente sabe adonde que fica o sítio do cumpadre Tonho, num sabe, Vicente?
— Sei, tem u'a tria daqui inté lá. U'as treis horas de ca¬minhada — informou o guia.
— Mais ocêis num vão simbora sem cume do fejão da Maria e da cutia insopada, né?
— É muita gente, Chico, vai lhe dá transtorno — falou o chefe da patrulha.
— Trabaio ninhum, tem fejão e carne que só, né, Maria?
— Pode vim inté um batalhão, inda sobra cumida.
— Bem, sendo assim, vamos aceitar — disse Zé Euler, percebendo o olhar de gula de seus homens. Ele mesmo esta¬va com fome, e o cheiro das panelas lhe aguçava o apetite.
Ficaram por ali. Dentro da casa, estava bem mais fresco do que fora. Sentaram-se, uns nos poucos bancos que havia, outros no chão mesmo.
O feijão não havia ficado pronto. A carne, da mesma for¬ma, ainda cozinhava.
— Vem vindo gente aí — disse um soldado, olhando por uma fresta da janela. Todos fizeram absoluto silêncio.
— Continue mexendo as panelas, dona Maria! Chico, quando eles entrarem no terreiro, você sai e dá um jeito de fazê-los entrar na casa — falou Zé Euler em voz baixa, fazendo sinal para os outros se esconderem nos três cômodos res¬tantes, enquanto espreitava, pelo canto da porta, a aproxima¬ção dos paulistas.
— Já intindi. Pode dexá qui já sei. Maria, mexa o cumê sem nervusia — disse o dono do sítio.
Eraldo, Ananias e Rosa chegaram ao pátio, caminhando devagar. Magros, sujos e aparentando muita fadiga.
— Ô de casa! — chamou um deles.
— O quê qui ocêis qué aqui!? — perguntou Chico, na porta da choupana, fingindo aborrecimento.
— Nós estamos com fome, Chico Boiuçu. Nos arrume qualquer coisa pra comer, por favor. Depois, nós vamos em¬bora, não queremos complicação pra você — falou Ananias, suplicante.
— Ô Nanias, se as tropa subé qui tô ajudando ocêis, vai cumplicá, né, pra mim mais a Maria, cêis mesmo sabe disso... — negaceou Chico, como se fora um ator.
— Tenha um pouco de piedade, Chico. Nós já fomos tão amigos! Você se lembra daquela maleita que Maria teve, quem foi que curou!? — recordou Rosa, procurando sensibilizar Boiuçu e sem desconfiar de nada.
Chico coçou a cabeça, fingindo dúvida.
— Óia aqui, minina Rosa, Nanias e esse otro aí qui num me alembro do nome, num sou home de negá um cumê pra um vivente cum a fome qui ocêis tá. Mais tem uma coisa, ocêis entra, come e, dispois, vai simbora logo. Pôso num posso dá procêis, não!
Era só o que eles queriam. Os três entraram. Ouviu-se o engatilhar das armas.
— Vocês estão presos! — falou alto Zé Euler.
Pegos de surpresa, eles não ofereceram qualquer resistên¬cia. Amarrados, no entanto, Chico Boiuçu não escapou aos vitupérios lançados sobre ele e Maria com ira e desprezo.
— Seus dois capachos da ditadura! Nojentos traidores! Filhos da puta, seu velho cachorro, um dia vocês hão de pa¬gar por esta traição!... — gritou Rosa, cuspindo na direção do casal. Ananias e Eraldo espumavam de raiva igualmente.



— ...com esse informe de que o Zenóbio foi visto na re¬gião do igarapé Capim Alto, vou lançar três patrulhas, aqui nestes pontos — disse Viola, mostrando os locais no mapa. — Elas receberão ordem para convergir na direção da Grota Grande. Se ele estiver nessa área, nós o pegaremos. O que vo¬cês acham? — perguntou ele a Tomé e Zeca.
— Acho excelente. Pode funcionar — falou Zeca.
— Está perfeito, tchê, mas creio que seria bom lançar uma quarta patrulha, a jusante deste trecho do igarapé, para blo¬quear a possibilidade de fuga por este outro lado — explicou Tomé apontando a carta do aerolevantamento radar que fora fornecida à Casa Azul pelo Ministério das Minas e Energia, órgão responsável pelo projeto Radam (Radar da Amazónia).
— Certo. Porém...
— Dá licença, doutor! — disse o operador-rádio, entran¬do na sala e interrompendo a troca de idéias de Viola com seu auxiliar e o chefe da segunda seção.
— Fala Mariano! Novidades?
— Sim, doutor. A Jabuti Dois fez três prisioneiros. O Paquera informou que eles estão no sítio do Chico Boiuçu, aguardando resgate.
— Ótima notícia!! Tomé, faça contato com o Jorge. Peça pra ele mandar um Sapão buscar a patrulha e os prisioneiros e trazê-los direto pra cá — falou Viola eufórico.
— Posso dar uma sugestão? — perguntou Zeca.
— Claro, Zeca. Pode falar.
— Não tem mais sentido trazer prisioneiros para cá. O interrogatório deles não vai acrescentar mais nada. Acho me¬lhor solicitar um Sapão de Xambioá para resgatar a patrulha. Enquanto isso, uma equipe da segunda seção sai daqui, nou¬tro Sapão, pega os prisioneiros, leva-os para Bacaba, identifica-os e toma as demais providências. Isso nos causará menos transtornos.
— Certo. Vamos fazer assim, então. Vou apenas dar ciên¬cia disso ao Dr. Nilo — disse Viola, aceitando a sugestão de Zeca.


— Égua, o que é isso, Xingó!? — perguntou Valquíria surpresa, ao ver o auxiliar de Zé Geraldo entrar na sala de re¬feições de sua casa, choroso e macambúzio.
— Zé Geraldo disapariceu. Tá cum uma sumana qui num aparece na oficina, dona Val.
— O Zé é assim mesmo. Ocê já devia tá acostumado — tranqüilizou-o a Baleia, risonha como sempre.
— Mais o Paulo Boto anda dizendo qui Zé Geraldo vorta mais não. Que ele inté ficou sabendo qui o Zé vendeu o barco pra um moço lá de Santa Isabel.
— Que história é essa, Xingó!! Tá variando, minino, tá? Então, Zé Geraldo ia simbora assim, sem mais nem menos, sem se despedir de ninguém?! — retrucou Val, com uma pon¬ta de dúvida nascendo-lhe no espírito.
— Tão dizendo tomém qui ele fugiu com Bartira — acres¬centou o moleque.
— Que cunversa é essa!? Bartira foi passar uns dias com a mãe e o pai em Riachinho, minino! — disse Valquíria, agora sem tanta certeza. — Vou já remexer no malotão onde ela guarda as coisas dela. — Falou e agiu a Baleia. O baú estava vazio.


O Sapão pousou na lateral esquerda da pista de Bacaba, no sentido geral leste-oeste. Filomeno cortou o motor, enquan¬to Zeca, Tarquínio e mais três agentes desciam, conduzindo os prisioneiros algemados.
O comandante da aeronave e seu segundo-piloto, Rafael, retiraram seus capacetes de voo e desceram também. O mecâ¬nico ficou aguardando a parada do rotor principal para colo¬car a capa numa das pontas de pá da asa rotativa e prendê-la com a fita ao boom de cauda.
O grupo iniciou a travessia da pista, e os dois pilotos fi¬zeram menção de o acompanhar.
— É melhor vocês ficarem aqui. Não vamos demorar muito — disse Tarquínio para Filomeno, atrasando-se em re¬lação aos demais.
— Mas por que não podemos ir junto!? — ponderou o aviador.
— Porque não é conveniente.
— Não é conveniente em que sentido? — quis saber Filomeno.
— Porra, Filomeno, isso é assunto nosso, da segunda seção. É informação sigilosa. O que vocês vão ver lá tornará cada um responsável por algo que não é da sua competência. É melhor vocês permanecerem aqui, para o bem de vocês mes¬mos. É uma ordem! — apelou Tarquínio para sua condição de mais antigo, afastando-se a passos rápidos para juntar-se aos outros.
Filomeno e Rafael ficaram de longe, observando o gru¬po sumir, no meio do mato, do outro lado da pista.
— Porra, meu, esses caras vão aprontar de novo — co¬mentou Filomeno com seu sotaque paulistano.
— Não tenho dúvida do que eles vão fazer atrás daque¬las árvores. Você tem!? — falou Rafael.
— Vamos voltar para o helicóptero e esperar. — E am¬bos voltaram para perto da aeronave.
Cinco minutos depois, a tripulação do Sapão ouviu os dis¬paros. Mais trinta minutos, e o grupo retornou. Os agentes vinham com as pás e enxadas que haviam levado ainda sujas de terra. Os prisioneiros ficaram. Isto é, haviam "viajado".
— Assassinos! — disse Filomeno entre dentes, após acionar o motor, sendo ouvido apenas pelos membros da tripula¬ção, no interfone.
— É melhor ficar calado, Lima, desculpa, Filomeno. Es¬tes caras são capazes de tudo — falou Rafael, procurando acau¬telar o companheiro dos perigos de uma atitude de rebeldia.


— Engraçado, há vários dias não consigo sintonizar a Ti¬rana. Será que, com a aproximação do Natal, ela resolveu dar uma colher de chá? — comentou Viola estranhando o silên¬cio da rádio albanesa, cujos transtornos causados à Casa Azul já haviam virado rotina.
— Desconfio que ela desistiu. Também, quem é que vai gastar vela boa com defunto ruim, tchê? Os comunistas sa¬bem que essa guerra está perdida. Só faltam cair quatro pra tudo terminar — disse Tomé, conferindo o quadro onde os três últimos X vermelhos estavam sobre os retratos de André Guerra, o Eraldo, Rodolfo Teles, o Ananias, e Telma Camar¬go, a Rosa.
— É verdade. Só que pra achar esses quatro não está fá¬cil. Os do grupamento dos Perdidos, o Lauro, o Augusto e a Japonesa, pode ser que a gente descubra. Coloquei seis pa¬trulhas atrás deles, e uma está na pista de rastros promisso¬res. Mas o tal de Zenóbio parece mágico. Quando achamos que ele vai cair no laço, o coisa-ruim some — falou Viola.
— Quando é que o chefe vai voltar, tchê? — perguntou Tomé, mudando de assunto.
— Ele me disse que ia passar o Natal e o Ano-Novo com a família, em Fortaleza. Depois, vai a Brasília, e só lá para o dia 6 de janeiro estará de volta à área. O Nilo deve trazer novidades da corte. O general quer encerrar a operação o mais depressa possível. Já insinuou que estamos gastando tempo e dinheiro demais. O velho deve estar pensando que estamos aqui coçando o saco.


— ... foi do jeito que estou lhe contando, Dr. Nilo. O che¬fe da patrulha disse que quando eles viram não acreditaram. Estavam os três lá, no pé de uma árvore, dormindo tranqui¬lamente. A patrulha não teve o menor trabalho — Viola rela¬tava o episódio da captura de Lauro, de Augusto e da Japo¬nesa, enquanto eles se deslocavam do aeroporto de Marabá para a Casa Azul.
— Quando foi isso? Eu estava em Brasília, no CMP, mas ninguém comentou nada sobre estas três quedas aqui.
— Foi ontem, na parte da tarde. Só enviei a mensagem para lá hoje pela manhã, depois que o Sapão resgatou os pri¬sioneiros e os levou para Bacaba. O senhor devia estar a ca¬minho do aeroporto quando a mensagem chegou ao quartel-general.
— Quer dizer então que agora só resta o Zenóbio!?
— É, só falta o Zenóbio — disse Viola, na expectativa de algum outro comentário do chefe.
— Muito boa notícia, embora ela não modifique as ins¬truções que trago de Brasília. Convoque para hoje à noite uma reunião de todo o pessoal. Quero também a presença dos dois comandantes de Xambioá, o nosso da agropecuária e o avia¬dor da mineradora.
— Será feito como determinado, Dr. Nilo — falou Vio¬la, não ousando perguntar quais eram as instruções da corte. Pelo que ele conhecia de Nilo, este só revelaria as tais instru¬ções na hora da reunião.
O chefe da Casa Azul recolheu-se a seus aposentos, en¬quanto Viola acionava seus auxiliares, providenciando a ex¬pedição das mensagens para Xambioá e mandando avisar aos demais.
Tomé foi dos primeiros a receber a determinação, no mo¬mento em que estava atualizando o quadro de operações. Di¬vino Pacheco da Silva, o Lauro, Pedro Américo de Almeida, o Augusto, e Sueli Ohashi, a Japonesa, receberam, cada um, um X vermelho em suas fotografias.

Capítulo XX
— E agora, cacete! Como é que vamos conseguir aten¬der a duas operações ao mesmo tempo? — perguntou Tiago a João Pedro, que chegara de Belém naquela manhã, após ter passado o mês de dezembro em férias.
— Agora, tudo depende de como vai ficar a situação aqui no Araguaia. Quanto às aeronaves, não haverá problema. O esquadrão tem helicópteros suficientes para atender à missão daqui e à do convênio com o Departamento Nacional de Pes¬quisas Minerais — disse João Pedro, referindo-se ao órgão do Ministério das Minas e Energia condutor do Projeto Radam, uma vez que o Ministério da Aeronáutica firmara con¬vênio com aquela pasta para dar apoio aéreo ao referido projeto.
— O diabo é que, na parte de pessoal, estamos de calça na mão. Dia 15 de janeiro temos que colocar quatro helicóp¬teros em Uaupés — nome indígena da localidade de São Ga¬briel de Cachoeira, no médio rio Negro — e não temos tripu-lações suficientes. O esquadrão recebeu meia dúzia de tenen¬tes novinhos, sem experiência, que não bastarão para resol¬ver o problema — acrescentou Fábio, que, da mesma forma que João Pedro, chegara naquela manhã.
— É por isso que as autoridades têm que dar logo uma definição. É incoerente manter toda esta estrutura em Xambioá, para caçar um único remanescente, esse tal de Zenóbio! — falou João Pedro com preocupação.
— Porra, cacete, vamos deixar que as autoridades resol¬vam, então. Não está no nosso nível dar solução para o pro¬blema. Mudando de assunto, a Joaninha está louca pra ver você. Está desesperada de saudade. Você vai vê-la hoje? — perguntou Tiago.
— Claro, né, japonês. Quero estar com a Joaninha e, de¬pois, dar uma esticada, como de costume, ao botequim da Janoca.
— Querias, negão, querias! — disse Buchudo, entrando no recinto naquele momento, a tempo de ouvir sobre os pla¬nos de João Pedro para a noite.
— O que aconteceu? — perguntou Tiago.
— Chegou uma mensagem da Casa Azul determinando que o mais antigo da mineradora, juntamente com o chefe da agropecuária, se desloquem para Marabá para participarem de uma reunião às oito da noite, hoje.
— Caralhos, hoje! Porra, mas são quatro horas da tar¬de! Era só o que faltava... Tá legal, mande avisar ao Pinho. Decolagem dentro de quarenta minutos — falou João Pedro desolado. Joaninha teria que esperar mais um dia.


O Dr. Nilo era pontual. Às oito horas da noite, ele entrou na sala de reuniões da Casa Azul, acompanhado por Viola e Jorge. Os demais aguardavam expectantes as novas instruções que seriam transmitidas.
— Meus senhores, boa noite — iniciou ele. — Antes mes¬mo de saber da queda dos três últimos subversivos do grupa¬mento A dos Perdidos, Brasília já havia decidido que a operação devia ser encerrada até o dia 31 de janeiro. Com es¬sas três quedas, só resta na área o Zenóbio, fato que não mo¬difica o propósito de terminarmos tudo ao final do mês As ordens são as seguintes: — Prosseguiu ele — Primeiro, vamos reduzir drasticamente os efetivos. Sessenta por cento das tropas da agropecuária devem retornar à sua sede, Manaus, depois de amanhã. Apenas umas oito patrulhas, cerca de quarenta ho¬mens, permanecerão em Xambioá para serem lançadas em atendimento aos eventuais informes que se obtenha sobre o Zenóbio. Pinho, quero que você tome providências a esse res-peito, selecionando os que ficarão até o fim do mês. Cer¬to?
“O efetivo da Casa Azul também será reduzido. Depois do dia 20 próximo, apenas o pessoal da segunda seção per¬manece, para realizar uma missão da qual falarei dentro em pouco.
"No que diz respeito ao apoio aéreo, conversei com o Dr. Jorge aqui presente, contaremos apenas com dois Sapões, um aqui e o outro em Xambioá, e um Paquera para fazer a liga¬ção, podendo estacionar aqui ou lá, como os aviadores de¬cidirem.
"No período que vai de hoje até o dia 20, vamos, cada um na sua esfera de responsabilidades, selecionar e destruir todos os documentos que possam vir a ser usados como pro¬va de que esta operação algum dia existiu.
"Do dia 20 ao dia 31, o pessoal da segunda seção vai rea¬lizar o que denominamos 'Operação Limpeza'. Esta opera¬ção tem por objetivo, literalmente, limpar a área para evi¬tar que a imprensa, que é muito abelhuda, venha bisbilhotar depois que formos embora e descubra corpos enterrados por aí. Zeca e seus agentes devem, portanto, fazer um levan¬tamento, o mais completo possível, de onde se encontram, se¬não todos, mas a maioria dos subversivos mortos. Os res-tos mortais dessa gente serão transportados para um local especial, onde ficarão livres da curiosidade de jornalistas e repórteres ávidos por sensacionalismo. Pedi ao Dr. Jorge pa¬ra lhes explicar como e para onde se fará o traslado dessa carga. Ele fará isso agora. Os demais detalhes serão tratados depois. O planejamento geral para o encerramento de tudo é o que lhes apresentei — concluiu Nilo, passando a palavra a Jorge.
— Porra, o local para onde os Sapões vão levar os bo¬necos foi muito bem escolhido. É muito difícil que seja des¬coberto por alguém, algum dia. É aqui, vejam! — disse Jorjão, apontando o lugar na fotografia aérea da região. — Por-reta, né!!?
"Realmente, o local foi bem escolhido...", pensou João Pedro, analisando a coerência da escolha.
— Mas existe um problema — continuou Jorge. — Se houver uma movimentação muito grande de helicópteros pa¬ra esse ponto, a população desse trecho do Araguaia — e ele indicou no mapa — poderá desconfiar de alguma coisa. En¬tão, porra, bolamos um esquema que deverá ser obedecido pe¬los pilotos. Presta atenção, Joãozinho, pra depois você transmitir para os outros, lá em Xambioá.
"Partindo de qualquer ponto da região, o piloto de¬ve sempre se dirigir para este PI — ponto de início para penetração de aeronaves numa rota de ataque aéreo. Jorge usou o termo por analogia — donde, em voo rasante, en¬trará por este vale e seguirá até o local indicado. No regres¬so, a rota será inversa, podendo o ponto de dispersão ser em qualquer lugar aqui ao norte, dependendo do destino se¬guinte.
"Porra, vai ser uma missão foda, e eu não gostaria de estar na pele dos que vão executá-la. Nos próximos dias, te¬nho que voltar para Belém para cuidar do nosso engajamento na Operação Radam, portanto não estarei aqui, né!? Entre¬tanto, já me entendi com o Dr. Nilo, e ele, porra, vai tomar providências para que as tripulações recebam máscaras con¬tra gases, pois imagina-se que o 'perfume' não será dos mais agradáveis, né? — concluiu Jorge.
Depois disso, a reunião tomou outros rumos, com os membros da Casa Azul discutindo questões referentes a por¬menores de pouco interesse.


A noite estava estrelada. Um clima de paz e de harmonia dominava o ambiente às margens do Poço Grande, um local deserto àquela hora, nos arrabaldes de Xambioá. Ouvia-se ape¬nas o murmurinho das águas do igarapé, correndo e cascateando entre as pedras.
— Você me parece preocupada e tensa, minha querida. Houve alguma coisa que a aborreceu? — disse o rapaz à mo¬ça que estava a seu lado, silenciosa e pensativa.
— Sim, João, esta manhã aconteceu uma coisa horrível. Não sei nem como lhe contar... Estou envergonhada — falou Joaninha, abraçando-se a João Pedro e descansando a cabe¬ça em seu peito.
Os dois estavam em pé, encostados à lateral da camione¬ta, gozando o ar fresco da noite.
— Não há motivo para vergonha, Joaninha. Seja o que for, me diga — pressionou ele.
— Hoje de manhã, fui ao Armazém Barroso fazer umas compras. Quando eu estava saindo de lá, a calçada cheia de gente, aquela mulher perdida, a tal de Isadora, ia pas¬sando. Ela me viu e, sem mais nem menos, gritou pra mim: "Ô brancosa, o doutor João Pedro é meu!! Não se meta a besta com o meu homem, viu, brancosa! Depois que vo¬cê arreta ele, pelos cantos de muro, ele termina a noite é lá na minha cama, viu sua branca pilantrosa..." Fiquei mor¬ta de vergonha, João. Todo mundo ouviu. É verdade isso, que você, depois de me deixar em casa, vai dormir com aquela perdida!?
— Joaninha — disse o rapaz, buscando palavras para explicar — não é bem assim, sou homem, tenho necessida¬des...
— Diga a verdade, não minta pra mim.
— É verdade, de vez em quando durmo com a Isado¬ra. Satisfaço minhas necessidades no Vietinam, justamente porque gosto de você e procuro respeitá-la. Você me disse, certa vez, que era virgem; não pode, portanto, fazer o que elas, as perdidas como você diz, fazem. Você pode compreender isso?
— Oh, João, como fui burra esse tempo todo... Menti pra você, com medo de que você me desprezasse... — disse ela, abraçando-o forte e beijando-o, um beijo úmido e seden¬to de desejo.
E ali, sob o manto estrelado da noite amazônica, João e Joana uniram seus corpos. Não como animais no cio, mas, sim, como dois seres humanos que se amavam e há muito vinham represando o complemento natural do querer bem en¬tre homem e mulher.
Uma coruja piou no arvoredo, única testemunha da tor¬rente que explodia em ais, em resfolegos de prazer, no orgas¬mo infinito de um átimo, na brevidade sem fim de corações em chamas.
— Oh, Joaninha, minha querida e doce Joaninha, quanta saudade vou sentir de você! — disse João, arrebatado de amor, porém consciente de que em breve teria que partir. Era 18 de janeiro de 1975. O fim do mês estava próximo.
— João, não diga isso. Se você tiver que viajar, estarei aqui, esperando por você. Como esperei em dezembro, quan¬do você esteve fora — falou ela, ingénua, mas desconfiada de que algo estava para acontecer.
— Não, minha querida, desta vez, infelizmente, creio que sua espera será muito mais longa — disse ele, sem revelar to¬da a verdade para não a magoar.
— Esperarei quanto tempo for preciso. Quando você for embora, sei que não esquecerá de mim, porque eu também não esquecerei de você. Onde você estiver, estarei também em pensamento — asseverou-lhe ela com ternura.
— Sim, Joaninha, você tem razão, guardarei sempre, com muito carinho, estes momentos lindos que tivemos juntos. Ja¬mais esquecerei de você porque, em meio a tanta miséria e so¬frimento, você foi o único fato bom que me aconteceu em Xambioá. Acredite, você foi meu alento para tanta coisa tris¬te que presenciei...
— Compreendo tudo que você está dizendo, meu queri¬do. Imagino o que pessoas como você devem estar sentindo. O seu Jerônimo, pai da Dulcilene, nos contou muita coisa, mas você deve saber muito mais. Porém, não vamos deixar que a maldade e os ódios estraguem esta noite tão linda... — disse Joaninha, meiga e ternamente, acrescentando logo de¬pois: — Está na hora de voltarmos. Se mãe souber que estou no Poço Grande com você, a esta hora...


O acampamento da mineradora, em grande parte, já es¬tava desmontado. Equipamentos, materiais diversos, madei¬ras eram empilhados no pátio de estacionamento, onde aguardariam disponibilidade nos aviões de transporte para se¬guirem para Belém.
Na barraca do rancho, a última que seria desmontada, Tiago, Fábio, João Pedro e Rafael conversavam.
— Puta que pariu, cacete, esta merda de máscara contra gás não resolve nada. Pra falar no microfone, você tem que levantar a porra da máscara e, aí, entra aquele cheiro horrível no seu nariz. Sem sacanagem, tá duro de aguentar! — disse Tiago, fazendo uma cara de repugnância.
— Consegui minimizar o problema colocando um len¬ço com algumas camadas de algodão por dentro e embe¬bido em quase um vidro de perfume. Prendo o treco no na¬riz com elástico, mas, mesmo assim, não está fácil — falou Rafael.
— Vou adotar este seu método, pra ver se melhora um pouquinho. Negão, desde que esta porra de Operação Lim¬peza começou, não consigo comer nada. Carne, nem pensar. Tomo mil banhos, mas o cheiro permanece no meu nariz — disse João Pedro, com um semblante de nojo.
— Porra, hoje à noite, vou comer peixe no bar da Janoca e tomar cachaça, se vocês querem saber. Só pinga, pra ver se dá pra esquecer este cheiro de carne podre, puta que pa¬riu!... — disse Fábio, abominando, como os demais, os terrí¬veis momentos que eles estavam vivenciando, naqueles últimos dias de operação no Araguaia.
— Pelo menos, apesar de tudo, estamos voando pra ca¬ralho. O mês ainda não terminou, e já estou com mais de cem horas de voo — comentou João.
— Cuidado pra não ter estafa aérea, hein, Joãozinho!? — brincou o japonês.


O Sapão fez uma aproximação para a lateral direita da pista de pouso de Bacaba, pousando no sentido leste-oeste. João Pedro cortou o motor e a equipe de agentes desembarcou com suas ferramentas, pás, enxadões e gadanhos, este uma espécie de ancinho de cabo longo e grandes dentes de ferro, geralmente usado para empilhar feno.
João Pedro e Rafael colocaram suas máscaras, com o len¬ço embebido em água-de-colônia, e seguiram junto com os agentes. Uma espécie de curiosidade mórbida os levava a querer presenciar a cena.
Um a um, vários corpos foram desenterrados, coloca¬dos em sacos de plásticos especiais, do tipo usado pelos IML, lacrados e levados para a aeronave.
— Não é possível! — gritou um dos agentes, certa hora, ao terminar de abrir uma cova. Todos se aproximaram para ver do que se tratava.
— Minha nossa! Não pode ser! — disse outro.
Por razões inexplicáveis, lá estava a Japonesa, o corpo inteiro. Enterrada há quase um mês, seu cadáver não havia se deteriorado. Parecia que estava dormindo, não fosse o rosto sujo de terra.
Um agente enfiou o gadanho por baixo do corpo da guer¬rilheira. Tentou levantá-lo, mas o cadáver escorregou. Tenta¬ram mais algumas vezes e, sempre, o mesmo problema, a Japonesa escorregava.
— Minha filha, você não quer vir por bem, vem en¬tão nos braços do papai, vem, querida! — disse um mu¬lato alto e forte, saltando dentro da cova e se abraçando ao cadáver.
Uma cena dantesca!!
— Vamos sair daqui, Rafael. Isso é demais para o meu estômago. Estes caras perderam a noção de tudo. São lou¬cos, irracionais, verdadeiras bestas... — disse João Pedro, com a máscara levantada e o rosto num ricto de revolta. Os dois voltaram para o Sapão, completamente transtorna¬dos.
Algum tempo depois, o helicóptero, com a equipe de agen¬tes e a medonha carga, decolava em direção ao funéreo local. A bordo iam também outros petrechos, quatro ou cinco pneus velhos e um galão de gasolina.
— Observem os sujeitos que estão fazendo este trabalho imundo. Enquanto nós, com máscaras e lenços no nariz, estamos fazendo um esforço sobre-humano para aguentar o chei¬ro putrefato que impregna todo o ambiente, eles estão aí, sem qualquer aparato, como se nada estivesse acontecendo — dis¬se Rafael no interfone.
— Tem um deles que está fumando, tranquilamente, aqui atrás. Parece que eles estão em viagem de turismo, rindo e brin¬cando um com o outro — falou o mecânico de voo.
João Pedro apenas balançou a cabeça, em sinal de cons¬ternação. "Deus, onde estou!? Esta é seguramente a pior missão da minha vida. Haverá algo mais bárbaro do que is¬so!?", perguntou-se, remoendo pensamentos de revolta e no¬jo.
— Atenção a tripulação, longa final para pouso — disse o comandante.
Minutos depois, o Sapão pousava a cerca de trinta me¬tros de uma palmeira que, aparentemente, era uma grossa car¬naúba. A equipe transportou a carga macabra para o pé da altaneira planta. Os sacos eram jogados sem qualquer outra formalidade.
— Que falta de respeito!! — Foi o único comentário que se ouviu nos fones.
Os pneus foram jogados por cima. Um agente espa¬lhou a gasolina e outro ateou fogo, afastando-se do lo¬cal.
Depois que eles embarcaram novamente, o Sapão saiu do chão e, ainda sob o efeito de solo, girou cento e oitenta graus, decolando no sentido inverso à aproximação.


Na barraca-dormitório, João Pedro e Rafael arrumavam seus pertences. Dentro em pouco eles partiriam.
— Não posso acreditar que isso tudo terminou, João. Pa¬rece que foi um pesadelo — disse Rafael, acabando de fechar sua mala.
— Talvez não tenha terminado ainda, meu amigo. O Zenóbio não foi encontrado, quem sabe o que acontecerá no fu¬turo? — falou João Pedro, colocando na maleta um livro de Hemingway. Triste ironia, Por Quem os Sinos Dobram — era o título da obra.
— Zenóbio! Não compartilho das idéias dele, mas tenho que admirá-lo. Lutou uma guerra perdida, por suas convic¬ções. Perdeu, mas será que ele é menos brasileiro que eu e vo¬cê, por pensar diferente de nós?!
— Acho que não. Admiro-o também. À sua maneira, ele buscou o melhor para o povo. O mesmo povo, a mesma so¬ciedade e a mesma nação de que fazemos parte. Mas chega de filosofar. Vamos, você está pronto?
Os dois saíram para o pátio de estacionamento. Os ho¬mens trabalhavam na desmontagem final do acampamento. Tiago e Fábio haviam partido no dia anterior. Eles eram os últimos doutores nos restos da mineradora. Ficariam apenas um funcionário de menor graduação e alguns soldados que seriam resgatados com o material nos próximos dias.
No pátio, Joaninha esperava João Pedro. Ela não per¬mitiria que ele fosse embora, sem que se despedissem.
— Volte um dia para me ver, João — disse ela, uma lá¬grima silenciosa correndo-lhe pela face.
— Quem sabe um dia, minha querida!? — falou ele, co¬locando um beijo na face úmida da moça.
— Vou sempre esperar por você...
— Joaninha, ah minha Joaninha, não me esquecerei também de você. Nunca! Disse-lhe isso naquela dia, lem¬bra-se!?
Ela fez que sim com a cabeça. Os dois se abraçaram. O último abraço.
— Adeus...
João Pedro entrou no helicóptero, sentou-se no seu pos¬to de comando e deu partida na máquina.
Rafael checou os instrumentos, ligou o sistema de comu¬nicação e fez sinal de positivo para João.
— Acelerando para seis mil, TIT normal — disse ele, referindo-se à temperatura dos gases da turbina.
— Centro Belém, Força Aérea oito meia cinco quatro, plano de voo visual, de Xambioá para Belém, nível zero se¬te cinco, tempo estimado zero quatro horas mais dez minutos, autonomia zero seis horas mais vinte minutos... — transmitia Rafael, pelo HF, àquele órgão de controle de tráfego aéreo, o plano de deslocamento da última aeronave do 1º EMRA a deixar Xambioá, após um ano e quatro meses de ope¬ração.
Logo depois, eles decolavam.
O UH-1H atravessou o rio Araguaia com proa norte, su¬bindo. A dois mil pés, estabilizou, mantendo a altitude.
— Não é melhor ascender logo para o nível de cruzeiro proposto? — perguntou o segundo-piloto.
— Ainda não, quero fazer uma passagem baixa ali na frente, antes de seguirmos definitivamente para Belém — res¬pondeu o comandante.
Mais alguns minutos e o UH-1H sobrevoava o ponto de¬sejado pelo capitão.
João Pedro inclinou para a direita, iniciando uma cur¬va de trezentos e sessenta graus, bem aberta, para poder ob¬servar.
— É ali, Parise, naquela reentrância, ao lado daquela pal¬meira... — disse ele, apontando para baixo.
— Jamais vou me esquecer desse lugar... — falou Rafael.
Eles estavam circulando, a duzentos ou trezentos pés, so¬bre o ponto mais alto da extremidade sul da Serra das Ando¬rinhas, único relevo geográfico digno de nota em toda a região. Não era uma serra propriamente. Era mais um serrote, onde nasciam diversos afluentes do Saranzal e do Araguaia.
— Sim, meu amigo Parise, é impossível esquecer esse lu¬gar. Ali estão os restos mortais de meia centena de jovens que um dia sonharam um Brasil melhor. Que Deus tenha compai¬xão por eles!! — disse João Pedro, emocionado. Uma lágri¬ma rolou. O aviador ergueu a viseira de seu capacete e enxugou-a com as costas de sua luva de voo.
— Você está bem, João? Quer que eu pilote? — pergun¬tou Rafael.
— Não, não é preciso. Já vai passar. É apenas uma dor, lá no fundo da alma... — respondeu o comandante.
Uma dor que venho guardando, no fundo de minha al¬ma, por quase vinte anos. Eu disse ao meu amigo Parise que ela ia passar, mas não passou!
Quem sabe agora, ao terminar de escrever este livro, possa eu remir, ao menos em parte, o sofrimento que abriguei por tanto tempo neste meu coração pungido...

FIM